domingo, outubro 06, 2019

Crónica de um dia de reflexão in heaven
[Sendo que reflecti sobre muita coisa excepto, que me lembre, no que desaprendi durante a campanha pouco alegre destas eleições]





No outro dia dei dois vestidos meus à minha filha. Ela olhou para os vestidos e espantou-se por eu ter cabido neles. Não foi há muito tempo. Tento localizar no tempo e diria que talvez uns seis anos, por aí. Usava o 38 que, em letra, equivale ao M. A minha mãe diz que com ela foi a mesma coisa, diz que, com a menopausa, a roupa deixou de lhe servir, diz que, nessa altura, parece que alargou e que ficou com mais peito. Agora não, agora está outra vez mais delgada, elegante mesmo.


Os vestidos que dei à minha filha são intemporais; se calhar, se daqui por uns anos voltar ao 38, ainda me ficariam bem. Mas acho que não faz sentido estar a guardá-los, ficam-lhe a ela muito bem. São ambos de tecidos muito fininhos, ambos em verde, um em verde mais colorido estampado em flores cinzentas e outro num mesclado mais pastel em diferentes tons de verdes secos e beige. O primeiro é forrado mas o segundo não, fica completamente transparente. A minha filha disse que deveria ter um interior mas não o encontrei. Lembrei-me depois que sim, tinha, em malhinha de seda muito fina, em verde seco. Mas perdi-lhe o rasto. Há coisas que, na minha casa, desaparecem. Nunca me preocupo pois sei que voltam a aparecer. Só que agora é que dava jeito, não é quando lhes apetecer ver a luz do dia. Por isso, ela não o tem conseguido vestir. Lembrei-me que a minha mãe devia ter combinações. Este sábado de manhã, lá em casa, lembrei-me disso. Foi a uma gaveta do roupeiro e estava cheia de combinações e camisas de dormir de alças, umas de seda muito fina, outras de algodão também muito fino, com rendinhas ou bordados. Nunca usei combinação, nunca me dei bem com muita coisa em cima do corpo. Mas acho bonito, assim, dobradas, perfumadas, macias. Trouxe uma em seda numa cor que não sei definir, talvez um beige-profundo, talvez um rosa-velho esbatido. Tem cortes e pinças para se colar ao corpo, tem um decote elegante, tem umas rendas bonitas. Não sei é se não lhe estará um pouco larga na cintura. A minha mãe diz que não faz mal, se ela gostar, aperta-a nos lados. Trouxe-a para ela experimentar.


Ontem a minha nora também estava com uma blusinha arrendada, às flores, num colorido suave, que era minha. Também me estava justa demais e a ela fica mesmo bem. No outro dia, quando chegou lá a casa, disse que não tinha era um casaco quentinho que ficasse bem com o vestido que vai levar a um casamento, daqui por uns dias. Fui à procura e encontrei um casaco curto, escuro, em veludo muito leve. Ela achou que ficaria a matar. Disse que à noite já está frio e que preferia ir prevenida. Perguntei-lhe se precisava de uma estola e fui buscar uma de pele para ela ver. Ela, que estava de saia de verão, tshirt e sandálias, vestiu o casaco de veludo e colocou a estola e apareceu assim ao pé do meu filho que não tinha acompanhado a conversa. Espantou-se: 'O que é isso?!'. Ela disse que era para o casamento. Ele respondeu: 'Não me parece bem que vás mascarada'. Ela explicou que não ia levar a estola mas o casaco sim. Entretanto, a bonequinha mais linda agarrou no casaco e na estola, aperaltou-se e desfilou, linda. A mãe disse: 'A ela tudo lhe fica bem' e o meu filho olhou para a filha e não disse nada, penso que também achou que estava linda. Depois, toda coquette, pôs uns óculos meio malucos, de carnaval, que por lá andam e ficou deliciosamente extravagante. Tentei fotografá-la mas fez-se rogada. Tem alma de sedutora, um caso sério. Penso que ela herdará muitas roupas minhas. Tem um gosto muito parecido com o meu. Não receia ousar.


Mas é isto, passamos a roupa de umas para as outras. Por exemplo, no verão, usei muito, aqui, in heaven, uma blusinha fininha que era da minha filha e que ela já não veste e gosto da forma como me cai. E uso cá, por vezes, um vestido comprido, de alças, de algodão indiano em vermelhos florais, que era da minha cunhada.

Com os miúdos, então, nem se fala. Tirando o que se estraga, herdam tudo, passa de uns para outros. Só o mais crescido é que as inaugura a todas. Ela, a bonequinha mais linda, herda da filha de uma prima da mãe. 

Hoje a minha mãe, quando abriu o roupeiro, olhando para a roupa do meu pai, disse: tanta roupa que já não vai voltar a vestir, só se houver um milagre. Pensei que há milagres que, mesmo sendo milagres, são inexequíveis. E mostrou uns blusões bons e disse que, se calhar, ficavam bem ao meu marido. Ainda nem lhe disse. Nessa altura já estava no carro à minha espera, já não ouviu a conversa. Aliás, já estava era a ligar-me. Nem atendi, já sabia que era para me despachar.


No carro continuei a leitura de A mulher do meio. Gosto mesmo muito da forma como a Ivone Mendes da Silva escreve. O que ela conta não é nada de extraordinário, é apenas o seu dia a dia. Vai ao café, escreve, evita as pessoas conhecidas para não ter que lhes falar, caminha, gosta de olhar para dentro das casas quando à noite têm as luzes acesas e alguma janela aberta, enrola-se num xaile, bebe chá, fala do barulho do vento, fala das molhas que apanha quando está a caminhar e desata a chover, fala de uma mulher que faz árvores genealógicas no café, fala de uma flor no parapeito, fala do silêncio e da distância de que precisa. Mas fala de uma maneira tão fractal, uma escrita tão perfeita, que é um prazer lê-la.


De tarde, depois de almoço, deixei-me dormir. Só aqui, quando estamos apenas os dois, é que eu ponho verdadeiramente o sono em dia. Não há barulho, não há compromissos. Há apenas quietude e sossego.  

Depois, quando acordei, andava ele a regar e eu fui caminhar um pouco. Foi enquanto caminhava que tentei ler o maravilhoso poema da flor e não consegui. Há pouco estive a lê-lo ao meu marido, consegui. Ele ficou em silêncio e, quando lhe perguntei, disse-me que sim, que era muito bonito, que tinha gostado. E percebi que também o tocou.

Enquanto andei a caminhar, o frio já se fazia sentir, tive que vestir um casaco.

Fotografei tudo. Estava com saudades, tudo me pareceu de uma beleza reconquistada.


Descobri na rocha, num lugar para onde não vou muito, outro daqueles buraquinhos redondos. Enfiei lá dentro um pau comprido e não lhe senti o fundo. Não sei até onde irão estas misteriosas aberturas na rocha, nem sei o que lá dentro se esconderá. 

Está tudo dourado, naqueles suaves tons outonais que fazem desejar que venha o frio e os tempos de aconchego. Há também tons de cobre ou rubro. As folhas das parreiras estão quase transparentes, num matizado muito bonito. As árvores desenham bordados nas paredes e nos muros e eu, encantada, ponho-me a fotografá-los.

O eucalipto gigante está lindo. Ao fim do dia, parecia conter fogo nas veias. Creio que seja um deus pois só um deus poderia ter tal grandiosidade, tal beleza, tal superior perfeição.


Depois de jantar estive a ver um documento enorme, uma contestação. Um colega pediu que eu esclarecesse alguns aspectos e desse a minha opinião. Fiquei furiosa, cada vez mais à medida que ia lendo. Como é que deixaram que um assunto de pouca importância escalasse daquela maneira, falando-se já em milhões de indemnização? Nos homens o gosto pela guerra é responsável pela maioria dos disparates que se cometem no mundo. E aqui quando digo homens digo mesmo homens, seres com testosterona, e não género humano. A minha resposta espelhou a minha opinião: todo o processo era escusado, nada fazia sentido, sentassem-se e resolvessem as coisas a bem. E espero que a minha fúria tenha perpassado ao longo do texto e que os três destinatários estejam agora a ver como descalçam a bota.


Agora estou a ouvir o vento a namorar a copa das árvores. Ouço as ramagens num animado bailado. A natureza é sobrenatural. E eu, insignificante, frágil e efémera, penso que testemunhar isto é felicidade à qual tenho que estar sempre muito agradecida.

E estou a beber um chá. Há pouco li um texto em que a Ivone falava num chá de frutos da floresta. Também o tenho. Tenho vários, sou maluquinha por chás e infusões. A minha filha deu-me uma vez uma caixa com compartimentos, cada um com seu chá. Tinha pena de os beber, pareciam-me jóias raras. Receando que o que me apetecia, o chá branco misturado com gengibre, tivesse alguma coisa que me tirasse o sono, não me arrisquei, joguei pelo seguro: erva-príncipe. Uma das minhas avós tinha erva-príncipe no jardim. Este cheirinho faz-me sempre lembrar esses tempos e eu gosto.

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E o texto já vai indecorosamente longo. Não aprendo a ser contida. Não aprendo a moderar esta torrente de palavras que deseducadamente brota das minhas mãos.

Se conseguiram chegar até aqui são uns valentes, é o que vos digo. Eu não tenho essa paciência razão pela qual nem vou rever o que escrevi, pedindo-vos duplamente desculpa, seja pelo excesso do texto seja pelo mais do que provável bando de gralhas.


Finalmente: se ainda não leram, por favor desçam e vejam com os vossos olhos o poema que a flor escreveu:  'das paredes rompem flores'.

E outra coisa: votem, por favor. Não arranjem desculpas para não votar. Não votar não tem desculpa. O meu pai não vai votar porque está acamado e porque o mundo exterior já é, para ele, uma realidade distante cuja existência presumo que até desconheça. Tem, pois, uma boa razão para não votar. Mas tirando casos assim, extremos, não há desculpa. Vão votar, está bem?

2 comentários:

AV disse...

Um texto bonito sobre um dia sereno.

Um Jeito Manso disse...

Olá AV,

Gracias very much.

Se estou serena as palavras saem serenas. E que saudades tenho da serenidade quando estou no meio da cidade...