Para as letras portuguesas o Prémio Camões é um prémio maior. Através da atribuição do Prémio Camões conheci Raduan Nassar ou Dalton Trevisan. Fiquei felicíssima quando o prémio coube a Hélia Correia ou Manuel António Pina.
Confesso que hoje, ao regressar a casa, no carro, ouvindo Manuel Alegre a ser entrevistado sobre um prémio atribuído mas, tendo perdido o início da conversa e não percebendo que prémio era, nunca me ocorreu que fosse o Prémio Camões. Certo que o ouvi falar em poesia camoniana mas, ainda assim, não tocou em mim qualquer campainha.
Não quero com isto dizer que ache que a decisão foi injusta (e quem sou eu...?) ou não aprecie a sua poesia. Aprecio alguns dos seus poemas e, a esses, aprecio bastante. Contudo acho-o um pouco irregular e, sobretudo, penso que nele a toada poética lhe é tão natural que, com alguma frequência, se encosta ao efeito fácil e os poemas lhe saem algo falhos de significado, apenas revestidos a efeito fácil.
Mas uma coisa não lhe nego e talvez isso não seja negligenciável: Manuel Alegre sabe apelar à emoção -- aliás, mais do que apelar, ele sabe provocar a emoção -- porque usa com mestria a palavra para que, dentro de nós, ressoe o sentido eco, vibre a insinuante melodia.
De resto, confesso também que, entre a poesia em que existe uma harmonia elegante e aquela em que abunda uma sucessão desconexa de palavras com pouco conteúdo e nenhuma simetria fonética, prefiro a primeira.
Dito isto, percebe-se que não fiquei com aquela esfuziante disposição que aqui me faria atirar jubilosos foguetes como aconteceu quando alguns dos anteriores foram contemplados.
Mas, apesar disso, porque é um trovador e porque venera a democracia e a liberdade e porque ama e embala com ternura a língua portuguesa, porque tem uma bela voz que ora envolve as suas palavras em veludo ora as empunha(va) como armas erguidas ao vento, acho que temos que estar contentes por ser um português a ganhar o prémio e por esse português ser ele.
Há tempo para que outros o ganhem; nomeadamente, espero que um dia seja Maria Teresa Horta a premiada já que, para mim, de entre os poetas de língua portuguesa vivos, é talvez das maiores. Mas, por ora, não quero pôr-me com reticências ou comparações -- que são sempre espúrias -- e sinceramente festejo a atribuição do Prémio Camões 2017 a Manuel Alegre.
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As Mãos - poesia dita por Manuel Alegre sobre música de Carlos Paredes
[Lá em cima, no início, era Dois Sonetos de Amor]
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Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.
Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.
Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.
Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.
Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.
Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.
Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.
[Excertos de 'Senhora das Tempestades' de Manuel Alegre, Prémio Camões 2017]
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Trova do vento que passa
(Poema de Manuel Alegre, música e interpretação de Adriano Correia de Oliveira)
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[Fotografias feitas a semana passada ao fim na praia]
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E parabéns ao Manuel Alegre, um poeta que honra a língua portuguesa.
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