quarta-feira, julho 04, 2018

Svetlana foi ao Porto e é tudo demasiado bonito para ser verdade.
Mas fazer o quê? Um quarto dos poemas também não é imitação literária...?
Portanto, nada como uma bela ménage a trois



Na pintura eu prefiro o que não se sabe o que é, o que não pretende ser bem feitinho. Na fotografia eu prefiro o pormenor indefinível ou o plano quase abstracto ou o prédio que tem uma árvore à frente. Na moda eu prefiro as assimetrias, as peças que se levantam ao passar da aragem, os decotes que quase poderiam ser precipícios. Nos textos eu prefiro os que têm as costuras à vista, os que provocam ou enternecem por razão nenhuma, os que me dão vontade de lhes passar uma rasteira. Nas pessoas eu prefiro as mal comportadas, as imperfeitas, as que procuram os sobressaltos.

E podia continuar.

Por isso, se vejo um poema muito arrumadinho, de uma lisura métrica e uma gramática simétrica, se numa música eu ouço uma melodia muito quadradinha, sem um sopro fora do sítio, se numa pessoa eu sinto pruridos, cuidados e temores e se numa fotografia eu vejo a pretensão da perfeição -- eu viro as costas e sigo noutra direcção. Tudo o que é muito composto, muito bem comportado ou muito perfeito a mim parece-me apenas foleiro. 

Não suporto a mediocridade ou a foleirice, em especial quando aparecem mascaradas de grande coisa.

Nomeadamente.

Estava aqui a ver umas fotografias e os meus olhos bocejavam de tanta perfeição. Até que numa achei o lugar familiarmente bonito. Detive-me. Li: Porto. Portugal.

A opinião manteve-se mas o meu olhar sentiu aquela tolerância generosa que a gente guarda para as pessoas da família por quem não sente empatia mas a quem dedica atenção porque, enfim, família é família -- Portugal é Portugal e eu tenho-o sempre no coração mesmo quando me aparece enroupado in lovely tiles.

Não sei se a Svetlana levou um banho de photoshop ou de outra coisa qualquer nem isso me interessa. O que sei é que há na autora vontade de beleza e isso merece ser louvado. A beleza é fundamental, é vitamina para a alma. Кристина Макеева tem várias fotografias deste género e, reconheço, algumas bonitas.

Mas, pronto, não faz bem o meu género -- e apenas a trago aqui porque se esmerou colocando a Svetlana envolta num padrão de azulejos e mostrando um luso-espaço que é mesmo bonito e, portanto, ok, por esta passa. E, porque hoje estou com o meu coração pacificado (confirmo: já fiz a minha má acção do dia), coloco até uma segunda fotografia da dita Кристина (desta vez a Svetlana estava em Valensole, Provence, França, toda ela cheirando a lavanda)

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Agora gostava mesmo, mesmo, é que ouvissem este belíssimo poema de Herberto Helder lido por Fernando Alves num vídeo do distinto Cine Povero, sobre pintura de Escher

Um quarto dos poemas é imitação literária
(...)
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na 
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
(...)

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E termino com um poema que acabei de receber. O L. envia-mo, desejando-me o melhor e eu, agradecida, partilho-o com todos os meus outros Leitores. Há pessoas simpáticas. É como a Gina que me deixou um comentário tão querido. Muito obrigada.


Inesperada chegas e te anuncias,
Rompes no subterrâneo das madrugadas
Os pedregosos trilhos dos meus dias
Nas rotas sempre inacabadas.
Entreabertas gelosias
Na esperança das luzes coadas,
Que sempre irrradias,
Nessas sonolentas e místicas chegadas
Envoltas nas tuas coqueterias.
Sol nascente,
Anúncio de um maio transbordante
No riso incendiado e quente.
Eterno e incansável navegante
Rasgando nas águas da nascente
O destino de um futuro distante.
No precipício do coração... latente
O redimir de um respirar ofegante,
Submerso no delírio que se pressente,
Exaurido, mas ainda ofertante
Ao prenúncio do astro incandescente.






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Afinal agora é que é, agora é que termino. E termino da melhor maneira. Com uma discreta ménage a trois. Que é como quem diz: com um pas de trois.

Os primeiro-bailarinos do Royal Ballet Edward Watson, Marianela Nuñez and Nehemiah Kish interpretam uma coreografia de Frederick Ashton: Monotones II. Música de Erik Satie. Coisa em bom.


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