sexta-feira, outubro 25, 2019

E se fosse consigo? E se fosse consigo? E se fosse consigo?


Há coisas que não consigo. Muitas.

Por exemplo, não consigo fazer outra voz que não a minha. Não consigo falar à Puorto, não consigo falar à alentejana, não consigo falar com voz estridente, não consigo falar com voz grossa. Pela mesma razão, porque não aprendi a falar espanhol (escolarmente falando), não me sinto bem a falar espanholês, sinto-me ridícula, parece que estou a fazer uma imitação mal sucedida. Também não consigo imitar os gestos de outra pessoa. Ainda gostava, um dia, de tentar fazer representação, só para perceber se seria capaz. Acho que não seria.
Provavelmente isso advém de ter muita dificuldade em disfarçar. Por exemplo, se não gosto de uma pessoa, seja porque a acho parva, estúpida, nula, tóxica, oportunista, egoísta, narcisista, o que for, não consigo disfarçá-lo. O mais que consigo é conter-me para não lhe dizer na cara o que penso dela. Mas, ainda assim, é bom que não me dê o pretexto que eu, por dentro, estarei a ferver só à espera que 'make my day'. Da mesma maneira, se gosto, não dá para não o mostrar. Mostro sem pudor.
Mas isto para dizer que, talvez ainda mais pela minha incontornável falta de jeito na coisa, sempre achei graça às pessoas que conseguem imitar vozes. Eu, se tentar reproduzir o que uma pessoa disse e quiser imitá-la, o que faço, ainda que involuntariamente, é caricaturá-la e, pior, acrescento, sem querer, expressões minhas que revelam o que penso dela, ou seja, estrago tudo.

Não é, de todo, o caso de Jim Meskimen, que abaixo verão, imita a preceito vozes e expressões. Mas o vídeo é mais que isso: o vídeo tem aquele quê de perturbador de que já no outro dia falei a propósito do vídeo do The Economist. Verão como o rosto dele se transforma no rosto da pessoa que está a imitar.

A tecnologia permite fazê-lo e cada vez há-de ser mais fácil fazê-lo e, como não é proibido, mais gente o fará. Seja por graça, seja pelo que for. O morphing veio para ficar.
E assim, Caro Leitor ou Leitora, se um dia vir um vídeo em que se vê a si a dizer coisas que nunca disse ou a fazer coisas que nunca fez, não se admire. Pode tentar provar que aquilo que ali está é forjado de alto a baixo mas não lhe será fácil. 
Em contrapartida, se um dia vir um vídeo em que se vê claramente alguém a fazer uma coisa imperdoável, pode ver-se confrontado com a reacção dessa pessoa, dizendo que a pessoa que ali se vê não é ele/a e que o que está a fazer não foi feito. 
Ou, se vir o Professor Marcelo a fazer striptease ou a contar anedotas brejeiras em vernáculo puro, gozando alarvemente com alentejanos ou com louras, ou o Louçã em conversa informal com a Catarina a fazer a apologia dos Mellos e a aconselhá-la a defender a abertura de mais hospitais privados, ou mesmo, se vir o Mário Nogueira, em amena cavaqueira com a Avoila, a confessar que votou no Costa, não caia à primeira. 
Este, convençamo-nos, é o admirável mundo novo que, aos poucos e na maior leviandade, temos vindo a construir. Não nos queixemos.


2 comentários:

ninghem disse...

"Este, convençamo-nos, é o admirável mundo novo que, aos poucos e na maior leviandade, temos vindo a construir. Não nos queixemos." (Citação de UJM, ênfase minha.)

A ansiedade em relação aos amanhãs que cantam poderá ser, em larga medida, precipitada. Porquê?
Porque, antes da manhã, existe sempre uma alvorada, que será caracterizada pela ausência de quem saiba substituir uma simples torneira e ainda melhor - para quem usa desodorizante activo 72 horas e que, portanto, se julga imune à falta de água,- de quem saiba substituir um simples disjuntor.

Quando o que restar das profissões técnicas forem algumas pessoas mal preparadas e mais preocupadas em acompanhar o que se passa no écran do smartphone e frustradas e nervosas quando dele têm que desviar o olhar, então é que a leviandade nos irá atingir em cheio.

"É difícil conseguir que uma pessoa compreenda algo quando o bem-estar(/emprego) dessa pessoa depende de não compreender." (Traduzido e adaptado a partir de uma frase original de Upton Sinclair.)


(Para a autora/editora de Um Jeito Manso

Exma. Senhora,

Eu é que agradeço a possibilidade que oferece a quem lê os seus textos de olhar para o que nos rodeia a partir de outra perspectiva. Muito obrigado.)

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ai UJM, eu pelo contrário com muito ou pouco jeito há coisas que não consigo reproduzir sem tentar imitar a voz de quem as disse originalmente.

Um fim-de-semana radioso.