Naquele dia, acordou com um leve formigueiro na ponta dos dedos. Esfregou as mãos. Passou.
Quando se levantou, espreitou o rio. Tão azul. O céu também tão limpo, tão azul. Lá ao fundo um veleiro. De volta ao quarto, olhou-se ao espelho no corredor. Parou intrigada a ver-se. Qualquer coisa lhe parecia diferente. É o sono ainda, pensou, e fechou os olhos com força tentando forçá-los a acordar. Quando os reabriu não se viu bem.
Foi até à casa de banho, lavou a cara. Quando voltou a ver-se ao espelho já quase se reconheceu. Apanhou o cabelo. Pesou-se. Quando saíu de cima da balança reparou que não tinha reparado no peso. Olhou-se de lado. Mais magra. Tomou banho. Alguma coisa parecia não estar certa.
Foi até à cozinha. Nua. Comeu uma fruta, bebeu um sumo. Tocou com uma mão na outra onde tinha sentido o formigueiro. Normal.
Nua ainda, foi até à janela. Depois afastou-se um pouco do vidro temendo que a vissem. A seguir sentou-se na cadeira de balouço da varanda. Olhou as pernas. Passou a mão pela pele tentando perceber se teria que se depilar. Não. Apenas uma leve penugem, macia, clara, inofensiva.
Foi até ao computador e escreveu como se estivesse vestida: dois mails profissionais e um post circunspecto. Depois espreitou os mails pessoais. Centenas. Abriu um ao acaso e respondeu.
De volta ao quarto, soltou o cabelo, perfumou-se, escolheu uma lingerie nude transparente, depois umas calças brancas, justas, e uma blusa de seda turquesa com flores em rosa vivo e outras transparentes. Escolheu os brincos, uma pulseira. Foi até ao espelho e penteou-se. Passou uma sombra nos olhos e um gloss em tom rosado.
Depois calçou uns sapatos altos em branco. Estava pronta.
Contudo, ao dirigir-se à porta sentiu, de novo, que havia alguma coisa estranha. Olhou-se ao espelho mas o grande espelho em talha dourada do hall mostrou uma outra mulher.
Pegou no telemóvel e escreveu: não vou trabalhar, parece que não me reconheço.
Descalçou-se, foi de novo até à janela e pensou que não se lembrava se tinha enviado a mensagem mas também já não se lembrava onde tinha deixado o telemóvel.
Dirigiu-se, então, ao computador e escreveu:
De noite fugiu-me a alma para a casa onde um dia julguei poder inventar o amor. De madrugada, quando as gaivotas apareceram, acho que consegui trazer o corpo de volta mas a alma parece ter ficado por lá. Acordei sem asas, um formigueiro na ponta dos dedos. Olho os meus olhos e não lhes encontro o brilho. Terá também ficado por lá. Estava nua quando acordei mas lembro-me bem de andar, por lá, com um vestido branco, comprido, transparente, bordado em baixo, com botões à frente que alguém tinha desabotoado de alto a baixo. Os botões eram pequenas borboletas em madrepérola. Nunca antes tinha visto tal vestido. Quando acordei, nua, destapada, rocei com a perna num objecto. Era uma pequena borboleta, pequena como um botão de madrepérola. Não estou a sonhar. Serei uma sombra, um vestígio daquela outra que vagueia pela casa onde as memórias se acolhem e onde em vão grito por um nome, mas a sonhar não estou.
Depois despiu-se, deitou-se de novo e dormiu durante toda a manhã. Sonhou que tinha perdido o vestido, que alguém a tinha tentado aquecer com uma echarpe em pelo branco. Acordou sentindo uma qualquer coisa, uma estranheza que não conseguiria definir. Talvez se sentisse observada mas a verdade é que não viu ninguém.
Aos pés da cama, um tule branco, bordado.
Aos pés da cama, um tule branco, bordado.
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