terça-feira, maio 22, 2018

Nesta distância doce e cruel





Já ontem o grande Almada o decretou e eu, porque ele o disse e porque tem tudo para ser verdade, acreditei. Acreditei e disso poderia até fazer profissão de fé. Mas nestas coisas sabido é que bem prega Frei Tomás. Trabalhei como uma besta de carga e isso só pode ser porque sou uma burra encartada. A inteligência pode não ser grada mas, para saber que sou burra, chega.

Ao fim da tarde, que, por acaso, era quase noite, já estava a sentir-me desidratada, com a tensão baixa, à beira da descompensação. E, estava eu a tentar chegar inteira ao fim da reunião, eis que espreita alguém a perguntar-me se amanhã lá estava, a sina já lida para o dia seguinte, e, mal consegui safar-me dali e me preparava para despachar uma meia dúzia de mails para dar de frosques, eis que me aparece um que tinha estado à minha espera e, quando consegui descacar mais aquele abacaxi, tinha outra muito preoupada com uma coisa para me dizer, mais uma emboscada na qual não tive paciência para me enfiar. Saí de lá quase foragida, tentando raspar-me incógnita.


Já de manhã tinha avisado que não me dissessem mais nada porque já não conseguia assimilar mais chatices.

Passo-me quando me dizem que não me maçam com miudezas, que me poupam, que apenas me trazem aquilo que não conseguem resolver. E eu a pensar: 'Poças, pá, deviam era fazer o contrário, poupar-me a sério, resolverem todos os berbicachos e trazerem-me só as frioleiras'. Mas não, ninguém me poupa.

Olho para os meus próximos meses e é de susto. Não sei que convergência astral é esta: tudo a mudar ao mesmo tempo, mil coisas para fazer e todas em simultâneo. Não tenho ideia de ter vivido tamanha sobreposição de coisas deste calibre. Não as escolho, nada disto foi minha opção. Penso que terá a ver com o fim da crise, com a economia a despontar à força toda, como se tudo tivesse estado estancado e agora, como um dique que se rebenta, sai tudo ao mesmo tempo, com urgência, com uma força que atropela o descanso a que eu já deveria ter direito. Penso e digo o que antes nunca tinha dito ou pensado: 'não sei se vou aguentar'. Mas ninguém me leva a sério. Acham que aguento. No fundo, conhecem-me: sabem que sou burra. Burra de carga.

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Bem.

Talvez isto seja mesmo uma espécie de diário. Escrevo estas coisas porque,  chegada aqui a esta hora, parece que sinto necessidade de despejar este meu cansaço. O cansaço saindo através de palavras, fico leve, pronta para outra, com vontade de esvoaçar, de dançar, de nadar. 


É verdade, esqueci-me de contar. Uma manhã como a que foi e uma tarde como a que ia ser, não tive alternativa: fui a correr à livraria. Andar entre os livros leva-me deste mundo para fora.
Se calhar deveria antes escrever: leva-me para fora deste mundo. Mas não faz mal, fica como está, acho que vai dar ao mesmo. 
E o bom é que, quando ali entro, não vou à procura de nada. Melhor: vou na disposição de não querer nada a menos que tenha que ser.

E aconteceu: teve que ser.

Um é de um autor cujo blog que
-- apesar de esparsoso (eu sei, sei, Senhor Linguagista, esparsoso não existe mas, se gosto de pisar o risco em tantas coisas, não haveria de pisar também aqui e estender a mão para apanhar, do lado de lá, uma palavra ainda não inventada, porquê? Ora essa, Senhor Guardião [das Palavras Inventadas) -- 
eu sigo e que integra a minha galeria de fantásticos Frescos & Bons.

O outro livro é daquele ganda maluco que, vá lá eu saber porquê, não me canso de ouvir e ler. Uma encadernação linda, um bom tamanho, uma paginação das boas. Só espero que o Henrique, mui ilustre livreiro e sabedor como nenhum outro da nobre arte de bem fazer livros, quando for a dar os seus globos de ouro (ou os nobeis* ou oscares ou whatever) repare nele e o premeie, que bem merece ir directo para o pódio.
[* sei que deveria ter escrito: os nobel. Mas não me apeteceu.]
Trancrevo um pouco e não digo qual é porque não gosto de deixar spoilezinhos por aqui. Fica o mistério para os entendidos desvendarem.
Com os olhos e as mãos te faço meu. Se tu agora fizeres o mesmo, com os olhos cerrados saberás quem sou. Com as minhas palavras faz-me ser, constantemente te rogo. Escreve as minhas lágrimas. Com elas faremos um rio, numa margem estás tu, na outra estou eu. Escreve a minha dor mais funda. Não ficarás salvo -- quem quer ficar salvo neste mundo não te merece -- mas não passarás em vão. tudo está no procurar, pouco no encontrar. Verifica a pergunta antes de tentar a resposta. Sê quem és. Escreve-te como eu me escrevo, nesta distância doce e cruel.

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As duas primeiras fotografias a preto e branco podem ser vistas até finais de Agosto em Paris na exposição Chaillot, mémoire de la danse 

Para fazer pendant, lá em cima Stacey Kent interpreta Que reste-t-il de nos amours

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