sexta-feira, agosto 09, 2013

O destino triste dos livros sem dono


No texto abaixo falo da minha gulodice que é de tal ordem que me levou a comer a bata de um médico. Parece impossível mas é verdade. Mas isso é a seguir. Agora, aqui, falo de outra coisa.


No outro dia li um texto intitulado Livros velhos que me tocou particularmente. O tema do destino dos nossos livros quando já não estivermos cá para tratarmos deles (e para eles tratarem de nós) é um tema que me angustia um pouco. 

E isso lembrou-me um dos episódios tristes da minha vida. Não sou muito de ficar marcada pelo que quer que seja. As coisas vão passando e, verdade seja dita, podem ficar no meu coração mas, deixarem-me com dano sério na minha estrutura, isso raramente acontece. Mas este deixou.


Música, por favor:





Eram duas irmãs solteiras que tinham dois irmãos casados. Uma era a mais velha dos quatro, outra a mais nova. Até que a mais nova se casou, tarde, já os sobrinhos eram grandes e já ninguém esperava que isso acontecesse. Passaram a viver juntos, a mana casada com o seu marido, que era mais velho, e a mana solteira. Para os rapazes, sobrinhos, o marido da tia passou, naturalmente a ser o tio. O tio era uma pessoa discreta, com ironia fina, um humor por vezes cáustico mas sempre elegante, nunca amargo. E lia muito. Percorria alfarrabistas, feiras. Tinha muitos livros, muitos, muitos. Entre os três liam os livros, discutiam-nos.




A casa onde viviam era grande, o último andar de um prédio sem elevador, uma vista majestosa sobre Lisboa e sobre o Tejo, os quartos com pequenos varandins sobre a luz de Lisboa. Chegava-se a casa deles por uma larga escadaria em madeira, com corrimão macio e polido também madeira.




Por cima havia uma clarabóia que iluminava e dourava ainda mais as madeiras da escadaria. Nas escadas e, em especial, nos patamares intermédios, havia conjuntos de pequenos vasos, todos cuidadosamente regados, as flores sempre cuidadas. Havia o quarto da mana solteira, o quarto de casal, a saleta onde tomavam as refeições e passavam parte do tempo, onde estava a televisão e a maioria dos livros repartidos por várias estantes e, ainda, escaparates com louça de outras eras.

Coisas de gente cuidadosa e antiga, forravam os livros mais antigos com papel vegetal, especialmente os que estavam a ler ou os que ele tinha descoberto em alfarrabistas, lojas de velharias. Em alguns escrevia, a lápis, a data e o local da compra.



Esta não é a sala grande de que falo abaixo mas não consegui encontrar outra mais parecida


Noutra sala, ao lado, havia um grande sofá e umas grandes poltronas forradas a cetim macio, num azul cor de céu com pássaros suavemente coloridos, com as almofadas debruadas a espesso cordão dourado. E havia umas mesas de apoio com uns grandes candeeiros que tinham requintados abat-jours. E peças de louça única. E caixinhas de toda a espécie, e quadros com flores e pássaros. E cómodas grandes, muito altas.

Depois havia ainda outra divisão de que já não me lembro a anterior utilização, talvez tivesse sido o quarto dos pais. Na altura em que conheci, estava dedicada a arrumações. E havia a cozinha, antiga, a casa de banho do fundo, e havia um hall com móveis antigos e um corredor muito comprido. 

Primeiro morreu a mais nova. Teria uns cinquentas e tais, talvez sessenta e poucos, não sei bem. Houve uma grande comoção na família. Era a mais nova, era muito jovial, sempre bem disposta, parecia ser saudável. Ficaram, então, os cunhados a viver sozinhos os dois. Teriam sensivelmente a mesma idade. Sempre os conheci a tratarem-se com muito respeito, alguma cerimónia. Já teriam setenta e muitos, nessa altura. Ela, baixinha, bonita, sempre impecavelmente arranjada, ele sempre com um suave perfume, sempre com o seu humor certeiro, sempre muito informado sobre a política e sempre com assunto sobre os livros que andava a ler. Todos os dias iam à rua fazer as suas compras, tomar café, lanchar, muitas vezes almoçar um bife ao Império, encontrar-se com primos ou amigos.

Os sobrinhos especulavam entre si, com respeito e ternura, que talvez, nas noites frias, se juntassem na mesma cama. Mas nunca tal foi aflorado em público, nem nunca se viu indícios disso.

Quando lá íamos, estávamos geralmente na saleta da televisão e dos livros mas havia sempre um momento em que éramos convidados a ir até à sala grande do lado. Aí havia sempre algum presente. Eram abertas as gavetas ou as portas dos grandes móveis e, embrulhados em panos ou em papel de seda, de lá saíam coisas sempre surpreendentes, cuidadosamente protegidas. Muitas vezes era um objecto especial descoberto numa loja da Baixa, um corte de tecido bonito que podia dar jeito para umas almofadas, rolinhos de bordado inglês ou de rendas que podiam ser úteis para uns lençóis, para uns vestidos para a menina, um serviço de chá antigo.




Geralmente eu não sabia o que fazer com o que recebia. Não tinha onde guardar o serviço de chá num lugar digno (não queria pô-lo a uso, não apenas por ter outro, como receando que este se partisse) e acabava por ficar na última prateleira do armário, acabando por me esquecer dele; os cortes de tecido ou os rolinhos de bordado inglês acabavam por ir ficando também por aí, sem saber bem que destino lhe dar.

Mas ela fazia gosto de nos oferecer aquelas suas preciosidades e dizia que queria ir distribuindo as coisas e eu aceitava agradecida, não tanto pelos objectos em si mas, sobretudo, pelo que me parecia ser a alegria dela em oferecer coisas aos sobrinhos. Nós geralmente retribuíamos, oferecendo molduras com fotografias dos miúdos.

A seguir, anos mais tarde, morreu o tio. Ela teve um grande desgosto. Durante anos tinham partilhado a mesma casa, nos últimos tinham sido a companhia um do outro. Foi-se, então, muito abaixo. Começou a decair. Já não era nova, uns oitenta e tal, mas foi nessa altura que começou a parecer cada vez mais uma velhinha.

Nos últimos tempos teve que ir para um lar. Cada vez mais desmemoriada e confusa, cada vez mais débil, menos autónoma, a precisar de um apoio especializado. A escada era já, então, um obstáculo intransponível. A escada, aliás, foi entristecendo ao longo dos últimos anos.




À medida que os habitantes do prédio foram morrendo, as flores foram desaparecendo e íamos vendo obras nos andares que foram sendo restaurados e vendidos a peso de ouro a gente mais jovem e com elevado poder de compra.

Enquanto estava ainda bem, disse sempre que queria que, quando morresse, as coisas fossem distribuídas pelos sobrinhos. Não viveu muito mais depois de ir para o lar, talvez uns dois ou três anos. Durante esse tempo a casa esteve fechada.

A distribuição dos pertences e, no fundo, o desmanchar da casa das tias foi uma das experiências mais horríveis por que passei. Se fosse só eu, teria feito a análise sistemática, embora não minuciosa, ao que fosse descobrindo, decidindo o destino a dar a cada peça. Mas não, éramos seis.

A minha ideia inicial foi abdicar de tudo mas relembraram que não era essa a vontade expressa da tia. Além disso, a tarefa era desagradável para todos, não era justo que alguns se eximissem a ela.

Começaram então os fins de semana para esquecer.

Cada um dos seis tinha as suas motivações. Uns queriam despachar aquilo em três tempos, outros queriam perder uma hora a ver com pormenor cada coisa, a ler um por um cada papel. Uns entravam numa divisão, começavam a mexer ao acaso e logo chamavam pelos restantes para irem apreciar a descoberta, causando uma total improdutividade. Outros despejavam coisas a eito para dentro de grandes sacos. Depois uns estavam com fome, queriam interromper para ir lanchar ou jantar ou o que fosse, outros achavam que era de fazer uma empreitada de seguida para não perder tempo, outros espirravam porque o pó lhes fazia alergia. Depois, chegava-se ao fim do dia e pouco se tinha adiantado, e era uma maçada que passava para o fim de semana seguinte.

Eu, desde o início, andava incomodadíssima com a forma como aquilo estava a ser feito mas se pusesse em causa, da forma como já estavam todos, irritadiços, saturados, ainda largavam tudo da mão e que fizesse eu sozinha. Um horror. 

Custava-me sobretudo muito ver a forma como objectos recolhidos e guardados durante tantos anos com tanto cuidado, eram agora pegados sem qualquer cuidado, sem qualquer carinho, e repartidos a eito entre sacos.

Para evitar processos demorados de avaliação e porque se sobrepôs a vontade de não estragar muitos mais fins de semana, a coisa passou a ser feita às cegas, por divisão pura entre montes ou entre sacos. Algum deles disse que essa a forma de não prejudicar ou beneficiar ninguém e a maioria achou muito bem. Eu não achei mas não impus a minha vontade. Partilhas é do pior que há, as sensibilidades ficam estranhas, e eu não quero problemas para além de que, com o género de pessoas em causa, seria impossível haver alguma disciplina. Despejava-se uma gaveta e era uma coisa para ali, outra para acolá, outra para aqui, e assim sucessivamente. Neste processo absurdo separaram-se conjuntos de lençóis, uma fronha de um lado, outra de outro, o de baixo noutro, o de cima noutro, uma coisa completamente anárquica. Aquilo parecia um pesadelo que não tinha fim. Cortes de veludo, de seda, de gorgorão, de cretone, eu sei lá, chávenas e colheres antigas, pratos de toda a espécie e feitio, tudo repartido de qualquer maneira. E roupa que não acabava. E cobertores, e colchas, e toalhas de mesa, e atoalhados, e tachos e panelas e copos, e objectos de toda a espécie.




Apareceram corpetes com rendas e colchetes, espartilhos com atilhos, soutiens feitos em pano, cintos de liga de tecido e fitas e elásticos, tudo roupinhas tão pequenas que custava a perceber como é que tinham cabido lá dentro corpos de mulher. De tudo o que mais me impressionou, quase como se fosse uma coisa ilustrativa daquilo tudo, foi quando vi, num dos roupeiro antigos que estava na divisão das arruações, um cabide com um casaco que me pareceu ser de astracã preto.




Quando o retirei e o peguei ao alto para apreciar, o casaco desfez-se em pó. Literalmente. Um pó preto, como se a lã se tivesse transformado em pó. Assustei-me, fiquei horrorizada. Aliás ficámos todos impressionados.

Quando chegou a vez dos livros foi outra situação aborrecida.




Eu queria ter sido eu a fazer isso mas quando dei por ela já estavam outros dois, tipo linha de montagem, um tirava das estantes e atirava para outro, que ia repartindo por aqueles sacos grandes de xadrez das lojas dos chineses. Separaram colecções, separaram autores, misturaram tudo de qualquer maneira, fartos, com tosse, a espirrar, desejando que aquilo acabasse, sempre com a ideia em mente de repartir sem olhar a quê. Quando vi a forma como estavam a pegar naqueles livros tão estimados, a meterem tudo de qualquer maneira para caberem o mais possível dentro de cada malão, fiquei sem acção. Mas tinha gerado uma dinâmica tal que era impossível pôr alguma ordem naquilo. Os seis estávamos distribuídos pela casa, geralmente em grupos de dois, sempre com a maioria a querer ver-se livre daquilo tudo.

No fim, foi preciso ir lá depois para marcar o que era para cada um mas já estava tudo encafuado em sacos, não se sabia o que lá estava dentro. Conseguimos, entre todos, aproveitar quase todos os móveis mas, grande parte das outras coisas foram dadas, os outros sobrinhos não queriam quase nada, não tinham onde pôr, eu também não tinha assim tanto espaço (para além que o meu marido é muito avesso a ter coisas que não fazem falta e aquilo, decididamente, falta não fazia). Ainda consegui ficar com algumas coisas, uns quantos móveis antigos que aqui já mostrei, uns lençóis estreitos e desirmanados, algumas peças de louça.




Recuperei, porque guardei logo para mim, as molduras com as fotografias dos meus filhos, dadas ao longo de anos e onde ela ia escrevendo a data e o nome deles. No meio da confusão, não fiquei com nenhum sacalhão de livros, não sei o que lhes aconteceu. Quando penso nisso, sinto sempre um aperto no peito, parece que fui cúmplice num tremendo acto de deslealdade, de falta de respeito, lembro-me do cuidado como os via pegar nos livros forrados com papel vegetal, lembro-me dos livros que o tia me mostrava todo orgulhoso pelo achado. Mas a verdade é que não consegui que fosse de outra maneira.

Não sei como é nas outras famílias, se acontecessem coisas assim mas, na minha, aconteceu isto com a casa das tias.


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Relembro que, se quiserem ver um bolo de aniversário da área médica, é descerem até ao post seguinte. 

Entretanto, antes que me deixe dormir aqui enquanto escrevo (a sério...!) e já quase sem saber que palavras é que estão por aqui a passarinhar, livres de mim, despeço-me já. 

Tenham, meus Caros Leitores, uma bela sexta feira!!!

4 comentários:

Anónimo disse...

Há bibliotecas que recebem esses livros de braços abertos.Quando precisar pode contactar Biblioteca Municipal de Santo Tirso - tel - 252833428

Maria Eduardo disse...

Olá UJM,
Um texto excelente sobre o destino triste dos livros sem dono! Á medida que o ia lendo ficava cada vez mais comovida pela maneira como descrevia, passo a passo, as várias fazes das partilhas dos pertences dos seus tios. Ter que assistir ao desmembramento desses haveres, cada qual com a sua própria história de vida, assim, sem compaixão e respeito algum pelo seu passado, deve ter sido muito traumatizante para si, sobretudo porque a conhecemos como uma pessoa muito sensível. Recordo-me dos pertences que tão gentilmente nos mostrou e que preserva com todo o carinho e amor. Onde quer que os seus Tios estejam ficarão felizes por saber que os seus pertences estão bem entregues e que serão estimados pela vida fora, em sua memória, como Eles gostariam.

Emocionei-me porque me imagino na situação de tia, sem filhos!... Que destino irão ter os meus livros, as minhas colecções, em suma, todos os meus queridos e adorados pertences?!

Um beijinho

Anónimo disse...

Li com imenso interesse este seu Post. Tal como a UJM, mantenho igualmente uma grande ligação a estas questões de família, ou seja, quem nos deixou, o que representaram para nós durante a vida, que recordações temos deles/as, etc. Dos meus irmãos, sou o que vou procurando manter mais contacto com a família que, ao longo dos tempos se foi dispersando, entre o Porto, o Douro, a Beira-Alta, Lisboa e, hoje, até Cascais e Sintra. Sou o que mais ligações mantém à família. Porque, sobretudo, tenho excelentes recordações desses bons tempos. Que guardo bem fundo dentro de mim. Todavia, o meu coração continua a estar ligado ao Norte/Centro, sem, naturalmente, nenhum rancor ao Sul, onde vivo hoje e desde há vários anos, apesar de aos poucos estar a preparar uma mudança para as origens - de uma vez para sempre. Quero “acabar” de onde vim. É lá onde – sempre – me senti ligado, onde quero, um dia, ficar a viver, definitivamente. Passando o Sul para as recordações de vivências que tive e me deram muita alegrias. Mas, estranhamente ou não, sinto hoje uma vontade enorme, quase compulsiva, em deixar o lugar onde vivo para voltar ás origens, “so to say”. Relativamente à questão que refere, das partilhas e divisão de bens, permita-me que lhe conte uma situação porque passámos, ou melhor, membros da família em circunstâncias mais ou menos semelhantes. Quando meu avô paterno, no Douro, faleceu, minha avó sobreviveu-lhe ainda cerca de uns 10 anos. Foram uns avós espantosos, que ainda hoje recordo com imensa saudade e muito carinho. Eram pessoas abastadas e que deixaram as propriedades devidamente distribuidas. Mas, o mesmo não sucedeu com o precioso recheio da casa grande onde viveram e vieram a falecer. Por forma a evitar aborrecimentos entre a família, os filhos - meus tios, meu pai e descendentes dos tios falecidos (a família era relativamente numerosa, herdeiros directos, ou seus filhos) – decidiram organizar a escolha dos bens por sorteio, ou seja, cada um dos herdeiros, representando um filho/a, por ordem, um de cada vez, escolhia uma e só uma peça, ou serviço, ou quadro, ou tapete, ou móvel, livros (muitos também) etc, etc. Sentados na grande sala de estar, iam - à medida da sua vez - escolhendo, e só nessa altura, sem atropelos, aquilo que queriam. Um levou um quadro, outro um tapete, outro um móvel, outro um serviço, outro livros, etc e de novo a coisa girava até acabar. Nunca houve o menor problema, a menor chatice, tudo foi, metodicamente, organizado e até hoje nunca houve qualquer queixa que fosse. Assim foi feita a forma de escolha dos bens do recheio da velha casa, assim ficou decidido - para sempre. E quando vamos a casa de uns e outros, desses familiares (meu pai incluído) lá encontramos “pedaços”, ou memórias, do que foi o conteúdo da grande (e saudosa) casa de nossos avós paternos, de Alijó. E, por vezes, ouvimos explicações daqueles bens herdados, de onde vieram e como e porquê foram adquiridos. Este método, meus irmãos e eu, pensamos um dia copiar. Um dia que esperamos seja ainda bem longe (apesar de nossos pais já terem entrado na casa dos 80entas).
Cordialidade e ...bom tempo, pois assim parece irá suceder amanhã!
P.Rufino

Olinda Melo disse...


Cara UJM

Este é um assunto que nos diz respeito a todos porque nos lembra situações parecidas, de familiares cujos pertences, depois da morte, são tratados sem sensibilidade e quase desrespeito. Coisas, livros, roupas,que preenchiam a sua vida e que no fim deixam de ter qualquer interesse.

Em momentos destes, lembramo-mos como a vida é uma coisa volátil no que se refere ao seu lado material e que devemos investir mais nos sentimentos e nos valores.

Beijinhos

Olinda