domingo, dezembro 24, 2017

A solidão ou o infortúnio em tempo de Natal






Chegamos ao Natal debaixo de um outono ensolarado. Ouvi que no propriamente dito dia vai estar de chuva mas, por enquanto, há sol e passeei debaixo de um límpido céu.

Lembrei-me hoje de um dia, mil anos atrás, em que também estava sol e frio. Lembro-me da boneca que recebi nesse Natal. Mais tarde a minha mãe haveria de lhe fazer uma saia de fazenda aos quadradinhos azuis e brancos e uma camisolinha de malha canelada branca e é assim que eu me recordo dessa boneca. Não me lembro do nome que lhe dei. Só me lembro que tinha cabelo comprido louro e tinha um rosto que não era bem de boneca embora tivesse feições delicadas. Fiquei orgulhosa por ter uma boneca tão invulgar e tão linda.

Recebia os presentes no dia de Natal, de manhã, junto ao sapatinho que deixava na véspera junto à chaminé, e era o Menino Jesus que mos dava. Depois fomos almoçar a casa dos meus avós paternos e, claro, levei a minha boneca nova.


Do outro lado da rua da casa da minha avó morava a avó de uma colega minha da escola infantil. Era uma menina chinesa. O pai tinha estado numa missão em Macau e veio de lá com essa filha. Depois casou com uma das educadoras da escola onde eu andava, uma grande amiga da minha mãe. A menina passou a ser aluna da madastra.

Essa minha educadora era muito simpática e divertida mas, por algum motivo que ninguém compreendia (e em que a minha mãe, quando eu lhe contava, se recusava a acreditar) passava-se com a enteada e não apenas se zangava para além da conta como, frequentemente, lhe batia. Eu ficava consternada. Não compreendia o que desencadeava aquela violência sobre a minha amiga, sempre tão bem comportada e tão doce. Claro que ela tinha uma certa falta de vocabulário mas eu achava isso mais do que compreensível e não percebia como é que a minha educadora, sempre tão simpática, conseguia ser tão agressiva com uma menina tão querida.

Talvez por isso, a minha amiga era silenciosa e, por vezes, triste.


Penso que hoje ninguém consideraria admissível que uma educadora desse bofetadas numa criança em plena sala de aulas mas, nessa altura, ninguém dizia nada.

Nesse dia de Natal, pedi aos meus pais para ir visitar a minha amiga que eu sabia que estava a passar o Natal com o pai e a madastra na casa da avó emprestada.

Lembro-me bem. Estava sentada na cama do quarto onde ficava quando lá pernoitava. Tinha apenas um livro. Como ainda não sabia ler, estava a folhear, a ver os bonecos. Tinha um ar muito triste. Nunca falava da mãe excepto quando eu lhe perguntava. Dizia que não sabia dela, que, se calhar, tinha morrido. Vendo-a assim, ali sentada sozinha e apenas com um livro como presente, fiquei triste por ela. Pensava que, tivesse ela uma mãe de verdade, e haveria de ser mais feliz. Ia para lhe mostrar a minha boneca mas passei-a logo para os seus braços. Só vim de lá quando a minha mãe me chamou. Voltei cabisbaixa, com muita pena da minha amiga. 


Anos mais tarde, essa amiga da minha mãe conseguiu finalmente ter filhos. Soube depois que chegou a pensar que não conseguiria. Talvez por isso sublimasse a sua frustração, sendo agressiva para com a filha do marido. Quando conseguiu ser mãe, adoçou em relação à enteada. Os miúdos gostavam muito daquela irmã mais velha, de rosto redondo, olhos rasgados e cabelo preto escorrido e ela era do mais carinhoso que há para com os seus irmãozinhos.

Quando vem o Natal, lembro-me muitas vezes daqueles para quem o Natal, por algum motivo, não é tempo de alegria.

Dantes eu não tinha máquina de café expresso em casa e, por isso, tomava-o na rua. Como nas vésperas de Natal me deito sempre tarde (como em todos os dias, mesmo sem ser Natal...) -- e no dia havia a 'cena' dos miúdos a verem os presentes, e depois era pôr o almoço ao lume -- só depois, geralmente já depois do meia-dia, é que conseguia ir ao café. Era um café muito grande que servia também refeições simples, como sopa, bitoque ou coisas do género. E fazia-me uma impressão terrível quando via algumas pessoas sozinhas a almoçarem ali, no dia de Natal. Reparava como as pessoas comiam de olhos baixos, talvez para não encararem os olhares das outras pessoas, quase como se estivessem envergonhados por estarem a almoçar sozinhos, no café, no dia de Natal. Aquilo era para mim muito triste. E, no entanto, não sei se era. Mas, para mim, sempre rodeada de amigos e família, era como se aquelas pessoas estivessem abandonadas e o meu coração sentia-se condoído por elas.


Em tempos, havia um rapaz com bom ar que eu via aqui na rua frequentemente alcoolizado. Fazia-me também muita impressão. Tão novo e naquilo, tão novo e sem que a família conseguisse impedir aquilo que parecia desenhar-se como um crescente vício. Uma vez, para minha surpresa, vi-o a fazer o papel de arrumador. Quando estacionei, ele veio pedir-me dinheiro e, como sempre, estava embriagado. Disse-lhe que não lhe dava dinheiro porque achava que ele não precisava de dinheiro mas de procurar tratamento. O rapaz ficou a olhar para mim meio atarantado e fez um gesto respeitoso com o boné. E eu fiquei a sentir-me estúpida por ter ousado pensar que sabia aquilo de que o rapaz precisava. O tempo foi passando e ele por aqui. Aos tombos, pedindo dinheiro a quem estacionava. A mim nunca mais me pediu dinheiro. Pelas companhias em que passou a andar percebi que se tinha tornado um sem-abrigo. Depois começou a andar com uma mulher mais velha, esquelética, com ar de alcoólica ou drogada, não sei. Deixou de ser um rapaz. De garrafa na mão, sempre. De vez em quando, passam-se grandes temporadas sem que o veja. Penso que estará a tratar-se ou penso que caíu de vez. Hoje, por entre aquele frenesim de entra e sai, promoções e luzes e cânticos de natal, quando ia a entrar no supermercado, reparei num homem já com a calvície a despontar e com o boné na mão, a pedir. Era ele. Fiquei cheia de pena. Não lhe dei esmola. Não sei porquê mas acho que iria ferir o seu orgulho (se é que lhe resta algum orgulho). Mas custa-me muito pensar no que aquele rapaz fez da vida dele. Tinha um ar saudável, andava bem vestido e agora está transformado num pedinte. Não sei que memória guardará ele destes seus anos de decadência. Talvez não guarde memórias. Penso: tomara que a família não o veja assim, o boné na mão estendida, nas ante-vésperas de Natal.

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Depois de andar a falar em presentes e compras e coisas do género, pode até parecer disparatado eu estar aqui hoje a falar de assuntos que não têm um smile estampado na testa, quando deveria talvez era estar a falar em preparativos para a festa. 

Mas se o Natal tem algum significado -- e para mim é, sobretudo, um período de convívio familiar -- é nos que se sentem mais sozinhos e tristes que eu hoje penso. Ontem, o Um Jeito Manso teve quase 3.000 visitas. Talvez alguns desses meus Leitores também se sintam também sozinhos e tristes. Aliás, sei que sim. Alguns. E é para eles, em especial, que vão os meus sentimentos. Gostava que, de alguma maneira, as minhas palavras fossem o abraço que gostariam de ter. Não estão sozinhos.




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E um piano mágico para animar o espírito.



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As fotografias foram feitas este sábado

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