sábado, junho 22, 2019

Uma friday de que não posso queixar-me: um escândalo que me faz rir, um jantar na montanha com sobras para um almoço, uma sala muito ampla que dá para uma varanda suspensa mas relvada, etc


Vista das praias a partir de Monchique



Esta sexta-feira foi daquelas de que se diz que thanks God it's friday. E teve muita coisa lá dentro e todas boas mas, se postas em perspectiva, nada de especial. A realidade é fractal e, quando se decompõe sucessivamente nos pequenos momentos que lhe dão corpo, há um momento em que todas se igualam entre si, as coisas muito importantes e as completamente insignificantes.

Portanto, vou passar sobre elas a vol d'oiseau, mostrando os instantes deste dia em toda a sua irrelevância.

Serra de Monchique

E, assim sendo, posso dizer que estou numa sala muito ampla, muito moderna, muito despojada, o género que o meu marido aprecia. Um sofá largo, muito largo, também muito comprido, com almofadas em que podemos pegar para melhor nos ajeitarmos. Em frente tenho duas mesas, uma debaixo de outra. Se quiser tiro uma de lá e ficam duas, que posso pôr onde quiser. De um dos lados há um cadeirão de repouso, de braços, largo. Em frente há um móvel baixo com um móvel alto de um dos lados. Em cima do móvel baixo há uma televisão enorme que deu alguma luta. Agora acho que está sob controlo. Esqueci-me de referir a carpete. É marfim claro com umas linhas em cinza de um dos lados, como se desenhos a lápis. Do outro lado do sofá há uma mesa de linhas direitas, elegante, com quadro cadeiras. Poderia estar sentada à mesa mas habituei-me a estar meio reclinada no sofá com o computador sobre as pernas e, por isso, é assim que estou.


Desta ampla sala, que tem uns quadros grandes sobre o sofá, passa-se, através de portadas de vidro a toda a largura da sala, para uma varanda relvada de onde se vêem copas de árvores que vêm de lá mais em baixo e de onde também se vê a serra em volta. Nessa varanda há duas espreguiçadeiras. Num recanto coberto da varanda há uma mesa com duas cadeiras de palhinha escura. 

Ao fim da tarde estive na espreguiçadeira a falar com a minha mãe, com a minha filha, com um colaborador e com uma colaboradora, mas a ordem dos telefonemas foi a inversa pois prefiro deixar a família para o fim. Com o meu filho falei à noite, depois de jantar.


Claro que, se quisesse ser ainda mais fractal, contava o teor dos telefonemas e aí daria para ver como num deles tratei de um assunto que vai pôr em brasa algumas pessoas mas acho que vai mesmo ter que ser porque há coisas com as quais não poderei pactuar por muito mais tempo e como com a outra tratei de um tema que, a ser como parece ser, pode vir a fazer rolar cabeças e, pior, a fazer tremer algumas famílias e tudo porque há gente que não tem noção e, por isso, não posso continuar sem virar a mesa. E noutro falei de turistas brasileiros que agora há tantos e endinheirados, tão diferentes dos imigrantes de há uns anos, que era quase só o que se via, gente que passava necessidades lá no Brasil e que vinha para cá para fazer um pé de meia, para mandar dinheiro para a família, para mandar vir irmão, primo, filho, e agora é gente que vem dar ar à nota, ver a Europa, o Portugal, mostrar largueza orçamental. E no quarto telefonema falei das notas dos meninos, falei da visita de estudo de fim de ano lectivo de um deles, falei de coisinhas assim, simples, familiares.

Mas não vale a pena entrar em detalhes. Fractais destes são tão óbvios que nem carecem de demonstração. A vida é feita de mil compartimentos, de mil contradições. E, quando os abrimos e de dentro deles tiramos outras caixinhas e mais caixinhas, às tantas o que há em cada uma são meros pequenos nadas.


Posso também falar do jantar. Um restaurante no alto da serra, uma vista maravilhosa, um cair de noite vagaroso, suave. O típico restaurante de montanha, de madeira, tectos de madeira, salamandra de ferro na parede de pedra, luzes de candeias, um balcão de madeira com copos suspensos por cima. Achámos os preços um bocado caros mas pensámos que o lugar era tão bonito que valia a pena. Quando vieram as doses até nos assustámos. Tanta comida. Comemos bem demais. No fim sobrou outro tanto. Pensei: se der para levar, já temos almoço para amanhã. Perguntei, pois, ao empregado se podia pôr os sobrantes em caixas. O meu marido sentiu-se no dever de explicar: 'É que é comida a mais'. O empregado disse: 'É a imagem da nossa casa: servir bem'. E acrescentou que claro que poria o resto em caixas. Duas caixas cheias. Duvido que não seja mais do que uma refeição.

Para a mesa ao lado da nossa chegou um casal que talvez fosse mais ou menos da nossa idade. Já deveriam conhecer a prática: pediram apenas uma dose para os dois. Ele, mal chegou, pediu a password do wifi e passou o jantar todo a ver o telemóvel. A mulher também jantou em silêncio, de vez em quando pegando no pé do copo de vinho e olhando-o como se atentamente. Não trocaram uma só palavra. Por vezes a solidão materializa-se de uma forma quase dolorosa.


Também posso falar de como me diverti à vinda para cá. 'O escândalo do século' é hilariante. Descreve um processo de investigação que
se converteu num animal de muitas patas. Cada vez que se chamava alguém a depor, era preciso chamr outros declarantes, para determinar a veracidade dos testemunhos. Aquilo parecia o jogo do 'dá, antes que leves'. Novos nomes iam surgindo. E a imprensa, por seu lado, fazia investigações espontâneas e aparecia no dia seguinte com novas revelações.
E o que começou por ser a investigação do que se supunha poder ser um crime acabou numa barafunda em que já nada fazia sentido, suspeições do mais nonsense que se possa imaginar, maluqueira da pura, mas como se fosse tudo normal.

E eu, lendo aquilo, só me lembrava do desvario do processo Marquês para onde foram sendo arregimentados mais e mais suspeitos e para onde foram carreadas provas e mais provas até que ficou um monstro com tantas patas que agora o pobre do Juiz nem deve saber como dar conta daquilo tudo.

Ainda não cheguei ao fim do 'escândalo do século' mas palpita-me que terá o mesmo desfecho que o caso Marquês.


Talvez pudesse contar ainda mais umas coisas destas, coisas de nada, sem história. Mas presumo que não interessem muito a quem me lê. De resto, amanhã temo ser acordada cedo. Durmo com um candidato a galo madrugador. Já temos um programa de festas bem nutrido para este sábado e ou muito me engano ou, à noite, vou ter muito que aqui contar. Vou estrear-me numa coisa. Contei à minha filha e ela intuíu logo: 'presumo que tenhas roupa apropriada...' e eu confirmei: 'pois foi, esqueci-me...' Ela suspirou: 'logo vi...'.

Mas logo vos conto.

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Em itálico um little excerto do livro do Garcia Márquez.

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Tentarei amanhã agradecer os comentários. Hoje não dá, impossível de todo. Sorry.

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E um bom sábado. Saúde e alegria.

4 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É tantas vezes do "nada de especial" que se extrai o belo e a UJM fá-lo na perfeição.
Esse "enfarda brutos" em bom deve ser um belo paraíso gastronómico.

Ai o Marquês...Uma telenovela portuguesíssima*, cheia de histórias mirabolantes e tão inverosímeis, mas que não conseguem a graça do Realismo Fantástico.

Tenha um rico programa de Sábado...

*Citando a propaganda da "Moita Carrasco", que dava na primeira versão do "Eu Show Nico".

Anónimo disse...

Onde ficam estas paisagens? E o tal restaurante?
P.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

E o que fiquei a saber é que a história da Wilma Montesi que eu li, até certa altura, a pensar que era fruto da imaginação de Gabriel Garcia Márquez afinal é o relato do que se passou mesmo. Estive a pesquisar e fui descobrir que aquilo que me fez rir a achar que era uma investigação mirabolante, estapafúrdia, tresloucada, em que toda a gente já era suspeita, em que tudo parecia suspeito, tinha, na realidade acontecido. Um processo que nasceu de ter morrido uma jovem desconhecida e que aparentemente foi acidente mas em que se quis investigar se não teria sido suicídio ou homicídio. E, às tatas, já andava uma actriz 'envolvida', já se falava em drogas, em orgias (apesar da rapariga ser virgem), já havia comunicados do partido comunista a dizer que não tinha nada a ver com o caso. E, tantos os suspeitos e tanto o desvario, nunca se concluíu coisa nenhuma.

Abraço, Francisco

Um Jeito Manso disse...

Olá P.

Fica nas Caldas de Monchique, serra de Monchique. E o restaurante é o Luar da Fóia.

Dias felizes!