domingo, junho 17, 2018

Primeiras memórias





E depois fomos a casa dos meus pais e daí ala moço que se faz tarde, a caminho deste meu lugar na terra onde eu sou mais eu. É aqui que agora estou, in heaven

Tarde de calor. Roupas de verão, cheiros de verão. À vinda, tinha começado a ler o último livro do Miguel Sousa Tavares. Como sou da contra-corrente, não li o Equador nem o que se lhe seguiu. Em contrapartida, tinha lido e gostado do Não te deixarei morrer, David Crockett. Gosto de livros de memórias, gosto de diários, de cartas, de blogs. Este livro também é de memórias. Mas, como sempre acontece, adormeci.

Chegada cá a casa, voltei a ele e, desta vez, não adormeci. Estou a gostar. Comecei pelo fim. Depois li a meio. A seguir, convencida que já estava, fui para o princípio. Miguel tinha feito seis anos na véspera, quando a mãe o chamou para lhe dizer que ia mandá-lo para casa da madrinha. Porque os pais não tinham dinheiro que chegasse para educar todos os filhos, enviaram-no a ele e a outra irmã para casa de quem se dispôs a ajudar. A irmã não sei para onde foi. Ele foi para aquela Quinta no norte. Aí esteve ano e meio e, durante esse ano e meio, apesar de estar longe da mãe, da casa e das irmãs, foi feliz. 


Começa o livro com a evocação da primeira memória de si próprio. Estava na copa e viu um raio de luz.

Pensei nas minhas primeiras memórias. Muitas vezes penso que, se calhar, invento as minhas memórias. Ouço ou leio que as pessoas apenas guardam memórias do que se passou quando já tinham idade que se visse. Eu não. Eu recordo coisas de quando era quase bebé mas recordo-as de tal forma que não me parece que sejam produtos da minha imaginação. Por exemplo, lembro-me muito bem de quando fiz um ano. Lembro-me de ter ido a casa dos meus avós maternos e de os meus pais me terem deixado à porta com um menino um ano mais velho que eu e de quem eu gostava muito. Eu já andava. Era verão e eu tinha um vestidinho branco e uns sapatos brancos. E lembro-me do sítio onde estava e lembro-me de ele me ter ido levar a casa dos meus avós e ter dito 'ela fez chichi'. E a vergonha que tive. Muita vergonha. Era uma menina crescida, tinha feito um ano e, no entanto, tinha feito chichi nas cuecas.

Fui muito, muito amiga desse menino até aos meus dez anos. Inseparáveis. Foi seguramente o meu melhor amigo até essa idade. Lembro-me muitas vezes dele. Lembro-me de passar horas e horas com ele, conversávamos muito. A inteligência dele fascinava-me bem como a sua contenção e paciência. Nunca se zangou comigo, apesar de eu frequentemente fazer de tudo para tentar tirá-lo do sério. Tinha um coração de ouro. Trabalhou na banca, tendo chegado a um lugar de relevância. Mas aquele não era o seu mundo. Contou-me a minha mãe que arranjou uma depressão, depois negociou a saída antecipada. Vive no campo, a maior parte do tempo sozinho. 


Lembro-me também de umas meninas gémeas que tinham um irmão mais crescido. As meninas eram mais velhas que eu e gostavam de tomar conta de mim como se eu fosse uma boneca. Tinham um gato. Gostavam de costurar vestidos para as bonecas e para o gato. Lembro-me do gato miar muito e de uma segurar no gato enquanto a outra o vestia. Depois vinha o irmão e zangava-se com elas e, no meio da confusão, o gato fugia e elas ficavam furiosas com o irmão. Não me lembro dos pais deles, só mesmo deles e do gato.

Lembro-me de um outro menino que tinha o mesmo nome que o primeiro. Uma vez esse meu amigo não estava e eu fiquei muito triste, sem saber o que fazer. Lembro-me da minha avó me dizer que fosse brincar com o outro mas eu não quis, não tinha graça aquele, não sabia tantas coisas, não conversava comigo, só fazia parvoíces sem jeito. Fiquei em casa, triste, à espera que o meu amigo chegasse.


Também me lembro de odiar leite, aquele leite morno, que me sabia a leite gordo e que, se arrefecia, criava umas natas que me davam vómitos. De manhã, a minha mãe não sabia o que fazer para o meu pequeno-almoço. Juntava ovomaltine mas, apesar de mais suportável, não conseguia beber de seguida. Também não gostava de pão da véspera, seco, sem graça. Mais tarde, a minha mãe viria a descobrir que, se fizesse papas de aveia a que juntava ovo, casca de limão, e que decorava com canela, eu gostava. Mas, tirando isso, eu não gostava de nada. Só já adolescente percebi que se o leite fosse magro, sem açúcar e frio até gostava. Também adolescente percebi que, se a minha mãe me tivesse dado iogurte e fruta e frutos secos, eu comeria tudo. Mas não. Quando era pequena, ela queria que eu me despachasse e eu não conseguia. Então, combinava que, quando chegasse à escola infantil, a educadora me daria pão que a padeira ia levar ainda quente e eu gostava muito daquele cheiro a pão quente que era barrado com manteiga e a manteiga logo derretia e, para me convencer a beber leite, a educadora juntava-lhe uma pinga de café mas nem assim, só gostava mesmo do paozinho quente. Nunca gostei de garotos, galões ou essas coisas mornas e doces.


E lembro-me, também na infantil, de haver um menino terrível, que gostava muito de mim e eu dele. Portava-se sempre mal e eu gostava cada vez mais dele. Por exemplo, comia formigas. Os outros meninos e meninas ficavam escandalizados. Mas eu não queria ficar-lhe atrás e também as comia. As meninas, então, ficavam chocadas mas eu gostava de chocar as meninas bem comportadas. Tinham um sabor agudo, ácido, as formigas. Não gostava mas também não era completamente horrível. Soube mais tarde que era ácido fórmico. Quando a minha mãe soube, passou-se, proibiu-me. Mas as formigas que eu já tinha comido... Se tinham que fazer mal, já fizeram, paciência. Por essa altura, também nos davam lá na escola óleo de fígado de bacalhau. Não me lembro se o tomávamos todos pela mesma colher mas tenho ideia que sim. Fazíamos fila e havia um frasco grande. Sempre ouvi dizer mal do óleo de fígado de bacalhau mas eu nunca tive razão de queixa. Aliás, gostava. 

E lembro-me bem de tudo isto.

Também me lembro de entrar um menino mais novo que eu. Ele tinha quatro e eu cinco. E ele apaixonou-se por mim e, de vez em quando, saía da mesa dele e vinha ter comigo e punha-se de joelhos abraçado às minhas pernas, como que querendo fazer isso às escondidas. A educadora pegava nele por um braço e dizia: 'olha o maluco do rapaz, para o que lhe havia de dar'. Eu não ligava porque ele era dos pequenos e eu já era dos grandes.


E lembro-me do irmão mais novo daquela que viria a ser minha tia e que morava ao lado da escola ter tido um grande acidente e ter ficado muito mal, paralisado, e eu ficar tão impressionada, tão aflita, que não queria ir para aquele lado do recreio com medo de vê-lo. Acho que não suportaria a ideia de vê-lo tão diminuído, numa cadeira de rodas. Aliás, durante anos tive pavor, absoluto pavor, de pessoas com ferimentos ou doenças. Penso -- mas não sei se foi mesmo -- que tenha a ver com aquilo de que já aqui falei, do meu avô materno ter morrido num acidente e de terem tentado ocultar de mim, e de a minha mãe e a minha avó terem ficado muito perturbadas e de me terem mandado para casa da minha outra avó para tentarem preservar-me. Tal como nessa altura fiquei gaga (não sei durante quanto tempo, mas creio que uns meses), devo ter ficado de tal forma traumatizada que não apenas não me lembro de nada relacionado com isso como ficava aterrada quando via alguem ferido ou doente.


Mas tudo isto são memórias de bem novinha, tudo isto de que falei se passou antes de chegar à primária, ou seja, antes de fazer seis anos.

E há ainda uma coisa de que eu acho que me lembro mas essa, a ter acontecido mesmo, teria sido anterior a ter feito um ano e, por isso, admito que seja apenas memória do que os meus pais contavam. E, no entanto, aquilo de que me lembro é da parede, do candeeiro, de uma senhora vestida de escuro e de uma casa muito sombria. 

Já contei: fui fenómeno. Comecei a falar aos seis meses. A primeira palavra foi cão e dizia-a quando, na rua, o cão ladrava. A minha mãe assustou-se. Chamou a vizinha. O meu pai chegou e encontrou as duas assombradas. Mas a seguir a cão vieram outras palavras. Uma vez, contam, foram a casa da madrinha do meu pai. E, quando a madrinha acendeu a luz, eu disse luz e preguei um susto à senhora. E eu acho que me lembro desse dia pois lembro-me de estar ao colo da minha mãe e de não gostar daquela casa nem daquela senhora mal encarada e lembro-me de todos a quererem tirar a limpo e que eu repetisse luz mas eu não dizer porque não queria estar ali. Mas, se calhar, é efabulação minha em volta da descrição dos meus pais.

Não sei.


Penso que se me puser a recordar, as memórias, como cerejas, começam a surgir.

Por exemplo, lembro-me de que, quando o meu primo estava para nascer, teria eu uns cinco anos ou quatro, já que ele tem cinco anos de diferença para mim, fui com os meus tios e com a minha avó convidar essa madrinha do meu pai para madrinha também do meu primo. Deve ter sido numa altura de férias e eu devia estar em casa da minha avó. E essa madrinha disse que, se fosse menino, gostava que fosse Luís e a minha avó disse que gostava que, se fosse menino,  tivesse o nome do meu avô que tinha morrido uns dois ou três anos antes, e, ao dizer isso, desatou a chorar. E os meus tios ficaram comovidos mas disseram 'Então, agora o que é isso...?' mas ela chorava sem parar. Lembro-me muito bem disso. Era de noite e estávamos numas cadeiras debaixo de um caramanchão de flores. E o primeiro nome do meu primo é mesmo o nome desse meu avô.

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Já escrevi demais. É tardíssimo. O meu marido dorme a sono solto. Daqui a nada levanta-se e vai desbastar árvores. Hoje esteve a cortar pés de azinheira ou aroeira que estavam a crescer na barreira. É madrugador e eu sou noctívaga. Quando me levanto ao fim de semana já ele está a pé há horas. Ele lastima eu não ver o nascer do sol e eu também lastimo não ouvir o despertar dos pássaros. Mas nada a fazer, sou assim, bicho da noite e do silêncio.

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As fotografias foram feitas esta tarde aqui, in heaven, e Nelson Freire interpreta 'Melodía de Orfeo y Eurídice' de Gluck

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