sexta-feira, setembro 06, 2019

A encantadora de gaivotas





No outro dia, os meninos perguntavam: porque é que há pessoas que querem domesticar tigres? Ou hipopótamos? Não percebi a questão, 'Em circos?'. 'Não. Em geral', esclareceram. Não soube responder. Disse que achava que não domesticavam. Disseram que sim, que há pessoas muito ricas que gostam de domesticar animais da floresta mas não percebiam qual a razão. Falhei a explicação, não conheço essa realidade, não sei.

Falei-lhes, então, noutro género de pessoas, as que sabem lidar com animais problemáticos e referi-lhes, como exemplo, aquele filme tão bonito, 'O encantador de cavalos'. Contei-lhes.


Encanta-me a vocação das pessoas que sabem lidar com animais, que os percebem a ponto de conseguirem estender-lhes a sua empatia, entendendo os seus sentimentos, os seus sofrimentos. 


Tenho total respeito por animais. A sua inteligência e a sua sensibilidade parecem-me inegáveis e cativantes. Já falei aqui muitas vezes da minha cãzinha mais linda, uma boxer doce como mel que viveu connosco durante quase treze anos, companheira alegre e dedicada, uma querida cheia de quereres e que nos amava do mais fundo do seu grande coração. Tal o desgosto que tive com o seu fim e tanto me custou a sua decadência e sofrimento finais que nunca recuperei. Não voltei a admitir sequer a hipótese de voltar a ter um animal por me ter sido tão insuportável despedir-me dela. Não consigo falar dela mais do que isto porque ainda me comovo, é desgosto de que não me refiz, e não quero estar aqui a desfiar tristezas. 

Tenho um amigo que virou vegetariano e que de súbito se tornou quase fundamentalista: diz que isso se deve a que pensa nos animais vivos e não consegue pensar que têm que ser mortos e que os iria comer assim, mortos. E eu, quando ele diz isso, nem quero ouvir pois sei que, se me deixar contagiar por tão tétrico pensamento, também ficarei incomodada. Portanto, bloqueio o pensamento nesse particular e continuo airosamente a comer carne e peixe (embora cada vez mais peixe do que carne e cada vez mais legumes e saladas).


Não sei se todos os animais têm inteligências no sentido em que egoisticamente lhe atribuímos, a de interagirem connosco. Mas têm inteligência para sobreviver, para se adaptar, para escolherem parceiros, para escolherem onde viver, para se reproduzirem e tratarem das suas crias e isso sem danificar o planeta o que, por vezes, é mais do que alguns humanos fazem. Não tenho, por isso, pretensão a ter uma inteligência superior à deles.

Veja-se as gaivotas. No terraço do hotel onde se pode também tomar o pequeno-almoço, por vezes há gaivotas. O meu marido não quer ficar lá pois irrita-se um bocado com elas: 'Putas das gaivotas. Cagam tudo', diz ele. É verdade mas isso só revela a sua capacidade de adaptação. Saem do mar, sabem que ali há croissants, ovos escalfados, crepes, coisa fina que o seu bico aprecia. Em vez de apenas peixes, comem o que encontram. E, terminando o horário da refeição, abrem as suas grandes asas e procuram os barcos de pesca ou o rasto de pescado que os pescadores deixam no areal.


Outras vezes ficam apenas ali, ao sol, contemplando o mar, sentindo a aragem a sacudir o muito calor. Gosto de observá-las. Acho um bicho muito bonito. Naquelas coisas meio parvas de nos perguntarem que animal gostaríamos de ser, hesito muito entre o cavalo e a gaivota. Acho que há em ambos aquele sentido intrínseco de liberdade, de elegância, de visão a la longue.

Fiz estas fotografias salvo erro ontem ou antes de ontem. Em algumas fotografias a encantadora de gaivotas vê-se mais de perto, apanhei-a a andar cuidadosamente para não as espantar e sorrindo enquanto assim caminha entre elas. Não as publico apenas porque daria para se perceber melhor quem é do que nestas que aqui partilho convosco. Claro que se essa mulher aqui se vir e não quiser aqui ser vista bastará que mo diga que logo a retirarei. Mas acho tão bonita a sua imagem entre as gaivotas que arrisco.


Também eu me pus a andar entre elas. Devagar, invisível, silenciosa. As gaivotas indiferentes. Seres superiores. Deixei que me sobrevoassem, baixo, falei com elas, e elas, talvez por não quererem saber de aprender a minha linguagem, dançavam, corriam e falavam lá na voz delas.

Ou talvez me percebam, talvez transportem as minhas palavras até longe, até outras paragens, até onde alguém por elas espere. Nunca se sabe, O que sabemos é uma insignificante parte do que há para saber,

Por isso, quem me diz que eu, tal como a encantadora de gaivotas, não fui escutada e as minhas palavras levadas sobre as suas longas asas até lá, longe, a outros mares e rios, onde alguém em silêncio espera reencontrar a luz que um dia se evadiu do meu olhar, quem me diz que todas estas belas gaivotas que dançam ao sabor da sua própria liberdade não ensaiam novos passos, belos como eternos abraços, belos como palavras escondidas em segredos expostos à luz do sol. Quem me diz.


E desejo-lhe a si que aí está a receber estas minhas palavras uma bela sexta-feira. 
Be happy.

3 comentários:

Anónimo disse...

Também me impressiona a ligação que algumas pessoas conseguem estabelecer com os animais, mesmo que não seja sua companhia. Alguns com árvores e outras plantas também. Sentem que têm sede, terra a mais, terra a menos, alguma doença que lhes esteja a co sumir por dentro... A maior empatia que senti foi por uma gata selvagem que apareceu na casa dos meus avós. Era muito fugidia: comia a comida que lhe deixavam só depois de se assegurar que ninguém estava por perto e se alguém se aproximasse fugia aos saltos para o mato. A minha irmã queria muito apanhá-la. O meu avô também andava tentando. Eu não queria incomoda-la e tinha algum medo dela, por isso só a observava à distância. Como se apercebeu de que eu não a incomodava, deixou de fugir quando me via por perto e começou a olhar-me de volta. Soube, então, ao olhar-lhe nos olhos que era boazinha. Há muito gato mau por aí. Como muitas pessoas de má índole. Os olhos não enganam. Junto à zona onde os meus avós deixavam os restos de comida, havia uns baldes velhos onde ela se roçava. Sempre a roçar-se. Uma vez, aproximei-me devagarinho, ela fugiu um pouco, voltou, aproximei-me mais, ela fugiu para mais longe, mas ficou a olhar-me, aproximei-me mais ainda e agachei-me ao lado dos baldes. Entre um e outro, no "trajeto" que ela fazia para se roçar. Ela aproximou-se e fez a roda do coçanço habitual, só que desta vez também se roçou em mim. Na vez seguinte já lhe consegui fazer festas e, pouco depois, já fazia rodas à minha volta e até se convidava a umas coçadelas. A partir de então, passou a deixar que lhe dessem festas e toda a gente se pasmou com a mansa que ele é. Um doce. Querida, querida aquela gata. Uns olhos azuis clarinhos sem um pondo da malícia típica dos gatos. Muitos filhos teve, um era um santo que teve uma morte trágica, outro era um gato viril e demoníaco, mas o que me custou mais foi o estado de degradação a que ela foi chegando. Uma orelha ferida que se curava e voltava sempre a infectar, surda, quase cega... E quando me sentia perto vinha roçar-se as minhas pernas e eu sem saber o que fazer, a doer-me o coração de a ver naquele estado, sem conseguir olhar para ela. Uma vida de sofrimento a daquela gata branca e sem nome. É difícil explicar a honra que sinto por ela me ter dado a sua confiança. Das ligações mais fortes que senti.
Um abraço,
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

só hoje consigo chegar acordada à hora de responder aos comentários.

Comoventes as suas palavras. A ligação entre pessoas e animais é qualquer coisa de estranha. Que afinidade existe entre uma pessoa e um cão? Ou um gato? Não se percebe. Mas, quando existe, é absolutamente genuína, imutévl. Não dá para fingir, não dá para hipocrisias. É tudo muito verdadeiro.

Se visse os olhos de tristeza da minha cadela quando estava já sem forças, a querer levantar-se e as pernas a vergarem. A forma como ela me olhava, a tristeza que eu sentia nela, e a tristeza que ela devia sentir em mim... Tão triste. E houve uma altura em que desmaiava. Começava a fraquejar, a fraquejar e depois caía. Eu ficava petrificada, numa aflição que nem imagina, com medo que ela fosse morrer, a querer agarrá-la, a chamar por ela.

Há afectos genuínos cuja memória não se apaga. É uma honra, como diz, um privilégio sem tamanho, um laço indelével.

Obrigada pelo seu testemunho. O amor pelos animais faz as pessoas serem melhores.

Abração, JV.

Paulinho Bran is everybody sister`s friend disse...

Vi a pomba que observa as gaivotas