terça-feira, abril 24, 2012

As paisagens urbanas silenciosas nas quais pessoas silenciosas esperam alguém que não virá - é o ambiente solitário de Edward Hopper (ao som do Adagietto de Mahler); e Saburo Teshigawara mostra-nos a sua Obsession


Música, por favor

Gustav Mahler - Sinfonia Nº5 Adagietto



Se De Chirico é o pintor das desoladas paisagens urbanas nas quais o género humano se rarefez, se Chagall é o pintor do sonho e da joie de vivre, já Edward Hopper será talvez um pintor a meio caminho entre ambos.



Hopper pinta essencialmente paisagens urbanas habitadas, mas paisagens estáticas habitadas por personagens humanas também estáticas. Há nas pinturas de Hopper um estranho imobilismo.




São quase sempre mulheres que olham através da janela e diríamos que nada vêem, que se encontram em puro estado de introspecção, ou que se sentam abandonadas a si próprias, desiludidas, entediadas.




Numa mesa de restaurante, na beira de uma cama, de pé a olhar a janela vazia, são geralmente mulheres  -solitárias, corpos sem vitalidade, corpos já não acariciados, seios que, face à situação, quase parecem inúteis, ventres desaproveitados, rostos sem esperança - que Hopper pinta.




E, se pinta a rua, a estação de serviço, o balcão de um bar, um motel, uma mesa de restaurante, é para nos mostrar um ambiente inerte, excessivamente neutro, parece que a vida não passa por ali. Quem ali está parece estar suspenso no tempo, à espera de coisa nenhuma.




Acontece, por vezes, as cores serem fortes, contrastantes mas, contudo, parecem artificiais, como se a cor tivesse sido saturada apenas para disfarçar a ausência de luz natural.

*

Pintor americano, de Nova Iorque, Edward Hopper nasceu em 1882 numa família com algumas posses e viveu até 1967, 84 anos de vida, portanto. Morreu no estúdio.

Foi pintor de óleos, aguarelista e fez também gravuras. Como free lancer fez também muitas ilustrações.

O ambiente em que cresceu foi marcadamente matriarcal, e as presenças da mãe, da avó, da irmã, as criadas eram dominantes. Talvez isso explique a quase omnipresença de mulheres nas suas pinturas.

Edward Hopper (que poderemos ver abaixo, num auto-retrato) era um homem alto, magro, calado, introspectivo, tímido, com um sentido de humor contido e social e politicamente conservador.




Não era, pois, um impulsivo, muito pelo contrário. Passava largos períodos algo deprimido, sem inspiração, sem saber que motivos escolher para pintar, invadido pela inércia. Talvez sejam, justamente, esses os estados de espírito que a sua obra mais nos transmite.

Tinha já 42 anos quando se casou com uma mulher que era o seu oposto. 



Oriunda de uma família de uma classe mais baixa, extrovertida, sociável, liberal, Josephine Nivision (Jo, que pode ser vista no retrato acima) era também pintora mas, no entanto, na prática abdicou da sua carreira para se dedicar quase exclusivamente à do marido. Foi a sua companhia, a sua modelo, a sua gestora (geria as entrevistas, a venda de quadros, escolhia os títulos das pinturas, e até, por vezes, inspirava os motivos das pinturas a partir de motivos usados por si enquanto pintora).

Viveram juntos quatro décadas e apenas sobreviveu 10 meses a Edward Hopper. Contudo, ficou a saber-se através dos diários que manteve que o seu relacionamento atravessou fases bastante conturbadas, havendo brigas e até agressões.

No entanto, sempre pareceram levar uma vida normal (e, se calhar, era normal até porque as ‘anormalidades’ geralmente não se vêem de fora).

Uma vida normal e simples, foi, portanto, o que sempre pareceu. Iam vivendo de acordo com o produto do seu trabalho. À medida que iam vendendo pinturas por maior valor (coisa de que Jo se ocupava), iam adquirindo aquilo que poderia ser considerado com bens secundários, isto é, que denotavam já sinais de maior desafogo. Assim, em 1927 compraram um carro, em 1934 compraram uma casa de férias.

Edward era um homem culto, lia muito (aliás, talvez por isso, é frequente na sua pintura aparecerem pessoas com livros) e era uma pessoa que pensava maduramente antes de começar cada obra. Pensava, fazia esboços e nada era fruto do acaso, nem a disposição dos elementos figurativos, nem a luz, nada.




Dava grande ênfase à geometria da composição, aos ângulos. Aliás o efeito da luz num dos cantos da casa é recorrente na sua pintura. Mas, independentemente até da geometria, a luz e a sombra foram elementos indispensáveis nas composições, usadas para criar os efeitos expressivos, os estados de espírito.




A pintura de Edward Hopper mostra-nos com frequência personagens que nos parecem perdidas no meio do espaço que ocupam. Diz-se que Hopper retratava o minuto antes ou o minuto depois de ter acontecido o clímax da cena.




Mulheres que receberam uma má notícia, ou abandonadas, à espera de alguém que está para aparecer ou que não apareceu, ou sem esperança face a uma janela de onde nada se vê ou afogadas em tédio e inércia.

António Lobo Antunes dizia que um dos seus livros tinha nascido da ideia de solidão nas casas às 3 da tarde. Assim são as casas de Edward Hopper: silenciosas, vazias, tristes.




Hopper, conservador, nunca se deixou tentar pelo cubismo, pelo impressionismo. As suas pinturas retratam a realidade urbana da época que viveu e retratam a solidão das pessoas perdidas de si próprias, perdidas dos outros. Talvez retrate ainda estes tempos em que vivemos, tempos de uma inquietação inerte, de um vazio suspenso, sem objectivos estruturados, sem uma esperança com contornos definidos. 

*
Saburo Teshigawara e Rihoko Sato da companhia Karas - Obsession


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Hoje no Ginjal e Lisboa as minhas palavras (molhadas) voam em volta da poesia de Assis Pacheco e, de novo, ao som de Bellini, belíssimo.
*

E tenham, meus Caros, uma boa terça feira!

13 comentários:

patricio branco disse...

interiores habitados por 1, 2 ou 3 pessoas pensativas, silenciosas ou trocando alguma palavra ocasional.umas vezes vistas de dentro, outras de fora pelas janelas. tambem casas da cidade ou campo, teatros com espectadores onde se destaca um, passageiros em comboios viajando calados vendo se a paisagem pelas janelas.
sem duvida que os quadros nos intrigam, queremos saber mais , imaginamos o que estarão a pensar esses seres nas suas casas, nos escritorios onde trabalham, cafes onde se sentam, teatros onde foram, porque estão cansados, pouco animados, as poucas palavras que dirão, etc.
pintor tambem de paisagens de campo ou urbanas, de casas, edificios no campo, na cidade ou à beira mar ou com farois, de autoretratos. e as cores, os verdes, laranjas, azuis, amarelos.
boa ideia uma entrada sobre esse grande pintor, são a america e os americanos que ele pinta afinal. nunca nos cansaremos de olhar as suas pinturas.

Um Jeito Manso disse...

Caro Patrício Branco,

Gostei muito de ler o que escreveu, acrescenta mistério ou desolação às figuras silenciosas de Hopper. Porque estão sempre todos tão cansados ou tão expectantes?

Será que apenas ele conseguiu transmitir às suas figuras a indecisão, a depressão ou a inércia que frequentemente o invadiam?

É a América, sim, mas são também todos os lugares em que o tempo pára deixando em suspenso as pessoas que habitam aquele instante.

Sendo um pintor que consegue captar o que acontece no preciso instante em que o tempo se detém, Hopper torna-se um pintor intemporal e que vai para além das geografias - enfim, é o que eu acho...

Obrigada Patrício Branco e um bom dia para si!

Maria disse...

Amiga:
Antes de mais, a música:"Gustav Mahler - Sinfonia Nº5 Adagietto".
Gosto de Mahler, gosto de Adágios e as dois juntos, foi o encanto total.
Edward Hopper, a impressão que tinha dele, era mais ou menos esta.
As paisagens paradas, as pessoas sem alma, as mulheres que transmitem o desânimo de ser mulheres. O facto de ter sido criado apenas por mulheres, deve-o ter influenciado,sim.
A 1ª mulher, nua, sentada à mesa, braços roçando a mesa, olha o vazio através do vidro. As outras, sós, demonstram o mesmo. O pormenor do livro que escorrega, a mulher nua, marcada de sombras, virada para a janela, a outra, que espera, esperará? na mesa do café, fazem tristeza.
Mas os dois em que aparecem duas pessoas, homem, mulher, são os mais tristes. Não há um fio de ligação.
É como disse o Lobo Antunes: Uma casa vazia às 3 da tarde.
Quase todos os homens assim, arranjam mulheres diametralmente opostas. Ás vezes dão-se bem.
Vou ver o bailado. Este tipo de pintura deprime-me.
Beijinhos, querida
Mary

Anónimo disse...

Cara UJM:
Figura silenciosa, desolada, afligida, vazia, de um quadro de Hopper, é assim que me sinto, e também como elas, aparentemente, inerte, ausente, porque impossibilitada, de qualquer acção corpórea, é esse o estado que tenho experienciado durante estes dias, desde que o meu filho foi agredido e assaltado no estrangeiro. E a casa habitada apenas por grandes e pesados silêncios de dois olhares que se cruzam impotentes e indignados, um autêntico quadro de Hopper.
Nunca como hoje senti a arte tão real, e, senti, finalmente, o que Fernando Pessoa queria dizer quando explica que” a arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos”. Seria isto que Hopper sentia?
Mas a arte, hoje, trazida por UJM, ajudou-me a exorcizar a dor.

E tenha dias felizes
abraço da
Leanor

Anónimo disse...

Sim, tinha-nos prometido Edward Hopper, se bem me recordo. O que aqui diz, neste seu interessantíssmo Post está muito bem observado. E basta apenas olhar com atenção os quadros aqui expostos. Paisagens urbanas (lugares, locais), pessoas (nesses lugares e locais), estáticas, o tal imobilismo, como refere, são o seu estilo. Imagens muito americanas, segundo um outro comentador. A luz, as pessoas e os locais, como diz, foram na verdade a marca desse seu estilo. A designação de Modernismo Clássico, relativa á Pintura da primeira metade do séc. XX (de que fazem parte alguns distintos seus conterrâneos, como Nolland, Jasper Johns, entre outros) “encaixa” bem com o estilo que Hopper desenvolveu, pois, sendo um artista ou pintor moderno, o seu estilo não deixa de ter algo, digamos, de “clássico” (adaptado aos tais tempos modernos), por oposição, por exemplo, a Bacon, Balthus, Giacometti, etc. Não se deixou tentar pelo Impressionismo, apesar de ter tido William Merrit Chase, destacado artista norte-americano impressionista, como seu mestre (professor). Gosto muito de Hopper. Ali estão muitos aspectos do dia a dia norte-americano daqueles tempos (e de hoje).
E depois há coincidências curiosas. Ele chega a Paris (1906) no ano em que Picasso pintou Gertrud Stein.
Bonito início de Post com G.Mahler. um homem complexo, que, nascido judeu, veio a renunciar a essa religião (em finais do Sec. XIX) com vista a obter o lugar de Director da Ópera de Viena (vindo a ser maestro da Filarmónica de Viena, depois), que ganhou e muito com o seu desempenho ali. Mas, nem por isso evitou ser alvo do anti-semitismo prevalecente à época, o que o levou a partir (para N.Y). Complexo também, pois sofreu ás mãos de um pai demasiado severo. Um homem sensível e um excelente, compositor - e maestro (o que nem todos os seus pares compositores daquele período o foram).
Voltando ao Post anterior, interessante eu ter, numa livraria outro dia, folheado o livro de J.Mattoso que ali menciona, e com a pressa tê-lo deixado, mas ficado a pensar nele.
Preparo-me para um fim de semana alargado, algures até Madrid, em casa de amigos e, deste modo, acabarei por não contribuir, com o meu humilde esforço, para o PIB que preocupa o Gato Gaspar e o Homem de Massamá. E ainda por cima fazendo gazeta de ponte! Xi, que gravidade e falta de patriotismo!
P.Rufino

Isabel disse...

Gosto da pintura de Hopper e acho que os sentimentos que as suas figuras exprimem, estão tão actualizados. A solidão, o desânimo, a incomunicabilidade entre pessoas ...

Gostei de conhecer um pouco mais sobre o pintor.
Um abraço

Um Jeito Manso disse...

Querida Mary,

Hopper pintou as pessoas suspensas num tempo que parou. AS pessoas parecem desalentadas. Por isso, olhar para as suas pinturas retem-nos, incomoda-nos um pouco mas sentimos compaixão ou curiosidade.

Mas espero que não cause depressão... não é caso para isso... imaginemos que no instante a seguir acontecerá um golpe de sorte que mudará o rumo dos acontecimentos.

Esta música de Mahler é um espanto de linda, não é?

Um beijinho, Mary

Um Jeito Manso disse...

Leanor, formosa e hoje a sentir-se insegura,

Percebo-a muito bem. Quando o meu mais novo, miúdo ainda, um dia à saida da escola foi assaltado por outros miúdos que he roubaram o relógio de que ele gostava tanto e que a avó lhe tinha oferecido, fiquei tão revoltada, tão angustiada, tão triste e só pensava no susto que o meu filho tinha sofrido e no desgosto que tinha por ter ficado sem o ser relógio. E andava sempre com medo que voltasse a acontecer.

Agora imagino o que é terem agredido o seu e ele estar longe. É uma impotência enorme. Imagino que deve ser horrível. Espero que ele não tenha ficado muito magoado, que ultrapasse a pancada psicológica que deve ter sido, que o roubo não tenha sido nada de especial. Coitado. Tomara que não falte muito para poder estar ao pe dele para lhe fazer miminhos de mãe e para ver, ao vivo, se ele já está bem.

Mas ele é novo, Leanor, vai ultrapassar e daqui por algum tempo isto vai ser um episódio do passado. Por isso, anime-se Leanor e vamos esperar que não volte a acontecer.

Um abraço sentido e solidário.

Um Jeito Manso disse...

Caro P. Rufino,

Que belo comentário, que riqueza de informação que aqui junta e que contribui para melhor se conhecer este pintor e a sua obra.

É daqueles pintores que é, de facto, um conservador, imune a correntes. Pintava o que via e sentia, imaginando o décor e a luz, e colocando nestes cenários 'parados' personagens expectantes, desanimados, ausentes, alheados. Mesmo os que sorriem, parecem representar.

Hopper quando foi a Paris ficou surpreendido, nunca tinha ouvido falar em Picasso. Os americanos são muito assim, especialmente os conservadores. Pouco sabem de história, geografia. Não seria o caso de Hopper ue era culto, letrado mas, pelos vistos, lia e conhecia sobretudo 'os clássicos'.

Quanto a Mahler já aprendi consigo, não fazia ideia. Vou estudar o seu percurso que parece ter sido bem controverso.

E olhe P. Rufino, tenha um bom fim de semana prolongado em Madrid. Gosto imenso de Madrid, é uma festa. Já um dia aqui escrevi e mstrei fotografias de umas mini-férias que lá fiz talvez há 1 ano.

Divirta-se e não pense no rapaz de Massamá nem no seu gato Gaspar.

Pôr do Sol disse...

Querida Jeitinho,
Não conhecia a pintura deste americano.
Agora ao aqui chegar revejo-me nela. Foi assim que me senti hoje, todo o santo dia, como elas, parada, sem força, sem vontade, sem alma. Há dias assim, pensei, amanhã é o 25 de Abril haverá mais Sol.
Quando ao fim da tarde soube da morte de Miguel Portas, vencido pela terrivel doença, fiquei em choque.
Portugal perde uma das poucas figuras honestas da politica. Aquela mae perde uma parte de si, com uma dor que não quero imaginar.
Não aceito a morte por esta ordem.
Não é a Lei da Vida.
É contra Natura.
Um abraço

Um Jeito Manso disse...

Isabel, olá,

Incomunicabilidade - era essa a palavra que me faltava, é isso mesmo. Ali, na pintura de Hopper, ninguém comunica. Uns olham ara um lado, outros para outro, muitas vezes para o chão ou para a janela. Ou então, lêem, absortos.

São espaços silenciosos e desolados.

Obrigada, Isabel (quase tenho vontade de voltar ao texto e enxertar a palavra incomunicabilidade...)

Um Jeito Manso disse...

Ai Pôr do Sol,

que eu hoje, ao vir para casa, no carro, ouvi a notícia e até pus a mão na boca, quase me apetecia gritar que não era justo.

Coitada da Helena, coitada, que coisa horrível. E ele parecia tão bem.

Até custa a acreditar numa coisa assim e que pena tenho da Helena, deve estar arrasada, coitada,

Mas, Sol Nascente, a vida tem destas coisas parvas, injustificáveis, injustas - mas tem outras que são boas. Por isso, vamos lá a levantar essa moral, a animar-se que amanha é dia de festa.

O estado de espírito positivo, a descontracção e alegria são fundamentais para manter o sistema imunitário forte. Por isso, Sol Nascente, sorria e ria e respire fundo e não pense em coisas tristes.

Um beijinho e já sabe: nada de imitar as mulheres de Hopper...!

Anónimo disse...

Cara UJM:
Obrigada pelas suas palavras sentidas e solidárias e que ajudaram a subtrair a dor e a diminuir o que não faz falta aos dias felizes.
Violência gratuita, um telemóvel foi a causa da agressão que o levou ao hospital.
Mas ouço, na televisão, a dor de uma perda e de uma ausência, Miguel Portas, dor indizível para uma mãe e impossível de imaginar.

E tenha uma boa noite
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura