Quando eu acabei o liceu (assim chamávamos, na pré-história, a algumas escolas de ensino secundário), os meus pais perguntaram que presente gostaria eu de receber. Pedi, imagine-se bem, uma máquina de escrever. Era azul, transportável, fechava-se a tampa e todo o mecanismo recolhia. Não sei o que tinha eu na cabeça quando achei que me poderia ser útil. Acho que nunca a usei. Tenho ideia que imaginei que teria que apresentar trabalhos que não deveriam ser feitos à mão. Parvoíces de adolescente sonhadora (se bem que ninguém tal diria de mim, acho eu).
Penso que devia ser fetiche que cresceu comigo desde a infância -- e, obviamente, fetiche não é, uma vez mais, a palavra certa. Na verdade, acho que tinha ainda viva em mim a memória de quando era pequena e, nas férias, ia para a escola onde a minha mãe dava aulas. Deixava-me na Secretaria. Ocupava um lugar numa secretária e, ali instalada, numa cadeira que andava à roda, era capaz de estar uma tarde quase inteira a escrever à máquina. O supra-sumo da felicidade acontecia quando o chefe da secretaria me dava um papel químico e eu o colocava entre duas folhas. Com mil cuidados, ajeitava-o em volta do rolo, travava-o e conseguia a magia de fazer as minhas obras em duas vias. Quando, no intervalo, a minha mãe ia ver como é que eu estava a portar-me, tinha sempre um manancial de folhas escritas para lhe mostrar. E estava orgulhosa. Aquela vida de escritório parecia-me o cúmulo da realização profissional, com carimbos de várias cores e tamanhos e respectivas almofadinhas, um enorme com uma alavanca (seria o selo branco?), envelopes, arquivos, armários com pastas. Um mundo que, na altura, eu imaginaria fantástico e imutável.
Não faço ideia que é feito dessa minha máquina azul. Penso que não percebi que era objecto que passaria a histórico e não o salvaguardei devidamente.
Trabalhava eu há pouco tempo, fiz parte de um grupo de trabalho que tinha um ambicioso projecto a seu cargo. Era eu e uns sete homens jovens. Era uma alegria. Foram dois ou três anos extraordinários. Tínhamos que fazer relatórios regulares. Uma secretária, mulher bem mais velha que nós e que estava por nossa conta, ia passando tudo aquilo à máquina. Via-se e desejava-se. Éramos um grupo de malta motivada que produzia prosa que se desunhava. A meio da prosa tínhamos números, cálculos e, inclusivamente gráficos. Ela andava doida. Queríamos que aderisse ao tratamento de texto mas ela dizia que nós lhe dávamos tanto trabalho que não tinha tempo para aprender aquilo. Por vezes, quando acabava um relatório, o autor resolvia introduzir um parágrafo a meio e ela, pobre, tinha que refazer tudo. Eu odiava aquilo, sentia que ela era quase nossa escrava. Escrevia de manhã à noite. Zangava-se, queria que revíssemos e pensássemos bem antes de lhe entregarmos aquelas folhas cheias, muitas com uma letra macarrónica, mas também se fartava de rir com a irreverência e sentido de humor daquela rapaziada e era público e notório que adorava trabalhar connosco. Dizia a toda a gente que nunca tinha gostado tanto do trabalho que fazia. Por fim, já opinava e já nos dava conselhos e eu, muitas vezes, quando tínhamos ideias avançadas em mente, antes de avançarmos, ia validar com ela o sentido prático da coisa. Por fim, conseguimos convencê-la a aderir ao Display Writer mas quantas vezes a ouvi dizer que cedia para não nos ouvir porque achava que escrevia mais rapidamente na sua máquina. Não sei o que terá sido feito de todas as muitas centenas de máquinas que, na idade da pedra, existiam na empresa. Quanto a ela, querida amiga, reformada há que tempo, estou a dever-lhe um telefonema. A ver se lhe ligo para a semana.
Também existiam telefones grandes, com marcador de andar à roda. E havia, na empresa, uma central telefónica extraordinária que era operada por uma telefonista. Punha e tirava cavilhas com fantástica destreza. Tinha idade para ser minha mãe e eu gostava muito de conversar com ela. Tinha uma sabedoria incomum que, na volta, resultava de ouvir muitas conversas, se calhar mais do que as que devia. Mas não me interessava: na realidade, achava-a até mais interessante talvez, justamente, por isso. Quem sabe guardar segredos, deve merecer o nosso apreço.
Quando comprámos a casa onde agora estou, encontrámos, na divisão que viria a ser o quarto da minha filha, um telefone bonito, encarnado, com teclas. Era um objecto com ar moderno. O antigo dono era emigrante e trouxe muitas coisas de França. Quando vendeu a casa, desinteressado de tudo, deixou cá mobília, talheres, bibelots, alguns livros em francês. Deitámos muita coisa fora mas muitos eram objectos invulgares, notoriamente vindos de outras paragens. A mulher tinha-o deixado. Odiava vir de França para estar aqui enfiada no meio do campo. Contaram-me que discutiam muito e que, por vezes, saía de casa a correr, por vezes nua, e ele ia atrás, a chamar por ela. Tinha o mesmo nome que eu mas, pelos vistos, ao contrário de mim, não encontrou aqui o seu heaven. Como aqui não temos telefone fixo, levei-o para a cidade. Para os meninos aquilo é uma coisa bizarra à qual acham imensa graça pelo que estavam sempre a fazer chamadas. Acabei por desligá-lo para eles poderem brincar à vontade. Acho que há anos que não o ligo e nunca me lembro de tal coisa. Os telefones fixos também caíram em desuso.
Ou as máquinas fotográficas. Tenho, num móvel do escritório, algumas. Objectos de estimação. Tínhamos objectivas especiais, tripés, flashes. E rolos. Íamos pôr os rolos a revelar a lojas de fotografia. Quando eram a preto e branco, revelámos os rolos em casa e também fazíamos as fotografias. À noite, quando os meninos estavam a dormir, com uma lâmpada encarnada especial. Um ambiente mágico, uma emoção inesquecível.
O vídeo abaixo mostra objectos que, expectavelmente, não tardarão a desaparecer. Tem graça. Somos passageiros do tempo e os que nos sobrevierem olharão para as relíquias que lhes deixarmos como curiosidades que os farão sorrir. Usemo-las enquanto têm utilidade pois não tarde teremos que as encostar às boxes.
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As fotografias foram feitas este sábado in heaven e resolvi pô-las aqui por contraste: a natureza não passa de moda, não perde utilidade, não vira coisa obsoleta. Nós e os nosso objectos é que somos perecíveis, efémeros. Lá em cima a música de Max Richter chama-se, justamente, She remembers.
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E depois há o que não tem tempo nem utilidade nem propósito e que, por isso, nos sobreviverá como, por exemplo, os animais de vento de Theo Jansen
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