sábado, agosto 31, 2019

Uma realidade de que não se fala





Há não muito tempo o The Guardian contava How self-love got out of control interrogando-se sobre se o narcisismo seria o novo normal.

Vi uma conferência na qual a oradora revelava o crescente aumento do número de narcisistas na sociedade [Managing A Narcissist: Ann Barnes]. As razões serão muitas, desde o enfraquecimento da disciplina parental, passando pelo crescente isolamento pessoal até ao uso cada vez mais intensivo das redes sociais que acarreta uma permanente necessidade de aprovação e reconhecimento. 

Referia ela um estudo levado a cabo ao longo de trinta anos junto de estudantes. No início, nos anos 80, cerca de 30% da população estudada era narcisística e 70% empática. Cerca de 30 anos depois, em tempos já recentes, o que se verificou foi exactamente o oposto, apenas 30 % revelavam traços gerais de empatia. E isto é tanto mais preocupante quanto, a manter-se esta tendência, daqui por uns anos viveremos tempos complicados, com uma população cada vez mais narcisísica e menos empática. O que se tem visto a nível sindical já o demonstra bem: classes profissionais que exigem tratamento de excepção, custe o que custar junto de quem for, seja sacrificando doentes, seja prejudicando um país inteiro. Cada um acha-se com direito a tratamento privilegiado porque se acha o mais imprescindível, o mais importante de todos -- ou isso ou porque, simplesmente, se está nas tintas para os outros. 

Narcissists are everywhere — 
but they may not be the people you think they are
in The Washington Post


Claro que nem todos os narcisistas são iguais.

Segundo aprendi, estima-se que 1% da população seja composto por narcisistas psicóticos. São casos geralmente graves -- e nem vou deter-me na frieza com que alguns narcisistas criminosos agem, achando-se com direito a tudo fazerem sem quererem saber do mal que causam.

Depois há o grupo dos narcisistas extremos, cerca de 6 a 10% da população que, não sendo patológicos, são tóxicos, extramente tóxicos. A oradora compara-os a uma hera venenosa e diz que devem ser deixados sozinhos e 'untouched'. São também um perigo porque dissimulam a sua personalidade e manipulam os sentimentos e a mente dos que lhes estão próximos.

Há depois os outros, a maioria, os que são sobretudo uns maçadores, uns chatos, uns auto-centrados, com dificuldade numa boa integração, sempre propensos um clima de conflitualidade, a intrigas, uns passa-culpas, ou, então, uns eternos adolescentes, com aspirações pessoais que se sobrepõem geralmente às da equipa em que deveriam sentir-se inseridos.  Em ambiente profissional ainda se conseguirá fazer alguma coisa deste grande grupo de narcisistas moderados mas não é do melhor que se pode ter como colega de trabalho ou como amigo.

O problema sério reside, pois, no 1% de narcisistas pscicopatas e nos 6 a 10% de narcisistas tóxicos,

E se a nível pessoal, lidar com um narcisista pode desgastar e, mesmo, anular a personalidade de quem lhe está mais próximo (e, talvez por isso, os especialistas se refiram a essas pessoas como 'vítimas de abuso narcisista'), a nível social é um factor de corrosão que pode pôr em risco os fundamentos da democracia.

Tem-se visto o que tem sido não apenas a nível sindical mas também a nível político em que narcisistas doentios têm manipulado emocionalmente os eleitores, conseguindo fazer-se eleger e, uma vez lá, tem sido o fartote  que se tem visto um pouco por todo o lado (Trump, Bolsonaro, Boris, Salvini, etc). Dizem e fazem o que lhes dá na gana porque se acham os maiores, com direito a tudo -- e que se lixem os que não gostam deles, que se lixe o país, que se lixe o mundo.

Pessoas narcísicas encontram terreno fértil junto de pessoas carentes, pessoas que sentem sempre necessidade de apoio, que acreditam que, com eles, se sentirão mais seguras, melhor acompanhadas. 

Segundo li, os narcisístas são muitas vezes suportados por codependentes, pessoas que, justamente, temem ser rejeitadas e que fazem de tudo para se sentirem amadas, protegidas, apoiadas, acompanhadas.
Não sou especialista pelo que o que vou dizer é mera conjectura mas talvez seja essa a razão para que exactamente os sectores mais vulneráveis da sociedade sejam os que mais apoiam os narcisistas, acreditando em tudo o que dizem, votando neles, defendendo-os, até com violência, contra todas as evidências.
O vídeo que abaixo partilho é muito interessante e, apesar de ter a duração de dezassete minutos, vê-se de bom gosto. Foca muito as relações interpessoais e a forma de actuarem das pessoas com estas características. Não são apenas os especialistas na área que têm a palavra: são também as vítimas e é também um exemplar dessa espécie com a qual a sociedade tem sido condescendente ao ponto de os ver multiplicar-se na maior impunidade, alastrando como uma erva daninha.

Narcissistic Abuse: An Unspoken Reality



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E queiram aceitar o meu convite e ver como o fantástico Randy Rainbow lida com o mais estuporado narcisista da actualidade, o Cheeto Christ Stupid-Czar

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Bela recolha! Fez um uso impecável dos dados para compor uma prosa muito esclarecedora sobre a matéria.

Uma coisa é certa, o narcisismo patológico nos seus variados graus desenvolvimentais nunca será saudável.

Viva o amor!

Um fim-de-semana supimpa!

Um Jeito Manso disse...

Obrigada Sr. Dr. Francisco. Vindo de quem vem, de um profissional da área e estudioso com provas dadas, as suas palavras deixam-me contente. Muito obrigada.

Um sábado radioso para si.