quinta-feira, julho 16, 2020

Nestes dias de canícula, respiremos juntos, dancemos à chuva





Estava um calor que não se aguentava. Gosto de calor, em estando à vontade gosto de andar sem roupa nem sapato. Mas nem assim se aguentava. Tanto calor, tanto. Na véspera, também muito, a meio da tarde o céu toldou-se. Tudo cinzento, opressivo. As cigarras suspenderam a gritaria. Não gostei. Pensei que tomara que não fosse a tal trovoada seca que tantas vezes traz sustos no ventre. Em vez de desemprenhar as águas, desemprenha raios e coriscos. Não costuma trazer vida, tantas vezes vem é com coisa má. Mas, passado algum tempo, o véu cinzento carregado foi-se indo e as cigarras voltaram à sua agitação. Passado um bocado, algumas nuvens brancas e, pouco depois, nem isso, só um imenso azul. 

Hoje sempre azul, melhor assim, mas, ó céus!, dele descia um calor abrasador. Muito mau estar a receber aquele sol na pele. Não se conseguia.


Parece que as temperaturas vão continuar a subir. Mete medo. Se se levanta uma aragem mais agitada o medo cresce. O tempo assim traz em si um desvio ao natural. Não gosto. Gosto de sentir a natureza como tenho ideia que ela era antes de se transfigurar. Em dias como estes sinto saudades da aragem fresca, das primeiras chuvas, do arrepio cheiroso a terra que sobe pela pele.

Fui ali à janela. Está escuro. Só as luzes da cidade iluminam o rio. Vem um fio de ar mais fresco mas não a maresia fresca e cheirosa pela qual anseio. 

Esta quinta-feira tenho tanto que fazer que nem sei para onde me virar, muita coisa para tratar. O que me tem trazido animada e que traz o regaço cheio de mudança começa a dar-me trabalho. E prende-me as ideias. Tenho vontade de me deixar estar agarrada a isso, a pensar, a fazer projectos, a antecipar como será. Que voltas e reviravoltas a minha vida está a levar. Parece impossível. E o mais curioso é que, quanto mais mudo, mais ainda me apetece mudar. Despir a pele toda, renascer com uma vida inteiramente nova.


Faço contas. Penso: já estamos no verão? Quanto mais tempo deste calor iremos ter? Como será a minha vida até ao Outono? Tanta coisa que me espera e eu com tanta vontade de começar a percorrer novos caminhos. E o outro surto? No outono? Até ao inverno? Até ao início da primavera? Como vai ser? Nesta vida condicionada em que não consigo habituar-me a viver como se na normalidade estivesse? A trabalhar em casa? Cada vez mais desabituados de contactos físicos? Voltaremos a habituar-nos? Como serei eu um dia que tudo isto acabe? 

Esta quinta-feira calçarei sapatos altos, voltarei a perfumar-me. Um brilhozinho nos lábios não vale a pena. No outro dia esqueci-me e, quando dei por mim, estava a máscara toda cor-de-rosa por dentro. E, quando cheguei a casa e me descalcei, doíam-me os pés. Há muito tempo que não usava sapatos altos. Tudo estranho nesta vida arrafeirada. Para estar a falar ao pé dos outros, pomos máscaras. Sentimos vontade de ir para casa e falarmos por videoconferência para estarmos com os rostos à vista. Ontem um jovem pediu para falar comigo, tinha uma coisa para me dizer. Depois perguntou se podia desabafar. Claro que sim. Olhos nos olhos, em privado. No outro dia um colega, ao ouvir outro a pedir para falar comigo em privado, disse que era o confessionário. Um confessionário virtual, olhos nos olhos. Gosto. É uma sensação de ainda maior proximidade. O rosto de um junto ao rosto do outro, a conversarmos, a respirarmos em sintonia, em total confiança. E só me ocorre que não vamos esquecer-nos destas conversas nem vamos querer prescindir desta proximidade que é tão real.


Bem, derivei. Já devo ir na enésima derivada. O tema era também outro: era o como seria bom dançar à chuva, à noite, talvez ao luar, talvez um lobo a espreitar, arfando no silêncio da intimidade lunar.

Assim faz o extraordinário Sergei Polunin, semi-deus, semi-bicho, semi-homem-pássaro (e é deliberadamente que o somatório transcende a unidade).
‘We can do together what we can’t do alone’- Hard times can come into everyone’s life. It is hard to not give up. Take a moment, breathe, and find the strength that you need to go into a brighter future. Dance will help to go through the bad times, and everything will get better. As long as we are dancing together.

Voa Sergei, voa.

And let's breathe together


Respiremos juntos também, falemos olhos nos olhos.

E saúde. E um dia sereno.

1 comentário:

MARIPA disse...

Gosto tanto de a ler...parece que está a falar comigo. É virtual, eu sei, mas sinto cada palavra que escreve.
O que será a vida daqui por uns tempos? Nem é por mim, é pelos meus e por todos. Tenho uma família grande, com filhos, netos e um bisneto a caminho, espalhados por aí, cá e lá fora. Falamo-nos sempre que podemos, claro, estão sempre presentes em mim, mas não os posso abraçar... O meu coração está inquieto e triste, mesmo que lute para não estar. Não queremos mem podemos, eu e o meu marido, preocupá-los. Perdoe o desabafo!

Gostei do vídeo final, o Maxim Mirvica já conhecia {sem as tatuagens), as mãos dele dançam no piano e o bailarino que não conhecia, parece voar, mas vou à cata dele, impressionou-me.

Está uma noite abafadora, vou tentar respirar o melhor que posso...

Abraço amigo.