Tal como previsto, a manhã logo a rasgar.
(Não sei bem em que circunstâncias se usa a expressão 'a rasgar' mas, no contexto, parece-me apropriada).À hora de almoço saí a estalar, o gps em acção que o destino era vagamente diferente do habitual e não podia arriscar-me a andar perdida: fui ver a festa de fim de ano lectivo do meu mais crescido que não foi na escola mas noutras instalações. Espigado, compenetrado e a desempenhar na perfeição o que era esperado dele, o orgulho e amor que senti justificaram o dia.
Foi ele que inventou o nome pelo qual hoje todos os meninos me chamam.
Ele, bebé, dizia o monossílabo e a minha filha um dia disse: eu acho que ele te está a chamar, que é o nome que ele te dá, porque só o ouço dizer isto quando estás cá em casa. Não acreditei. Era apenas um som dito e repetido por um bebé. Afinal o tempo provou que sim. Todo ele se ria e batia os pezinhos e os bracinhos, repetindo o que viria a tornar-se o meu segundo nome. Meu menino mais lindo.
Lembro-me tão bem quando ele nasceu. Eu no hospital, tensa, à espera. Depois, quando se resolveu, o pai da criança saíu, orgulhoso, e veio dizer que estava bem; e, logo a seguir, a médica veio ao berçário mostrar o bebé. E eu tive uma crise de alegria completamente fora de controlo. O meu marido estava a trabalhar. Liguei-lhe para lhe dar a boa nova. Queria dizer-lhe 'Já és avô'. Mas a emoção era tanta que, numa daquelas saídas bruscas de vapor que acompanham a descompressão, comecei a ficar com a voz embargada. Queria falar e não conseguia. Depois as lágrimas a rolarem. E ele 'Então? Já nasceu?' e eu queria começar a falar e não conseguia. Por fim, ao esforçar-me, ele percebeu que eu estava a chorar. Já aflito: 'Mas que foi? Aconteceu alguma coisa?' e eu pensava, caraças, que estupidez, estou a assustá-lo, e queria dizer aquela coisa tão simples 'Já és avô' e só chorava. Ele enervado 'Fala. O que foi? O que é que aconteceu? Diz.' Tive que fazer um esforço de superação, superação da parvoíce aguda, e tenho ideia que desisi de dizer a fórmula mágica e que me limitei a dizer, num sufoco, que já tinha nascido e estava tudo bem.
Mas, portanto, tanta alegria. Depois, quando ela saíu da sala de partos, sorridente, com a sua cria junto a si, foi outra vez a emoção à solta: ver a minha filha tão feliz, tão realizada, ver aquele bebé filho dela, foi maior felicidade do que quando a tive a ela. Entretanto, já passei por este estado de felicidade absoluta mais umas quantas vezes. Uma emoção penta-vivida. De cada vez, sempre a alegria da primeira vez. Cada um deles único, o primeiro, o meu amorzinho mais lindo.
Mas continuando: de tarde. E mais uma tarde de estalão. Coisas, coisas, coisas. Até um mail em que um artista me dizia que uma certa coisa já hesistia. Li aquilo, encolhida, arrepiada, aterrada. Pensei: ninguém merece. Depois, la está, descomprimi e dei uma valente gargalhada.
Ai que mundo diverso -- e por vezes desvairado -- que me traz, no mesmo dia, tantas emoções contraditórias.
Ai que mundo diverso -- e por vezes desvairado -- que me traz, no mesmo dia, tantas emoções contraditórias.
Depois, ao fim do dia, caminhada. Passeio, conversa solta, descanso mental. Depois, fazer o jantar (pescadinha de anzol, batata doce que não comi porque ainda persisto na dieta, cenoura, feijão verde, cebola, ovo cozido) ... e, mais tarde, ao chegar à sala e, mais concretamente ao sofá, pimba. Caída a dormir. Que nem uma pedra. Ando mesmo estafada.
Quando acordei, dei uma volta pelas notícias e a única que me interessou foi uma sobre o que nos diz a forma como as fêmeas escolhem os machos com quem querem fazer sexo. Vi isto não num site pornográfico mas na National Geographic. Aí encontrei aquela bela expressão que Drawin usou: the taste for the beautiful. Essa ideia, que Darwin plasmou em palavras depois das suas observações, tem sido comprovada por várias gerações de cientistas. E é uma ideia que me é cara.
Também para mim, e *os feios que me desculpem, mas beleza é fundamental.
Se eu quiser definir a beleza neste contexto, e pensando nos homens que ao longo dos anos tenho achado atraentes e, em particular, naquele que me prendeu e que, desde há muitos anos, me traz presa (mas, calma, presa não pela trela mas pela liberdade), penso que talvez mais do que uma beleza clássica, perfeita, o que a mim mais me atrai é achar que será um bom parceiro sexual, é olhar e ver que ali está um homem capaz de uma boa pegada. Um bom reprodutor, portanto. E, portanto, com esta conclusão, percebo que, mais do que um ser racional, sou um simples ser animal, tentando garantir o prolongamento da carga genética, propagando-o através da descendência.
O meu marido que lê o que escrevo, chega a este ponto e deve achar normal que eu diga isto pois está farto de saber que é isto que penso (ou melhor dizendo... de mim já espera tudo). Os meus filhos, que também lêem, também já não devem estranhar mas talvez tenham dificuldade em ver os pais como uns meros animais reprodutores. Mas somos. É o que somos. De nós dois já nasceram eles os dois e deles os dois já nasceram mais cinco pessoas.
Dito isto, até parece que nesta escolha não há lugar para o romance. Mas há. Envolve-se o desejo básico, primordial, em sedução, jogo de olhares, jogo de palavras, envolve-se isso tudo em afecto, em compreensão --- e o romance está feito. Vai-se juntando tudo isso (e quantos mais ingredientes se juntam, maior será a animação) até a coisa ficar respeitável e duradoura. Mas é pela atracção sexual que tudo começa. Pelo menos, comigo é.
Já contei tantas vezes que já toda a gente deve saber de cor. Quando vi o meu marido e o achei altamente apetecível não sabia quem ele era nem como era. E, no entanto, pus o meu namoro da altura em risco e mostrei-me, sem pudor, apaixonada e disposta ao que fosse preciso, porque, no meu íntimo, sabia que não descansaria enquanto não o tivesse nos meus braços. Calhou bem que veio a revelar-se mais do que um belo corpo, mais que um belo rosto, mais do que uma bela maneira de andar. Mas foi sorte. E por isso tem perdurado.
E o que me encanta em tudo isto é pensar que pelo meu estouvamento, que me levou a seduzir e a deixar-me seduzir pelo rapaz mais bonito da faculdade quando namorava firme um outro, resultou esta família de que gosto tanto, filhos felizes que têm também famílias felizes. Fosse eu a menina ajuizada que supostamente deveria ter sido, e poderia ter constituido também uma família, mas não era esta e eu, hoje, parece que só sou eu porque os tenho a eles.
Bem.
Está aqui a querer parecer-me que a conversa vai meio maluca. Isto é do sono. Fico desestruturada das ideias. Daqui a nada tenho que estar a pé e não consigo puxar pela cabeça para falar de coisas mais espertas. Ainda por cima o supra citado artigo tinha pano para mangas (o facto de serem as fêmeas a escolher e os machos terem que andar a bandear-se junto delas a ver se lhes caem no goto, a cena diferenciadora do pato, etc,) mas o meu estado de depauperação anímica leva-me a ter que fazer ouvidos moucos aos apelos e a ter que me deixar ficar por aqui. Mais há mais dias.
Lembrei-me de trazer ao texto algumas pinturas com beijos (Toulouse-Lautrec, Chagall, Magritte, Klimt e Jean-Léon Gérôme) e, depois de o ter lá em cima em Eu não existo sem você, numa composição com Tom Jobim e com a voz da Maria Bethânia, vou terminar outra vez com aquele* poema de Vinicius:
Lembrei-me de trazer ao texto algumas pinturas com beijos (Toulouse-Lautrec, Chagall, Magritte, Klimt e Jean-Léon Gérôme) e, depois de o ter lá em cima em Eu não existo sem você, numa composição com Tom Jobim e com a voz da Maria Bethânia, vou terminar outra vez com aquele* poema de Vinicius:
Receita de mulher, escrito e dito por Vinicius de Moraes
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E saibam que gosto de vos ter aí desse lado.
Desejo-vos a todos um dia muito feliz.
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