sábado, outubro 26, 2019

Ergo-me do lado de cá do mar, do lado de cá de mim





A JV, em cujo gosto confio sem questionar, recomendou-me o 'O rei faz vénia e mata' e eu, que sou bem mandada, fui à procura dele. No outro dia fui à livraria grande. Não tinha. Encomendariam mas, tal como tinham informado num outro dia, teria que pagar logo. Ora embirro com isso. Há abébias que não dou, tenho por lema de vida não contrariar as minhas embirrações. Portanto, fui esta sexta-feira à livraria pequena. Não tinham mas encomendaram. Gente de paz. Gosto de lá. Pequenina mas o que lá há é tudo bom. 

Os clientes também são dos que gostam de livros, gente que, do que percebo, é gente do bem.


Só uma cliente hoje me pareceu ser sombria. Tinha um semblante carregado, chegou, leu um papel e pediu um livro. Depois disse que queria talão de troca porque era para oferta e, a seguir, disse que era com contribuinte. A livreira, jovem simpática e insegura (talvez por ser recente lá), perguntou-lhe o número de contribuinte, tirou o talão, perguntou se queria saco. A cliente, com ar de poucos amigos, perguntou: 'E o talão de troca?'. A jovem fez um ar atrapalhado, pediu desculpa, que tirava já. A cliente, com ar superior, carregou no cenho: 'Eu tinha dito que era para oferta!'. A jovem voltou a pedir desculpa, aflita. E eu pensei que a vida daquela mulher devia ser muito má para descarregar tanto azedume em cima de uma pessoa tão insegura e esforçada como a jovem livreira. 


A seguir aproximou-se um homem muito alto, muito bonito. Deslizou como um leopardo por entre os livros, folheou alguns. Pensei que o conhecia, o nome à espreita atrás do pensamento. Depois ele passou a mão pela farta cabeleira e eu confirmei que era mesmo ele. Pensei que era a primeira vez que via uma pessoa da televisão que, em vez de ter metade do tamanho que parecia, tinha era o dobro. Pensei também que era mais bonito do que antes pensava que era. Pensei que era bom que falasse para eu poder confirmar se o mesmo com a voz. Falou mas foi em voz baixa, não conseguir distinguir o timbre. Esteve ao pé da caixa a falar com a livreira. Então chegou uma jovem que deveria ter metade da idade dele mas que deveria andar pelo metro e oitenta, cabelos muito compridos, daqueles que as jovens põem todo para um lado. E um vestido branco, pelo meio da perna, solto, botas, e, por cima, um casaco leve, também comprido, quase do tamanho do vestido, grandes bolsos. Chegou-se a ele, deu-lhe um beijo na boca que ele recebeu com indiferença. A seguir ela recebeu uma chamada e foi atender lá para fora e ele continuou a ver os livros.

Quando ia a sair, reparei na agenda literária. Folheei. Gostei. Pensei que talvez me habitue a tomar apontamentos. Voltei atrás. Depois vi as tisanas da Ana Hatherly. Tentei-me. Vi o I'm your man. Folheei. Não me tentei. Não sei se quero saber mais dele. Acho que há pessoas que não devem ser dissecadas para que não percamos o encantamento cego pelo que fazem.


Quando vinha a sair, saíu também o gigante, lindo, tranquilo. Seguiu como se se tivesse esquecido da namorada. Ela, ainda ao telefone, pondo o cabelo ora sobre um ombro, ora sobre o outro, foi atrás dele.

Tive pena de ser míope porque não consegui ver que livros ele tinha levado. 

E a seguir fui eu que recebi um telefonema e foi ainda ao telefone que desci ao interior da terra e foi ao telefone que conduzi até ao escritório. E toda a tarde foi uma complicação, tantos telefonemas, tantos mails, tantas mensagens, tanta gente a vir falar ao meu gabinete que acabei o dia tarde e com a cabeça feita em água. E quando cheguei a casa ainda tinha mails para responder e agora já os despachei a todos mas sei que nos próximos dias a coisa vai agravar-se porque estamos numa fase crítica e porque junta-se a fase dos forecasts e orçamentos e análise de desvios e isso em cima de tudo o resto é uma canseira. 

E agora estou aqui a pensar que podia ter preparado uma infusão de chá branco porque isso faria pendant com as tisanas que tenho estado a bebericar no intervalo destes rabiscos.


112. É de noite. Deito-me no chão e penso no meu corpo. Estou no meu corpo a seu lado. Estou do seu lado. Interrrogo que queres. Querer é a lei da boca.
113. Estás de visita meu corpo se agita o que é belo me agride. Uma chuva de dardos reconstrói o mistério que conduz ao êxtase. Nos amantes há sempre esse decisivo horror.


E, ao prosseguir, ocorre-me que, afinal, com estas palavras, talvez ficasse bem algum gengibre na infusão de chá branco.

Ocorre-me também que tão bom como estar aqui, em silêncio, a escrever a meio da noite é conhecer pessoas extraordinárias que chegam até mim pelas suas palavras tal como eu lhes chego pelas minhas palavras. Uma teia, uma rede feita de palavras unindo-me a pessoas que, longe de mim, desconhecidas, imateriais, sabem tocar o meu coração. Umas chegam com o seu nome, a sua história de vida. Outras chegam com outros nomes, outras histórias. Mas há verdade em tudo. E eu sinto o pulsar, o respirar, o olhar de todas essas pessoas, aí desse lado, tão perto de mim.  E não sei como agradecer o bem que me fazem sentir.


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As imagens mostram trabalhos de Ana Hatherly tal como são dela as duas tisanas que transcrevi (do livro '351 tisanas') e as palavras que escolhi para encabeçar o post. Lá em cima, Leonard Cohen interpreta Happens to the Heart 

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Desejo-lhe, a si, um bom sábado, um sábado com saúde, alegria, afecto, tranquilidade

6 comentários:

Anónimo disse...

Que bem mandada, UJM! Ainda não se rendeu ao Wook? A maior livraria do país: ou não vendessem eles os livros de mil e uma livrarias. Já tenho apanhado até umas edições raras. Ontem foi Dia das Compras na Net (!) e foi uma perdição. E eu que andava tão bem comportada há meses: tinha logo de calhar no dia a seguir a ter comprado dois sacos de livros velhos e de interesse ainda duvidoso num alfarrabista. Para quem acha que não gosta de comprar livros sem primeiro lhes mexer, os folhear, eventualmente cheirar: é experimentar e verão se não ficam logo agarrados. A felicidade de receber uma encomenda, em casa ou no escritório, e serem livros compensa a falta de contacto anterior!
Um abraço,
JV

Anónimo disse...

Não é a namorada, é a mulher: Francisca van Zeller. E não tem metade da idade dele, mas talvez menos uns dez anos. ;)

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

Pois, o Wook... tenho andado a protelar. Desculpo-me com o ter que tomar o pulso para saber se me serve. É como vestidos online: não arrisco.

Mas, quem sabe, um dia não me aventuro.

Não me ponha é desafios desses na cabeça porque eu, quando o pecado tem a ver com livros, peco muito facilmente...

Abraço, JV!

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

Tem graça esse seu palpite. Porque acha que é deles que estou a falar?

Bom domingo.

Isabel disse...

Também sou fã do site Wook. Peço livros (muitos) há anos e só um me desiludiu. Pedi um livro a pensar que era de decoração e era de arquitectura. E foi caro. Às vezes também me aborrece, quando peço livros (normalmente de arte, estrangeiros) e estou imenso tempo à espera, dizem que está pedido ao editor e depois dizem que está esgotado ou que não conseguiram. Já me aconteceu algumas vezes.
Mas também já consegui livros que não arranjei nas livrarias.

Agora estou à espera de dois de decoração, que vi num video dum canal do youtub. São de uma artista que tem uma casa super gira e colorida, que vive numa quinta. Vou ver se consigo deixar-lhe aqui o link do video... https://www.youtube.com/watch?v=4TI9SRIVJNg

Beijinhos e boa semana:))

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel

Livros + decoração = tentação

Vou ver o link.

Obrigada!

Beijinho e uma semana com tudo de bom para si, Chabeli!