Há decisões muito difíceis. No dia em que nos despedimos (e mandámos abater) a nossa cadelinha mais linda jurei para nunca mais. Disse e pensei e disse e pensei e durante anos disse e pensei: 'não volto a passar por isto'.
Os seus últimos anos foram muito difíceis: teve um tumor maligno, foi operada, teve anemias severas, teve que levar transfusões. Teve que ficar internada e era tão doloroso para ela quanto para mim. Ela não devia perceber que estivesse tão fraca e tão doente e que eu a deixasse ali. Olhava-me com aqueles olhos meigos e tristes que se cravavam no meu coração. E eu pensava que sofria tanto por ela quanto sofria pelas pessoas da minha família que estavam doentes. Ou mais porque as pessoas percebiam e ela se calhar não percebia.
Quando estava em casa e estava doente por vezes estava muito bem e, sem aviso prévio, olhava-me e caia, inerte. Eu gritava, aflita, temia que ela tivesse morrido. Depois vinha a ela mas ficava trémula, cansada. Eram simples desmaios mas eu ficava aterrorizada com medo que nos morresse.
Nos últimos dias estava muito mal, não tinha força. Ela, que nunca fizera as suas necessidades em casa, não aguentava e fazia-as na porta do prédio ficando depois muito nervosa e envergonhada pelo que tinha acontecido.
Lembro-me de num desses dias, nos últimos, eu ir à janela e ver, lá em baixo, o meu marido com ela. Ela quase não conseguia andar, o meu marido quase tinha que transportá-la. Era tão triste. Os dois tão tristes. Eu tão triste vendo-os pela janela.
A médica já nos tinha dito que a qualidade de vida dela estava a degradar-se acentuadamente, que já não havia muito mais que pudéssemos fazer. Estava quase com treze anos o que para uma boxer já era idade avançada.
Naquele dia ela estava mesmo muito mal. Olhava-me com muita tristeza, quase sem conseguir mexer-se. Queria levantar-se e não conseguia. Olhava-me, pedia-me ajuda, e eu tentava ajudá-la mas ela não conseguia. A tristeza dela era imensa. E a minha também. Tinha vontade de chorar só de ver a tristeza dela certamente por não perceber o que estava a acontecer-lhe. Ou, então, por perceber o que estava a acontecer-lhe.
Nesse dia levámo-la, uma vez mais, à clínica veterinária. Eu temia e intuía o que ia acontecer. Nas outras vezes ela levava uma transfusão, ficava a soro, algum tratamento. E ficava melhor por uns dias. Mas eu sabia que já estávamos a prolongar a vida dela para além do aceitável. Sabia que já não havia salvação possível.
E então cometi o acto mais cobarde e imperdoável da minha vida. Quando lá chegámos, não consegui sair do carro. O meu marido levou-a e ela, milagrosamente, ainda conseguiu ir pelo seu próprio pé. Foi como se o seu corpo, num último acto de resistência, quisesse dizer-nos que ainda não estava no fim. Ficou no passeio parada a olhar para trás. Uma vez mais não percebia. Eu a vê-la a olhar para mim, admirada por eu não ir com ela, eu a saber que devia estar a vê-la pela última vez. Eu a pensar que deveria ir, deveria ficar a abraçá-la. Eu sem ser capaz. Não posso esquecer-me. Por mil anos que viva não me esquecerei dela, virada para trás, a olhar para mim e eu, coração destroçado, fechada no carro, a chorar.
Foi o meu marido sozinho com ela. Ia carregado de tristeza. Não falava. Nenhum de nós conseguia falar. Ele entrou na clínica e eu fiquei no carro a vê-los entrar.
Quando me ligou, já eu estava no meu gabinete. Não conseguia falar. Mas também não precisava de falar. Desatei a chorar. Quando um colega meu entrou no meu gabinete, encontrou-me lavada em lágrimas, destruída pela tristeza.
Ainda agora, enquanto escrevo, não consigo evitar: estou a chorar. Tantos anos depois, ainda não me recompus da perda daquela cãzinha doce e meiga que fez de nós a sua família.
E durante todos os anos tenho pensado: não aguentarei passar por outro desgosto assim.
Mas não posso pensar apenas nos seus últimos tempos pois antes houve todos os anos de imensas alegrias. As vezes que corria na praia, as vezes em que ia no carro e muito anos de chegarmos à praia já estava numa alegria, a animação em que ficava quando íamos para o campo, as vezes que saltava de alegria quando chegávamos a casa, as vezes em que, mal adivinhava que íamos sair, se punha à porta à nossa espera, as vezes em que se abraçava aos meus filhos, aconchegada, recebendo e retribuindo a mais pura ternura, as vezes em que nos desafiava para a brincadeira, as vezes em que mostrava que nos compreendia e nos amava incondicionalmente. Não posso esquecer o afecto que nos ofereceu nem a nossa alegria por percebermos que adorava o nosso afecto.
Ao fim de tanto tempo consigo escrever sobre esse ser tão especial que habitou as nossas vidas.
Se calhar isso quer dizer que, finalmente, estou preparada para ter outro cão.
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O título do post é o título de um livro muito comovente de Manuel Alegre
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Uma boa sexta-feira
10 comentários:
Chorei a ler o seu lindo texto. Como a percebo, como tantos quantos tiveram o privilégio de privar com um bicho a entenderão.Eles tornam-se da nossa família, é uma provação acompanhar a sua degradação e depois uma dor dilacerante a sua perda. Mas proporcionam-nos tanta alegria! Cresci com cães, sempre os adorei mas na na minha vida adulta só tarde tive o primeiro, que surgiu por acaso já que nunca antes tinha sentido o apelo de ter um companheiro de quatro patas. Mas a partir dele foi tudo tão melhor, a minha vida ficou tão mais iluminada, senti-me uma pessoa tão mais feliz que logo decidi que iria haver sempre um patudinho. A perda de membros da nossa família é muito dura mas não desistimos de a ter e tanto fica do tempo em que estivemos juntos, tantas memórias boas. Obrigada por ter partilhado os sentimentos que viveu, parabéns por estar a considerar dar novamente espaço a um afeto assim. Uma sugestão: adote num canil ou obrigo, são tantos a precisar de dono...
Como a compreendo, UJM.
As mortes de uma cadelinha rafeira, que viveu connosco pouco tempo, e de um labrador, que viveu cá em casa longos anos, causaram-me, e à família, profunda tristeza.
Um abraço e adote, se puder, outro cão. Em sua casa, será feliz de certeza.
Um bom dia.
UMJ,
O recordoar do seu "animal" de estimação que se "foi". tocou-me no fundo do meu "eu". Também tenho um, mas este é gato e os gatos são de uma personalidade nada comparavél à humildade e dedicação ao de um cão.
Falar com um animal " de companhia" e sentir que ele nos está ( ou aparenta estar ) entendendo não tem descrição possivel.
Se tiver coragem, não esite em procurar outo " bichano".
Bem haja
Ando a ler um livro de Iris Murdoch em que uma personagem, à medida que se vai sentindo mais e mais insegura, se rodeia de mais e mais cães. Digo muitas vezes que devemos pensar no futuro. Como será, para mim e para ele (cão, gato, coelho, etc.), o futuro? Será que serei capaz de proporcionar a este companheiro maravilhoso, que me acompanhou em 10 ou 15 anos de vida, ou menos, por razões óbvias, aquilo que ele merece no seu fim?
Força, UJM!
Há tantos animais a precisar de um lar.
Também já passei por uma situação parecida. Saí do emprego destinada a chegar a casa e levar o meu pequenino para acabar com o seu sofrimento. Cheguei e ele estava deitado no chão, não se segurava de pé de tão fraco que estava. Antes de pegar na sua manta para o embrulhar, meti-me na casa de banho e chorei tanto, tanto, tanto, chorei alto e chamei pelo meu pequenino, como se ele já não estivesse ali. Depois lá o embrulhei,levei-o no colo e estive com ele até ao fim. Não sei se terei estofo para um dia ter de tomar outra decisão daquelas. Foi duro, duro, duro!
Ele tinha insuficiência renal. Tínhamos feito tudo, volta e meia ele tinha de estar a soro, parecia que ficava melhorzinho, mas piorava logo a seguir e para o fim, deixou de comer. Eu lá lhe ía dando algum alimento com uma seringa, mas ele não engolia, sequer.
Eu tinha um segundo cão e mais tarde adotei outro. Salvei-o, digamos!
Nenhum cão substitui o outro, mas ajuda a suavizar a dor. Ajuda tanto...!
Lurdes
Olá Unknown,
Quando se tem o privilégio de conviver de muito perto com um animal assim, o nosso coração torna-se mais doce. Conhecemos, em contacto directo, a verdadeira dimensão do amor incondicional. Mas, como sempre acontece com os seres que cativamos, tornamo-nos responsáveis por eles, tal como eles, certamente, também se sentem responsáveis por nós. Queremos que não sofram, que estejam sempre bem, que não nos faltem. E, quando chega o momento de decidirmos sobre a sua vida, isso é uma faca cravada no nosso coração e é como se toda a nossa vida a faca lá continuasse cravada.
Mas há os momentos bons que são imensos.
E, sim, caso nos decidamos, é em adoptar que estamos a pensar.
A nossa boxer foi comprada e tinha pedigree e aquelas coisas todas.
Agora não queremos nada disso, agora gostaríamos apenas de ter um animal que se afeiçoasse a nós e à família. Falta-nos dar o passo...
Obrigaga pelas suas palavras, gostei de as ler.
Olá Maria Dolores,
Eu antes tinha medo de cães. Uns primos tinham um boxer, um cãozão que me enchia de medo. Mas um dia convenceram-nos a ir ver uma ninhada que os pais dele tinham voltado a ter. Fomos nessa noite a casa dos criadores. E eu, ao ver aquela bichinha pequenina, não resisti. Comprámos.
Mas mesmo sendo ela bebé eu ainda tinha algum medo. Mas durou pouco tempo o medo. Cedo cresceu um grande amor.
Passaram vários anos desde a sua morte e sempre me mantive nesta de não querer passar pelo sofrimento de outra dor assim.
Mas desde há algum tempo que tenho vindo a sentir que a vontade de voltar a viver os bons momentos se está a sobrepor à memória dos dias perto do fim.
Obrigada pelas suas palavras.
E dias felizes, Maria Dolores.
Obrigada Anónimo/a
Os meus amigos que têm gatos falam da inteligência e da proximidade que se consegue com eles. Eu nunca senti afinidade com eles, receio-os, parece que não se percebe o que sentem.
Com um cão acho que é diferente: são francos, entregam-se.
Mas há o lado da perda da liberdade, da responsabilidade, dos trabalhos acrescidos. Não é assunto para que possamos ir com leviandade.
Muito obrigada pelo seu testemunho.
Uma boa semana!
Olá Atalhos,
Imagino que estes temas lhe sejam familiares e que assistir à tristeza destes momentos seja um dos ossos do seu ofício.
E isso que refere é outra preocupação que temos. Temos que perceber se temos e teremos condições para proporcionar, até ao fim, uma vida boa e digna a um animal que voltemos a ter na nossa família. Por vezes, ao vermos a descrição dos animais para adopção percebemos que há muitos cujos donos deixaram de poder cuidar deles, muitas vezes pela sua idade. E, como os próprios cães já são idosos, também ninguém os adopta. E isso é muito triste quer para os donos que tiveram que se desliar deles quer para os cães que passam por uma situação igualmente traumática, porventura sentindo-se rejeitados quando mais sentiriam que o apoio mútuo era fundamental.
Fazemos contas aos anos que teremos quando o cão for velho e percebemos que, se formos vivos, também já não seremos novos. E claro que isso nos deixa apreensivos.
Mas depois penso que são riscos que, se queremos voltar a ter um cão, deveremos correr. E, como os meus filhos também gostam muito de cães, creio que, se alguma coisa nos acontecesse que nos impedisse de continuar a tomar conta dele, eles assegurariam a sua guarda (mas seria uma sobrecarga, receberem nas suas vidas um cão velho e talvez doente... e isso não me agrada nada).
Há receitas para se tomar a decisão certa?
E obrigada pelo que escreveu, T., deixou-me aqui a pensar.
E desejo-lhe uns dias felizes.
Olá Lurdes!
Descreve uma situação muito idêntica à que vivi excepto que foi corajosa enquanto eu fui indesculpavelmente cobarde.
Também já pensei nisso: se calhar, deveria ter dois e não apenas um para não me apegar de uma forma tão absoluta, para que não haja esta sensação de inseparabilidade. Um não substitui o outro mas, havendo mais um, haverá que continuar presente para que nada falte ao que está vivo.
Não sei. Mas sei, isso sim, que se viermos a ter de novo um cão, será adoptado, um cãozinho que esteja à espera de ter uma família.
Obrigada. Gostei de vê-la por aqui e espero que esteja tudo bem consigo (se é que é a Lurdes que eu 'conheço' e com quem já troquei alguns mails).
Abraço.
E dias felizes, Lurdes!
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