quarta-feira, dezembro 27, 2017

Por quem sois, claro que isto não é um balanço de 2017




Começo a ver balanços um pouco por todo o lado, está na altura deles. Não que me façam falta ou que me entretenham o desfastio. Mas tenho pena de não ser capaz de fazê-los. Se fosse, se calhar também não os fazia mas, enfim, não fazer era uma coisa voluntária. Assim não, assim é olhar para balanços alheios e pensar: para eu conseguir produzir um teria que fazer uma monda danada, como quando quero oferecer fotografias e tenho que passar em revista as milhares que fiz ao longo do ano. Penso: se calhar a coisa inteligente era, de cada vez que faço uma fotografia engraçada ou que acho algum evento marcante, fazer-lhe logo a devida assinaladela para, no fim do ano, as tarefas estarem praticamente aviadas. 

Acreditem. Os melhores filmes do ano, os melhores livros do ano, as frases mais inteligentes do ano, os actos mais fantásticos, as músicas mais maravilhosas -- assim de repente não me lembro de nada. Ou, então, começo a desbobinar aquilo de que me lembro e sei lá eu se foram os melhores.

Mas, lá está, que interesse tem estar a desenterrar os mortos para os glorificar?
Ok, estupidez, sei que sim. Um livro lido não é um livro morto. Idem para o resto. Foi uma metáfora não apenas sinistra mas também estúpida. Mas é que não quero já saber do que fiz, a única coisa que me interessa é o que vou fazer.

Listas. To do lists. Também nunca fiz. Não gosto de me programar. Gosto de me sentir livre para fazer o que me apetecer.

Lista de boas intenções. Nunca fiz. Não tenho boas intenções, só más.

Acho extraordinário quando aconselham as pessoas a fazerem uma lista de projectos ou de ideias a perseguir no ano que se segue. Eu nem pó. Nunca na vida fiz tal coisa. Sei lá o que é que devo fazer. Em vez disso posso entreter-me a ler horóscopos ou a deitar cartas de tarot. Claro que mal acabo, já me esqueci. Tem uma graça momentânea mas altamente perecível. Por exemplo, fui agora ver à Vogue o que me aguarda em 2018. Como sempre, espera-me: trabalho, desafios, a minha criatividade posta à prova. Coisas assim. Sempre isto. A nível de amor também um ano em grande, paixão transbordante e quem sabe se até um bebé. Pelos vistos, até a menopausa me vai passar. E eu tão descansada que ando que já nem me lembro dessa coisa dos anti-concepcionais. Bolas, bolas, bolas. 

Bem. Adiante. 


Isto para dizer que acho muito bem. Um diz que vai ler a Agustina, outro voa sobre o ano que voou, outra diz que vai ser assim e assado e até a Estrela Serrano distribui medalhas. Gosto de ver. Gente com a cabeça no sítio. Tomara eu.

Eu, que tenho a minha sempre na lua, o mais que consigo dizer é que o Marcelo é incontornável. Até de carrocel já o vi hoje na televisão. Ia de boné e quase podia parecer outro mas juro que era ele. De vez em quando diz uma ou outra com sentido. Mas parece que já quase esgotou o reportório de coisas assisadas. A maior parte das vezes já só o ouço a dizer irrelevâncias, a anunciar cuidados para daqui por um ano, a sugerir remoques contra incertos ou a querer que se façam casas sem projecto, se calhar na candonga, clandestinas, e sem orçamentos, sem nada, tudo na base do sempre a abrir. E quando vê que as casas até já foram efectivaente construídas -- e como deve ser, algumas boas como nunca foram antes e tudo certinho, direitinho -- aparece a dizer que isso não chega, tem que se fazer mais. E o engraçado é que ele diz isto sabendo que o Governo está mesmo a estudar a forma de repovoar o interior, de aí dinamizar a economia. Mas o Marcelo parte do princípio que as pessoas não sabem que o Governo está a trabalhar nisso e aposta em que, quando as coisas aparecerem feitas, a malta pense que foi graças a ele e às bocas que andou a espalhar aos microfones e perante as câmaras. Cansa-me este Marcelo. Não é tanto já me enjoar aquilo de ele andar sempre a escarafunchar no luto alheio e a dar beijinhos a tudo o que mexe, é mesmo a sua necessidade compulsiva de dizer coisas. Não interessa que coisas. Coisas. Sempre a dizer coisas. Sempre na televisão a dizer coisas, sempre metido em cenas a dizer coisas. Um cansaço.


É que eu, assim que me lembre, a quem devemos mesmo tirar o chapéu é a António Costa. Pisando terreno quase sempre minado, com uma oposição desmiolada e desavergonhada, com uma comunicação social acéfala e com uma agenda muito própria em que vale tudo, com uns amigos de geringonça que acham que, para não perderem o pé, devem andar sempre com ralhetes, ameaças e greves pela trela, e com um presidente ciumento e obsessivo-compulsivo relativamente à fama, Costa tem conseguido ultrapassar a barreira de fogo alimentada pelo coro de carpideiras que está sempre à espreita, escudada pela ideologia do neo-afecto, tem resistido ao facilitismo e tem conseguido ir equilibrando as contas, restabelecendo a confiança e restituindo a dignidade aos portugueses. Com a sua forte alavancagem pessoal até conseguiu que Centeno fosse a presidente do Eurogrupo e vamos ver se, uma a uma, as pedras do caminhos europeu não começam a apontar num outro sentido que não o da dispautérica austeridade. Nem tudo tem sido perfeito e alguns maus momentos para sempre pesarão na memória colectiva de 2017 mas António Costa fez o melhor que conseguiu e o que se vê é que não foi pouco.

Tirando isso. Não me apetece falar de um outro incontornável, um outro narcisista. Só que, a nível cultural, esse outro não chega aos calcanhares deste nosso. Nem tem de base uma matriz democrática nem lhe dá para andar a bater perna vinte horas por dia a distribuir afecto e a fazer-se à selfie. Este a que agora me refiro é estúpido, bronco, básico e perigoso. Trump. A anedota do século. 


Nem me apetece falar de algumas outras palhaçadas. Maus passos que a populaça, quando estimulada emocionalmente, volta e meia dá. Por algum motivo (e empresas como a Cambridge Analytica lidam bem com esses 'motivos'), uns resolvem atirar-se para fora da Europa e vão atrás do verbo insuflado de chicos espertos que, à primeira dificuldade, metem o rabo entre as pernas e arrepiam caminho, outros resolvem separar-se do país ao qual sempre pertenceram. Derivas independentistas que a razão desconhece e que, tarde ou cedo, darão com os burrinhos na água.

Também não vou falar dos que partiram -- e não foram poucos. Nos enterros há aquela velha máxima que toda a gente diz, encolhendo os ombros: é a lei da vida. Não sei se é, se não é. É o que é e nada se pode contra isso. Uns vão cedo demais, uns sofrem demais ao partirem, outros deixam um estranho vazio que se sabe que nunca será preenchido. 

Mas há também os que chegam, leves como o futuro inteiro que têm pela frente e a quem desejamos toda a sorte e felicidade do mundo. Transportam em si o tempo por viver e a esperança de melhores dias.


A nível artístico muitos foram os que me proporcionaram bons momentos mas há dois em que estou agora a pensar -- e, lá está, se eu fosse de elaborar raciocínios ponderados, talvez pudesse, em consciência, afirmar a pés juntos que são estes e nenhuns outros; assim, são apenas os que, neste instante, me estão a ocorrer. E são eles:
  • o Salvador Sobral. Menino talentoso, invulgar. O coração que o acompanhou enquanto levou a canção da mana Luísa aos quatro cantos do mundo já não é o que agora lhe bate no peito. E eu desejo, mas desejo muito, que saia desta, que o transplante vingue, que todos os seus órgãos reajam bem e que, cedo, cedo, volte a estar bem, que recupere totalmente e que, um dia destes, já aí o tenhamos de volta, cantando e encantando, irreverente e alegre -- por muitos e bons anos;
  • e Alma Deutscher, essa menina prodigiosa que compõe, improvisa, interpreta. Sonatas, concertos, óperas. Canto. Uma coisa inacreditável. 
Devia agora puxar pela cabeça para tentar falar também de pacifistas, ambientalistas, fotógrafos, bailarinos, escritores, políticos. Devia. Mas não vou fazê-lo. Ia falhar muito. 

Também não vou falar das grandes dores, das grandes vergonhas, de todas as traições feitas ao género humano ou cometidas contra seres vivos, em geral. Iria também falhar em toda a linha. Por cada pequena conquista, várias pesadas derrotas. E se para ilustrar este não-texto escolhi ao acaso algumas imagens que, por algum inconsciente motivo, me agradam, para terminar escolho duas que, por motivos totalmente conscientes, ilustram a barbárie que vive dentro de nós.



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Mas, não obstante a bestialidade cujas demonstrações nos ferem o coração, o mundo é ainda um lugar maravilhoso, múltiplo nas suas magias e encantos.
É bom viver.
Convenhamos: 2017 não foi um ano mau de todo. 



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2017 está, pois, quase a acabar.
E que acabe em beleza que cá estaremos para as despedidas e para receber, com esperança, 2018

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