terça-feira, outubro 08, 2019

E, no fim, um milagre







Há pouco os meninos ligaram-me. O bebé informou-me: 'Comi arroz dôche'. Confirmei: 'Arroz doce? Comeste?' E ele: 'Todo!'. Ouvi a mãe a rir. Depois as vozes dos irmãos sobrepuseram-se e já não ouvi bem mas pareceu-me perceber que foi a avó que levou. Deve ter sido. Faz um arroz doce delicioso. Quando há festa, acho que toda a gente já vai a lamber-se só de pensar naquele tabuleiro de arroz-doce. Depois continuou, querendo saber: 'Onde 'tás?'. Respondi: 'Na sala'. Quis saber mais: 'Onde...?'. Esclareci: 'Na sala da televisão, aquela onde estão as mesinhas com que costumas brincar'. Ligeira pausa. E depois: 'Não tás no tânjito?'. Foi a minha vez de processar e, depois, confirmar que tinha percebido bem. 'No trânsito?' e ele 'Xim, não tás no tânjito?'. Desatei a rir. 'Não, hoje não, hoje já estou em casa, estou na sala'. Presumo que tenha sido porque na sexta-feira, quando nos disseram para jantarmos com eles, eu disse que estava no trânsito, presa, sem fazer ideia de quando poderia lá chegar. Não sei se ele sabe o que é o tânjito. Na volta, sabe. Pergunta tudo, sabe tudo.

Mas esta do trânsito por acaso é daquelas que me consome. Sempre no trânsito, todos os dias no trânsito. Os anos de vida que tenho perdido presa no trânsito...

Mas hoje o dia até não foi dos piores mas, de qualquer maneira, é sempre um somatório de momentos por vezes paradoxais, por vezes incómodos. Outras vezes simpáticos.


De tarde, estava um sol bom, a cidade dourada, um céu protector, limpo de sombras. Ponho de lado a apreensão pelo calor deslocado no tempo, pela ausência de chuva, tento pensar que sou mera espectadora de um filme que me é distante. Olhando de dentro, a rua parecia o cenário de um filme tranquilo. E eu pensei que poderia desligar das minhas preocupações -- que, na maioria, seriam escusadas já que são causadas por quem rema em sentido contrário -- e usar o computador para me pôr a inventar histórias ou, simplesmente, a escrever coisas de nada. Mas não, tenho que desviar o olhar e esquecer o apelo que me chega da rua.


Por um momento ainda pensei que talvez pudesse conciliar: ver a apresentação que me enviaram, responder a mails, atender chamadas, despachar umas autorizações e, ao mesmo tempo, ter um documento de word aberto onde, nos intervalos, fosse escrever coisas minhas. Mas, mal pensei nisso, entrou um e sentou-se à minha mesa de reuniões e, sem mais nem ontem, começou a falar e, mal saíu, veio outro perguntar se podia entrar pois tinha um problema para partilhar comigo. E sei lá que mais. Só sei que cheguei ao fim do dia com a folha em branco. Mas também não daria. Não consigo escrever com algum desprendimento de mim se souber que posso ser solicitada no minuto seguinte. Penso que é por isso que me habituei a escrever apenas quando não há movimento de monta à minha volta. Preciso de me sentir alheada.


Agora estou aqui na minha sala e também não estou desligada pois dói-me um joelho. Neste domingo, antes de irmos votar, fomos ter com os outros meninos ao parque. Um lugar idílico onde sabe muito bem estar. Enquanto vou caminhando devagar e conversando com a minha filha, os meninos vão fazendo exercícios nas barras e noutros aparelhos que estão ao longo do caminho. E até aí tudo bem. Só que também me apeteceu fazer exercícios. Não apenas andei a fazer equilibrismo em barras paralelas, várias barras cada uma mais alta que a anterior, como pedalei nas máquinas de pedalar, fiz ginástica às pernas, daquelas em que se faz muita força para as conseguir abrir e fechar, fiz aos braços e aos ombros, baixando e levantando umas alavancas e outra parecida mas com as pernas. Tenho ideia que ouvi a minha filha a dizer ao pai: 'Ai... Amanhã não vai conseguir mexer-se...'. Como é óbvio, não liguei. Tudo o que fiz, fiz sem esforço. Muito menos dor. Nada. Até acelerei nos movimentos. Gosto de fazer exercício e, se ao ar livre, ainda melhor. E tudo tranquilo. Só que, vinte a quatro horas depois, comecei a sentir um certo incómodo num dos joelhos. E agora dói-me mesmo. Já estive a pôr pomada e pode ser que passe mas, quando o joelho dá sinal, eu fico sempre com medo pois já passei por aflições, com ele inchado e eu toda coxa. Isto é o que dá uma pessoa passar os dias no escritório ou no carro e, de exercício, apenas fazer uma simples caminhada diária de uma escassa meia hora. 


E é assim que, vindo eu hoje para casa a ouvir uma bela música na Antena 2, a ver um céu limpo e uma luz dourada sobre o belo casario de Lisboa, desejando chegar a esta minha sala e estar sossegada, longe dos problemas do dia, a ler outros blogs, a escrever palavras também serenas, estou é a falar do meu joelho burguês e sedentário.

E tudo isto, na volta, é mas é para não falar no que interessa. E isto de eu dizer que é o que interessa também é relativo. Aliás, sendo tudo relativo, algumas coisas são mais e outras menos relativas. E esta é daquelas que é coisa nenhuma, é rêverie, é loucura, é tudo.

Mas vou directa ao assunto: estava eu a passear in heaven, descobrindo cada coisa como se nascida no nada, tudo coisa nova, tudo razão para encantamento, tudo milagre. Os meus muros cheios de cor, as árvores que plantei e que estão gigantes como palácios, como castelos, como fortalezas, a glicínia dourada entrelaçada nas ramagens da azinheira que chega ao céu. Os cãezinhos pequeninos que vêm de lá do fundo, da casa do outro lado da rua, e se põem a olhar para mim, muito intrigados.

Fotografei tudo.

E então, neste estado de maravilhado apaziguamento, olhei para o céu e vi. Um milagre. Vi.


A pluma azul tinha derramado a cor sobre a página em branco e agora todo o fundo estava azul. E a pluma estava nua, em toda a sua alvura, em toda a sua pureza. E eu pensei que daquela pluma as palavras haverão de nascer ainda mais límpidas, plenas de luz, inocentes na sua infinita transparência. E eu pensei que só podia ser milagre.

E fotografei para que também possam testemunhar o que os meus olhos incrédulos viram.

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Desejo-lhe um dia feliz

8 comentários:

Anónimo disse...

Milagre foi o que me aconteceu se eu fosse deixar-me ir nessa esparrela. Coisa assustadora. Há tempos tinha sonhado com um jardim de bancos dispostos curvilineamente, umas pombas desenhadas em ferro à volta, um quiosque numa ponta e uma espécie de parede muralhada noutra. Estava eu a passear por certa cidade do centro de Inglaterra, onde tinha ido passar uns dias sozinha para espairecer das misérias e aborrecimentos da vida, e eis que quase se me dá um treco. Estou de frente para o jardim. Pombinhas negras no ferro dos portões e de uns postes finhinhos a voar à volta de uns bancos que faziam o caminho curvilíneo dos meus sonhos. Dou uma volta. Tal e qual. Como no sonho. Acabo de dar a volta e vejo uma placa dourada na tal parede. Alá para aqui, Alá para acolá, em nome e homenagem do Misericordioso que está nos nossos corações...! Olho para cima e pergunto ao Universo: mas será isto que é ter uma Revelação? As pombas atrás, testemunhas. Ninguém me responde. Sinto aquela sensação de que estou a falhar com alguém, porque só podia ter sido mesmo uma revelação, talvez A Revelação que tive a honra de me ser dirigida e eu não sentia nada a não ser um misto de desilusão e orgulho. Desilusão na minha natureza absurdamente racional que se pôs a explicar-me o que poderia ter acontecido, em vez de me deixar acreditar como qualquer pessoa sensata. Ora bem, quais as hipóteses possíveis. Minha querida, pensei para mim, ninguém se ia dar ao trabalho de te revelar seja o que for. O que se passou foi que a matéria de que os sonhos são feitos, de que tu própria és feita, é coisa que partilhas com tudo o que para aí existe e pode ser que um pedaço da matéria dos teus sonhos tenha coincidido com muitos outros pedaços do Universo, como este jardim por que passaste; ou pode ser que alguém tenha sonhado o mesmo que tu e feito um jardim à tua (vossa) medida; pode ser também que ainda estejas com pombas mas é na cabeça, resquícios da noite passada. Perante a última, protestei. Não estava com resquícios de pombas nenhumas, se estava com algum resquício era de mal-estar, não de pombas alucinadas. Pelo que, posto isto, me orgulhei de não cair em esparrelas do destino e de a minha natureza se manter fiel à sua eterna falta de crença de que não consigo fugir mesmo que quisesse. É que o que eu menos queria, sem desprimor, era que a crença que me calhasse fosse a do Islão, valha-me Deus.
Aqui está a história do milagre que me aconteceu.
Um abraço,
JV

lidiasantos almeida sousa disse...

ESTOU DE VOLTA POR POUCO TEMPO. Como grande admiradora de um jeito manso, lamento não poder encaminhar para os meus amigos. Como posso fazer? cumprimentos e nem aço elogios, pois sao tantos que se tornaria aborrecido. je vous embrasse.

AV disse...

Bonitas fotos - e que lindos cachorrinhos!

Um Jeito Manso disse...

Olá JV

Não respondi ontem e hoje é na base da rapidinha. Percebo a sua estranheza. O mais parecido que me aconteceu foi andar a pintar cidades com cores ocre em que existiam viadutos a passar por entre telhados e chegar a Génova e parecer que estava a ver as cidades que andava a pintar. Claro que Génova é bem mais linda do que os meus pobres quadrinhos.

Tirando isso, espero que esteja tudo bem consigo, sem misérias nem aborrecimentos na vida. Não há male que sempre dure nem há misérias que mereçam tempo da nossa vida.

Por isso, be happy e marimbe-se para as misérias da vida.

Um abraço, JV

Um Jeito Manso disse...

Lídia! Mulher! Está de volta! Conte-me coisas! Por onde tem andado, que é feito?

E para passar o Um Jeito Manso de mão em mão é só fazer copy past (CrtC e Ctrl V), em cima do endereço que aparece na barra. Ou então é escrever:

umjeitomanso.blogspot.com

E conte coisas. As suas polémicas fazem falta.

Abraço, Lídia, abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá AV

Não são? Já viu? Saltam o muro, enfiam-se por entre os gradeamentos e vêm para perto de nós. Uma gracinha.

E nem sabe como vou matando as saudades de ter amigos cães...

Anónimo disse...

Essa bonita imagem que "A pluma azul tinha derramado a cor sobre a página em branco e agora todo o fundo estava azul. E a pluma estava nua, em toda a sua alvura, em toda a sua pureza. E eu pensei que daquela pluma as palavras haverão de nascer ainda mais límpidas, plenas de luz, inocentes na sua infinita transparência. E eu pensei que só podia ser milagre." pode ser um "chemtrail" e se o fôr o texto muda e o milagre passará a milAcre.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

Que falta de sentido poético o seu... Claro que, se calhar, é o resto do rasto de fumo de um avião mas faz de conta que não, que é uma pluma azul que ali derramou o seu azul para se entregar aos meus olhos em toda a sua alvura. Por isso, se não se importa, prefiro o milagre... :)