O meu amigo não tem irmãos, apenas primas. Ainda assim não estou certa de que sejam primas em primeiro grau. De vez em quando, quando estamos juntos, toca-lhe o telefone e ele diz, tirando o som: ‘agora não, não tenho paciência para a aturar’. E não a atende.
No entanto, já aconteceu irmos de carro, tocar o telefone do carro, ele não conhecer o número, atender e sair-lhe ela. Então, não tem como não dizer nada e eu, em silêncio, vou de gosto a ouvir a conversa.
Tem uma voz bonita. Dir-se-ia que é a voz de uma mulher bem jovem. Contudo, deve andar pelos cinquenta. Tem uma conversa escorreita, elegante e, com frequência, utiliza palavras ou expressões com um certo grau de sofisticação.
Na última vez foi como vou tentar descrever.
Começa por perguntar ao primo: 'Olha lá, tu ligaste-me, não foi?', dando a entender, pela entoação, que está a responder a uma chamada dele. Ele diz que não. Ela reconfirma, como se duvidasse da resposta dele. Ele volta a confirmar: não lhe ligou. Então, ela passa à frente e começa a contar-lhe peripécias.
‘Então não queres tu lá saber o que me aconteceu com a Lita...?' Ele permanece em silêncio. Ela retoma: 'Imagina tu que, no outro dia, me apareceu lá em casa a querer que…’ e relata coisas que a mim me parecem normais mas que ela conta como se de coisas improváveis se tratassem. No fim o primo, diz: ‘E então…?’.
Ela mostra-se escandalizada: ‘E então…? Mas então tu não estás a ver onde é que ela queria chegar…’?’. O meu amigo responde secamente ‘Não’. Ela então começa a contar, em tom de denúncia, uma série de tentativas que a Lita já fez. E eu, ouvindo-a, não consigo perceber se a Lita, que depois do telefonema venho a saber que é outra prima, anda a pretender extorquir-lhe informações, favores, dinheiro ou outra coisa.
No fim remata: ‘Já pensei apresentar queixa na polícia’. O primo abana a cabeça, ar de quem já estava mesmo à espera desse desfecho. Depois diz-lhe: ‘Acho que não é caso para isso’. A prima escandaliza-se: ‘Não?! Não?! Depois não venham dizer que não avisei’ O primo fica calado. Ela continua: ‘Mais. Não sei se cheguei a contar. No outro dia, tocou o telefone já passava das dez da noite. Vi logo. Perguntaram por outro nome. Disse que ali não morava ninguém com esse nome. Disseram que era engano. Sim, sim. É para me intimidar. Percebo-a bem. Mas a mim não me engana ela. A vocês engana mas a mim não.’ O meu amigo encolhe os ombros. Depois encerra a conversa: ‘Pronto. Então tudo bem. Vai dando notícias’. Pelo tom, vê-se que ela percebe que ele está a despachá-la. Responde com ar contrariado ‘Quando quiseres, liga’.
Furioso, comenta: ‘Já trocou outra vez de telemóvel. Agora dá-lhe para isto’. Eu digo: ‘Tem uma voz bonita e parece normal’. Ele diz: ‘Sim, sim... normalíssima… Mas tem razão: quem a vê não a leva presa, e é bonita, faz lembrar aquela da Anatomy de Grey. Quer saber a última? No outro dia, de madrugada, ligam-me da polícia. Apanhei um susto, pensei logo no meu filho. Não, tinham-na levado para a esquadra. Então o que era? Tinha ido outra vez à casa onde morava com os pais, na Ajuda. Uma casa que parece um museu, não imagina, óleos enormes, valiosos, móveis antigos, uma biblioteca extraordinária. Tudo fechado, sem ser limpo há meses. Volta e meia vai lá. Quando lhe sugeri que não fosse lá durante uns tempos, que eu ia, que mandava limpar a casa, respondeu-me ‘Nem penses. O que tu queres sei eu.’. Nunca mais lhe disse nada. Quer ir, vá. Mas então que vê bichos, que a atacam, que ouve barulhos, que há gente lá dentro. E, vai daí, vai buscar uma vassoura e anda à vassourada nas coisas, a gritar, a bater nas paredes com a vassoura, a atirar coisas. Faço ideia o chinfrim às tantas da noite. Os vizinhos começaram por tocar à campainha e, como ninguém lhes abriu a porta e o barulho continuou, acabaram por chamar a polícia. A muito custo lá abriu a porta aos polícias que também não perceberam o que se passava. E foi ela que lhes disse que o melhor era chamarem-me que eu explicaria tudo e que o melhor era ir com eles e a explicação ser dada na polícia. Chego lá, estava ela na conversa com os polícias, uma conversa muito articulada, a contar a história da vida do pai, pessoa ilustre e conhecida, e dos problemas que tem tido, toda a gente a querer espoliá-la, ela coitada a ser vítima de toda a espécie de intimidações, de chantagens, e ela sozinha na vida a ter que resistir a tanta malfeitoria. Os polícias já condoídos e a olharem-me de lado, como se eu fosse um dos suspeitos. Levanto-me de madrugada para me ver no meio duma esquadra, quase a insinuarem que eu é que teria andado lá por casa a assustá-la ou como se tivesse pago a alguém para a apavorar. Como se fosse eu que andasse a tramar aquilo para lhe ficar com a casa. Imagine. Uma situação, digo-lhe. No fim, os polícias perguntam-lhe se tem para onde ir e ela, ar de vítima, dá a entender que deveria ir comigo mas que a minha mulher é que não a aceita. Com certeza que não a aceita, mas nem ela nem eu. Só que a questão não é essa. A questão é que ela é maluca e tem é que ser internada e não andar por aí a arranjar problemas. Agora se ela não acha que está doente e não vai ao médico, como é que a gente lida com isto…? Faz ideia? Eu não faço...’
E eu, ouvindo o seu monólogo e vendo o seu desagrado e a sua inquietação com a situação, fiquei também ser saber como se age numa situação destas.
Perguntei: ‘E não tem mais família, alguém que a ajude?’.
Ele esclareceu que não. Filha única, estava agora sozinha. De família, tinha apenas aquela outra prima e ele. É ainda professora mas arranja problemas constantes na escola secundária onde lecciona. Diz ele: 'Imagino o que é aquilo a dar aulas ou a lidar com as regras da escola, imagino.'. No entanto, ela não reconhece que tem problemas. Não pensa em reformar-se e, se calhar, mesmo que pensasse não o conseguiria. Pelo que a outra prima lhe conta -- porque essa tenta, apesar de tudo, não a deixar desamparada -- o meu amigo diz que ela não limpa a casa, não se alimenta convenientemente, não se percebe se trata das contas bancárias ou do que quer que seja e reage pessimamente se alguém tenta ajudá-la pois pensa que o fazem interesseiramente. No entanto, diz ele, é bonita, parece muito mais jovem e, por incrível que possa parecer, diz ele, mantém o ar de mulher tratada e elegante. Pior, acrescenta ele: disfarça muito bem. Perante outras pessoas, mais depressa as convence que alguns outros andam com depressões ou são psicopatas do que deixa transparecer o que ali vai. E, no entanto, é uma desgraça que ali está. E conclui: ‘Não vai acabar bem…’
E eu fico sem saber o que dizer.
E eu fico sem saber o que dizer.
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3 comentários:
Pois não, não vai acabar bem. Pelo menos tem maus princípios. Mas pode que saia aos ciganos:).
Haverá algum tratamento que ela possa fazer?
Se ela coloca em perigo a sua vida ou saúde ou a dos outros poderia recorrer-se ao seu internamento compulsivo e depois a tratamento compulsivo em ambulatório para se assegurar que tomava os medicamentos.
Ou poderá ser caso para se intentar uma acção de inabilitação ou de interdição
Boa noite. Já não se pode comentar no "Um Jeito Manso?"
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