quinta-feira, setembro 05, 2013

O dia em que os agentes da autoridade nos barram o caminho porque, ali perto, está uma 'alta individualidade' ............ [Felizmente 'a paciência é, de facto, uma grande virtude']


No post abaixo poderão conferir a plasticidade e a capacidade de mimetização da diva dos tempos que correm: Lady Gaga em toda a sua nudez nas fotos da V Magazine que tanta polémica têm desencadeado.

Mas, agora, aqui, a conversa é outra.

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A canção da paciência, por favor (porque os tempos que correm a pedem): José Afonso, sempre. 


Saibamos esperar a hora certa.




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Muita gente como sempre. A diversidade garante o anonimato. Os executivos que deixam os escritórios, que chegam em grandes carros, que tiram a vestimenta e os sapatos e começam a correr, headphones, medidores de pulsações e monitores de tudo o que se possa imaginar. As mulheres em grupo que vão caminhar mas que conversam tão animadamente e quase se esquecem de manter a passada. Os turistas encantados que se perfilam contra os monumentos, contra o rio, que se abraçam enquanto olham o rio. As pessoas, como eu, que vão caminhar mas que não resistem a mil motivos para fotografar.

E há a relva que abriga os pares mais apaixonados. Tudo normal, ninguém quer saber. Já não são muito novos? E daí? São duas raparigas? So what? Gente que se ama ou que se deseja e que gosta de sentir a relva macia sob o corpo e o sol sobre a pele. É bom poder fazer-se o que se quer.




Ou os que fazem talvez yoga, talvez meditem, vou para cá e para lá e, neste caso, este assim, numa posição que eu diria desconfortável. Mas estranhamente parece confortável, não sujeito à lei da gravidade.




E há os que passeiam sobre as águas do rio junto à Torre. A imagem reflecte-se no espelho molhado e, enquanto eles andam, quase parece que há outros dois que os acompanham imersos na água que pisam. Podia ficar ali a olhá-los até que eles se cansassem de andar. Mas sou puxada, não posso ficar ali a seguir-lhes os movimentos.




E, então, aparecem os noivos. Ele anda com o pequeno bouquet nas mãos. Ela já se descalçou. Junto ao casal, outras duas fotografam-nos e outra transporta uma sacola. Vão para junto dos barcos, parece que vão embarcar. Uma das que os acompanham, serve o que parece ser cerveja em duas flutes. Parece que estão agora a beber champagne junto a um veleiro, parece que vão embarcar. Não há dúvida: uma bela fotografia para reverem no futuro: ela de noiva, ele de noivo com o bouquet na mão, prontos a embarcar enquanto sonhadoramente olham o futuro com uma flute de cerveja nas mãos. E a sessão continua, muitas fotografias. Uma sessão fotográfica muito criativa.

Depois vêm cá para cima, para junto do Padrão dos Descobrimentos. No meio da pequena multidão que por ali circula, os noivos passam despercebidos. Ninguém pára a olhar. De vez em quando, a noiva levanta as saias, deve estar com calor, precisa de arejar as pernas. Depois baixa-se, massaja os pés descalços. E volta a fazer poses. Põe os cabelos ao vento. Sente-se uma estrela. É uma estrela. Uma estrela de Belém. Uma noiva que percorre o pôr do sol em Belém. O noivo assiste de bouquet nas mãos. Não reparei se ainda teria a flute de cerveja na outra mão.

Tenho vontade de escrever uma história sobre estes jovens que parecem alimentar tantos sonhos. Ela mais que ele. Mas geralmente é assim: as mulheres mais audaciosas que os homens.





Continuamos o nosso passeio. Lá mais adiante, em frente à Fundação Champalimaud, no rio, um pequeno navio militar virado para terra.

Este fim de tarde está suave e dourado, a luz que vem do mar envolve-se em maresia, apetece-me andar de mão dada. Vamos conversando uma conversa solta, ou em silêncio. Estes dias que prenunciam o outono são muito doces.

Mas, antes de chegarmos perto da Fundação, polícias barram-nos a caminhada: Onde vão? O meu marido logo agastado: Estamos a andar. Porquê? - Não podem passar, respondem. O meu marido irrita-se. Nestes momentos, na cabeça dele, os polícias passam a chuis e sei que tem vontade de os desafiar. Eu sou mais fria. Há polícias por todo o lado, sujeitos à paisana com corpanzil de gorilas (lá está: também eu...). Pergunto, Mas o que é que se passa? Um dos polícias explica: Está uma alta individualidade. Não é permitido passar. O meu marido furioso: E então? Lá porque está uma alta individualidade, eu não posso passar? Porquê? O polícia responde, um sorriso de quem se sabe impotente: Estou a cumprir ordens. 

Voltámos para trás. Eu conformada, o meu marido capaz de partir para a luta, uma raiva a crescer-lhe nos dentes. Mas, a mim, isto não chega para me tirar do sério. Também não é caso para isso, a tarde está tão bonita, não são coisas assim que a podem estragar. Deixá-los. Devem ter medo que a gente cante a Grândola.

Conformada, disse eu? Conformada porque, de facto, nada a fazer. Mas incomodada. Um passeio público pode tornar-se privado, privativo, exclusivo de uma 'alta individualidade'? Lá porque sua excelência está por ali, os cidadãos são privados de respirar o mesmo ar num raio de dois ou três quilómetros? 

De longe, da Torre, fotografo-os. No meio daquele grupo deve estar a alta individualidade, se calhar está a discursar, talvez até fale sobre o povo.




Depois, quando saímos de lá, os meus sapatos altos outra vez calçados, no carro ouvimos as notícias. Ficamos a saber que a alta individualidade é Cavaco Silva. Foi entregar o prémio Champalimaud a quatro organizações nepalesas que lutam contra a cegueira.


Não sei porque não nos quis a passear junto ao rio. Agora é assim, os governantes querem a população bem longe. Assim são agora os órgãos de soberania do meu País: isolados, acoitados, acantonados, rodeados por seguranças. Medrosos. Enganei-me a escrever e, antes, saíu-me merdosos mas depois emendei: medrosos. Depois hesitei. Mas fica assim como está: medrosos. Se são merdosos isso será já fruto de serem medrosos. Cobardes. Distantes de nós. Deixaram de ser um de nós.

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Eu, se fosse Governo, subia num tamborete, batia palma e gritava bem alto pra todo mundo escutar: cala boca, gente, escuta aqui. Obrigava todo mundo a ficar quieto primeiro e explicava o meu programa administrativo. Governo não é Deus, muito pelo contrário, é o tipo de coisa que precisa de ajuda. Não ia fazer nada sozinho, que eu não sou bobo. Escolhia pra meus ajudantes só gente que tivesse duas coisinhas à-toa: honestidade e competência. Feito isso, falava pra eles: faz um levantamento do nosso país, aí, isto é, varre a casa primeiro. Depois conferia numa assembleia, que não ia ter recesso enquanto não me dessem, por escrito, quantos meninos sem escola, quanto pai de família sem emprego, quanto homem e mulher que fosse amarelo, feio, sem dente, sem saúde, sem alegria. Me aparecesse tudo anotado no papel. Bom, depois dava um descanso de meia hora pras câmara alta e baixa e ia de novo presidir eles arranjarem um meio de acabar com essa tristeza toda, em primeiro lugar com o problema da comida. Porque vou te dizer: passar fome não é coisa pra gente, não; passar fome é de uma desumanidade tão exagerada, que só de pensar bole com a bile de quem tiver um grão de consciência. Eu não tenho poder nenhum, de política eu não entendo. Fico falando essas coisas, fico mais ridículo que galinha na chuva, já viu que dó? Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra frente, olha aqui, olha acolá, encharcado na friagem e na lama, sem resolver nada e, pior que tudo, sem saber de nada.




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O texto em itálico é um excerto de 'Eu, se fosse Governo' do livro 'Solte os cachorros' de Adélia Prado.


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(Para ver as fotos da V Magazne com Lady Gaga é descer um pouco mais)

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E, por agora, é só isto.

Tenham, meus Caros Leitores, uma bela quinta feira 
(e tomara que nenhuma alta individualidade vá para perto de vocês, senão lá terão vocês que ser enxotados... xô, raça de gente normal, xô, longe da senhora dona alta individualidade!, xô!)

1 comentário:

Pôr do Sol disse...

Pois é Jeitinho,
Voltámos já a muuuuuiiito antes do 25 de Abril de 74.

Este seu texto fez-me lembrar uma situação vivida num festival aereo para os lados de Sintra, que nunca mais esqueci.(hoje nem que me pagassem eu me meteria numa destas).
O cenário era o habitual nestas situações: muita gente a pé, muito transito, estradas estreitas. Em sentido contrario, abriam caminho duas possantes motas, montadas por guardas tambem assim de corpanzil de gorita. Por falta de espaço o caminho era aberto com a lentidão inerente.

Para maior rapidez os "bizontes" abriram caminho ao pontapé a carros e pessoas para que a alta individualidade em sentido contrário, neste caso Americo Tomás e comitiva, não permanecessem muito tempo entre o Povo.

Os tempos eram outros, ninguem contestou quem tão eficazmente "cumpria ordens".

Não houve paciencia, houve resignação e muita revolta engolida.