Conheço por dentro o que é trabalhar numa grande organização onde há várias linhas hierárquicas, muitas forças por vezes com objectivos contraditórios, muito poder disseminado pelas bases, por locais geograficamente dispersos, em que uns respeitam sensibilidades, outros se sentem ligados a fidelidades antigas, em que uns temem que outros pensem que eles os querem ultrapassar ou imiscuir-se no seu foro de competências, etc, etc. Conheço.
Ou seja, conheço por dentro o que é, perante uma situação -- que requereria atenção ou uma condução ágil, em tempo oportuno e com rédea curta --, por mil cuidados, mil temores, mil indefinições, mil urgências a sobreporem-se a trabalhos verdadeiramente importantes, assistirmos a nada ser feito, deixando que aconteça o que nunca deveria acontecer.
Claro que nem sempre isso acontece, nem sempre isso acontece com assuntos críticos, nem sempre é irremediável.
Mas pode acontecer que seja. Ou seja, pode acontecer que estejamos perante um desastre anunciado e, para estupefacção geral, o desastre acabar mesmo por acontecer sem que ninguém o tivesse impedido.
Há nos portugueses esta coisa: medo de ferir susceptibilidades, muita cortesia, muito deixar andar a ver se nada acontece, muito não se meterem em maçadas quando, às tantas, tudo vai correr bem, fiarem-se na virgem e não correrem. E outra coisa: não ter planos de contingência. Esperar que corra bem. Não ter a máquina oleada para situações em que a coisa dá para o torto.
Quando trabalho com alemães constato a diferença abissal. Enquanto os portugueses planificam e ala moço que se faz tarde, bora mas é meter mãos à obra e, se houver azar, cá está a malta para desenrascar, os alemães são um desespero: perdem um tempo do catano a planear tudo ao detalhe, planificando também detalhadamente cada linha de fuga, cada contingência. Tudo tem que ficar percebido, aprendido e procedimentado antes de alguém pôr o pé na tábua. As horas e horas e dias e dias que perdem nisto parece aos portugueses pura perda de tempo mas, no entanto, percebe-se, quando alguma coisa corre mal, que a forma como reagir estava ab initio já prevista.
Vem isto a propósito das notícias que ouvi na rádio: que há uma meia dúzia de anos já aconteceu um outro roubo de armamento, que esse processo ainda está em curso, que há (penso que) um ano aconteceu outro, que parece que desconfiaram de um sargento ligado a uma rede internacional de roubo de armamento, que há pouco tempo houve uma denúncia na PGR de que se preparavam novos roubos e que, pelos vistos, ninguém agiu nem avisou quem deveria ter sido avisado -- e isto parece-me tudo do além.
Brandos costumes. O cúmulo do deixa andar. Na verdade, uma bandalheira.
Metem-se as Forças Armadas, a Polícia Judiciária Militar, a Procuradoria, os Tribunais, os Ministérios -- e, como sempre em que há muitas instituições envolvidas, cada uma cheia de pruridos e fricotes quando se sente beliscada, sempre que há porcaria verifica-se o mesmo: ensarilham-se todos e nada acontece. Um maná para a gandulagem, especialmente para a bandidagem organizada.
É que uma coisa são situações em grupos económicos em que a indefinição ou a sobreposição de poderes ou a forma coisinha de ser gera perda de clientes, sobrecustos, multas ou outros contratempos e outra, bem diferente, são situações a nível de gestão da coisa pública em que o que está em risco é a segurança das pessoas, a saúde ou a qualidade de vida das populações.
Não é mal de agora, este, não é mal deste Governo. Não. É coisa provinciana, mal endémico, doença antiga. É, na verdade, uma coisa muito portuguesa.
E os exemplos estão por todo o lado. Os processos arrastam-se anos e toda a gente aceita, os paóis são deixados ao deus dará e é uma surpresa para todos os responsáveis que aquilo fosse quase bar aberto (e daqui por pouco tempo já ninguém quer saber disso), e há um incêndio e há um monte de gente a mandar bocas e toda a gente a pedir inquéritos e todos se sentem épicos a exprimirem a sua revolta, muito manifesto no Face e muita força de likes -- mas, com vossa licença, tudo junto nada mais é que tusa do mijo. Meia volta e passou.
É que o mal não é da ordem do fogacho. Não. É profundo, antigo.
E os exemplos estão por todo o lado. Os processos arrastam-se anos e toda a gente aceita, os paóis são deixados ao deus dará e é uma surpresa para todos os responsáveis que aquilo fosse quase bar aberto (e daqui por pouco tempo já ninguém quer saber disso), e há um incêndio e há um monte de gente a mandar bocas e toda a gente a pedir inquéritos e todos se sentem épicos a exprimirem a sua revolta, muito manifesto no Face e muita força de likes -- mas, com vossa licença, tudo junto nada mais é que tusa do mijo. Meia volta e passou.
É que o mal não é da ordem do fogacho. Não. É profundo, antigo.
E, para o atacar, muita mangueirada tem que haver, muita liderança com o prego a fundo, muito profissionalismo, muito sentido de estado, muita consciência nacional.
Claro que é complicado mexer neste status quo com governos com mandato para quatro anos, suportados por deputados em que a maioria deles não sabe o que anda a fazer, nem sabe nada de coisa nenhuma.
Só um governo muito hábil, muito sabedor e muito determinado será capaz de perceber a reforma profunda que tem que ser feita. Este governo tem mostrado ser competente e eu só espero que, depois deste valente choque anafilático, António Costa venha inspirado e enérgico para pegar o assunto pelos cornos. Mas tem que haver um grande entendimento entre muita gente e com o total patrocínio do Presidente da República pois tem que se mexer, a fundo, em muitas organizações e tem que se estar disposto a abdicar de muitos pequenos e egoístas pequenos poderes, tem que se aceitar trabalhar em equipa, tem de se aprender uma forma profissional de trabalhar.
A não se fazer nada disso, vou ali e já volto. E não vale a pena andarem a chamar comentadores a granel para os balcões televisivos, fazerem comissões de inquérito com deputados armados em pides de trazer por casa, a TSF pôr-se a organizar Fóruns em que abrem os microfones a tudo a que é ignorante ou besta encartada ou a Fátima Campos Ferreira chamar uns para estarem a favor e outros contra com a malta toda a bater palmas. Não passa por aí. É preciso mais. Muito mais. É preciso seriedade.
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As imagens são pinturas de Wassily Kandinsky
A música é de Schubert: Marcha Militar
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E um dia bom para todos.
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A música é de Schubert: Marcha Militar
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E um dia bom para todos.
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