segunda-feira, junho 18, 2018

Para que ela saiba que continuo a escutá-la


[Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida]

Quando a visitava e estava sozinha, ela, assim que me via, abria um sorriso que me deixava prostrado de felicidade e de remorsos por a visitar tão menos quanto devia e queria ou podia. Mas ela nunca reclamava, sabia e compreendia. 

Ao princípio, falava muito, queixava-se do país, da política, disto e daquilo, do mau tempo, da falta de sol e de luz. 

Depois, se eu estava de regresso de alguma viagem, queria saber tudo. Embora me tenha dito uma vez uma frase que já citei algures ('Miguel, viajar é olhar'), não queria ver fotografias algumas, que eu não levava, aliás: queria apenas que eu lhe contasse o que tinha visto, como se ela pudesse então ver também. 

[Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.

Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem]

Mais do que tudo, intrigavam-na as minhas frequentes viagens ao deserto:

- Mas o que há no deserto, Miguel?

- Nada, mãe.

- Nada?

- Nada. Areia e pedras. E, à noite, há estrelas.

Calava-se, então. Essa era uma das suas características mais pessoais: podia calar-se a meio de uma frase de um interlocutor e ficar assim, como se tivesse partido para outro planeta, sem aviso.

[Devagar, devagar, em frente à luz,
Carregado de sombras e de peso,
Arrancando o seu corpo da raiz.

No extremo dos seus dedos nasce um voo
No vértice do vento e da manhã
Uma asa vai perdida dos seus dedos]

Quem não a conhecia bem, ficava sem chão, sem saber o que fazer. Mas eu sabia, também aprendi com ela que saber partilhar o silêncio é a forma mais íntima de estar com alguém. E, na verdade, por maior que seja o silêncio, nunca deixou de falar comigo. Quanto mais não seja nos poemas que deixou nas páginas dos seus livros, alguns dos quais escrevi nas paredes da minha casa para que ela saiba que continuo a escutá-la.

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Não é primeira vez que aqui tenho estes vídeos mas, se puderem, mesmo que também já os tenham visto, por favor vejam




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Excerto do livro Cebola crua com sal e broa, da infância para o mundo, de Miguel Sousa Tavares
Fotografias feitas este domingo in heaven onde se podem ver poemas de Sophia escritos em azulejos
Primeiro vídeo: "Sophia de Mello Breyner Andresen -- O Nome das Coisas"
Segundo vídeo: Sophia de Mello Breyner Andresen de Joao César Monteiro 

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4 comentários:

bea disse...

Obrigada por Sophia revisitada.

Um Jeito Manso disse...

Oh bea, agora até me desconcertou. Uma palavra simpática da sua parte é medalha, é presente, sabe bem. Obrigada, eu!

bea disse...

:). Está fartinha de saber que lhe admiro a prosa e a considero pessoa de bom gosto e claro conhecimento.

Um Jeito Manso disse...

Oh bea, o que lhe deu para não vir por aí à sapatada...? Nem a reconheço! Sempre gostei de ler o que escreve (aqui ou noutro sítio) mas a sua secura por vezes desconcertava-me. Assim, simpática, é um prazer. E obrigada, de novo.