quarta-feira, janeiro 15, 2020

Amor e coragem. E os acidentes que, por vezes, acontecem.





Cada casamento terá as suas características, uns mais românticos, outros mais apimentados, outros mais tumultuados. E, quando falo em casamento, falo em sentido lato. Refiro-me a uma relação íntima, estreita, uma união para a vida (mesmo que não dure uma vida). Não precisa de papel passado. 

Conheço vários tipos de casais. Num dos mais extraordinários apenas conheço um dos elementos, o homem. O que sei daquele casamento é através do que ele conta, das fotografias que, volta e meia, mostra e dos telefonemas que recebe, frequentes, e porque, pelo exaspero em que fica, fala em voz tão alta que eu não posso deixar de ouvir. E o que ouço deixa-me perplexa. Se o meu marido falasse assim comigo, quando chegasse a casa tinha a fechadura trocada e um saco de plástico à porta com um par de cuecas, um par de meias, uma camisa que já não lhe servisse e umas calças de verão se fosse inverno ou vice-versa. Contudo, a este meu conhecido a mulher já nada deve levar a mal pois, mal ele lhe desliga o telemóvel, passado segundos já ela está a ligar de novo e ele volta a gritar e a desligar e ela volta a ligar. E, no entanto, são inseparáveis. E, aparentemente, não apenas as discussões constantes não os abalam enquanto casal como, pelo que constato, não o abalam a ele pois acaba estes turbulentos telefonemas e, acto contínuo, continua a conversa comigo ou com quem for como se nada se tivesse passado.


Conheço outro que dizia que gostava em absoluto da mulher e que, desde novo, queria acabar os seus dias com ela ao lado. E era sincero. Gostava dela em todas as vertentes: achava-a bonita (e é), prendada (e é), inteligente (e é), boa pessoa (e é), educada e simpática (e é), boa companhia (e é), elegante (e é). E, no entanto, tinha uma qualquer pulsão que o levava a traí-la dia sim, dia sim, deixando-a num permanente estado de ciúmes e de nervos. Até que a rotura foi inevitável. E aí ele andou de namorada em namorada até que se fixou numa que é a antítese da primeira: feia, mal jeitosa, mal arranjada, antipática, bardajona. E, no entanto, quando se pensaria que aquilo não poderia durar, a verdade é que já lá vai quase tanto tempo com esta segunda como com a primeira. E isto mantendo-se em contacto com a primeira e quase parecendo que, tivesse ele coragem, seria para ela que voltaria. E, no entanto, não volta -- para desgosto dela e não sei se também dele. Uma coisa que jamais perceberei. 

E conheço um outro casal, uma vez mais pelo que sei do lado dele. É o segundo casamento. Para mim é um casamento de fachada pois, do que lhe conheço, não fosse ele dependente da opinião alheia e já há muito teria assumido a sua orientação noutro sentido. Faz-se de muito macho mas a mim não me engana ele. Há uns anos contou-me que a mulher andava aborrecida, queria separar-se, dizia-me que a mulher andava com ideias esquisitas. Enquanto ele falava eu só pensava: 'Qual o espanto...?'. Depois foram superando as crises e a verdade é que continuam casados. De vez em quando ouço-o ao telefone com ela. Parecem grandes amigos, diria que cúmplices. Da maneira como fala dela, diria que não passam um sem o outro.


O meu casamento não é como nenhum destes. Presumo que não haja dois casamentos iguais. Nem sei qual a receita para um casamento duradouro. Mas também não acho que o objectivo seja ter um casamento duradouro. O objectivo deve ser a felicidade, sendo que cada um se sente feliz à sua maneira. Se a relação é uma fonte de angústias ou uma permanente frustração, então, mais vale pôr um ponto final. E vida nova. 

Os membros de um casal devem sentir-se mesmo unidos, um deve apoiar o outro e esse apoio deve ser equivalente, não pode ser um apoiar totalmente e o outro fazer de conta que sim. E devem acompanhar-se, mas acompanhar-se mesmo, e devem achar que a companhia do outro é a melhor companhia do mundo. E devem estar juntos nos bons e nos maus momentos. E devem ser uma fonte de boa disposição, devem fazer-se rir um ao outro. E devem compreender os receios e as incertezas um do outro e devem ajudar o outro a encontrar forças quando elas faltam. E devem ser uma fonte de amparo e de carinho. E devem gostar mais ou menos das mesmas coisas.

Se uma relação não for um espaço de paz, harmonia e construção do futuro, então, bye-bye. 

E não pode haver desconfiança de um em relação ao outro. Não pode. A desconfiança mina, mata. Deve haver confiança plena, inquestionável. E não me refiro a minudências. Pelo contrário, acho que devemos passar ao largo das pequenas coisecas que apenas servem para chatear. Confiar não é sinónimo de possuir. Ninguém possui ninguém. Ninguém deve querer possuir ou ser dono dos actos do outro. Um casamento deve ser um espaço de liberdade. Liberdade. Referia-me à confiança de verdade. Saber que, se estivermos doentes, se necessário for, o outro se sacrificará para atenuar o nosso sofrimento, saber que, se precisarmos de suporte no auxílio a terceiros, poderemos contar com ele, sabermos que, em qualquer momento difícil que atravessemos, o outro estará lá para nos dar a mão. Esse tipo de confiança que é o chão, o ar e o céu de que precisamos.


E estou com isto porque hoje o santo algoritmo do YouTube me apareceu com uma invulgar: uma queda num número acrobático que nos faz parar a respiração. Aliás, antes da queda já a respiração quase me faltava. É preciso uma pessoa confiar muito na outra para fazer o que estes dois aqui fazem. É certo que 'love is courage'. Pelo menos assim o vi escrito numa parede. E concordo. Mas coragem como a destes dois é coisa invulgar.

Mas os acidentes acontecem.


E a seguir, sugeriu que visse o que aconteceu num destes dias, numa exibição já este ano.

Uma confiança ilimitada. Uma coisa que supera o imaginável.



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O algoritmo ousou, apresentando-me uma coisa que foge aos meus gostos habituais mas, uma vez mais, acertou. Gostei de ver.

Lembrei-me de ir buscar pinturas de Chagall e de trazer Grace com You Don't Own Me com Kate Moss a dar corpo à liberdade.

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Um dia feliz para si aí desse lado. E coragem, ok?

3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

As coisas interessantes que se podem trabalhar em contextos psicoterapêuticos.
Para haver casamento, como maravilhosamente descreve, é preciso amor, a capacidade de viver o outro sem se perder no outro.

Dias felizes.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Quando estava a escrever estava a pensar que gostava de poder ser mais explícita para o Francisco poder 'visualizar' melhor aquelas relações e poder pensar nas explicações possíveis. Os afectos assumem muitas formas e podem ser gratificantes de maneiras imprevistas. Mas podem também ser irracionais e fazer mal a quem os vive. Perceber onde está a fronteira pode ser difícil. Penso que é aí -- ou melhor: também aí -- que o papel dos psicoterapeutas é fundamental.

Seja como for, um casamento deve ser bom para ambos pois, se não for, não se justifica. Acho eu...

Um abraço, Francisco. Um dia feliz.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Sem dúvida!

E também acho que se não for bom para os dois, deixa de ser um casamento na sua totalidade e não se justifica.

Um dia feliz também.