De vez em quando, estar no trânsito é uma bênção. Conduzir de manhã, o ar fresco a entrar pela janela e, na rádio, a música, a boa música. Por vezes interrogo-me sobre o que é isso da boa música. Música boa acima de qualquer subjectividade. Se, por exemplo, ouço Satie, o frio a tornar ainda mais limpo o céu tão azul, as árvores de um tom dourado, eu penso que há uma felicidade também acima de qualquer escolha. A felicidade absoluta que nasce de momentos assim, independentes das circunstâncias.
Desta vez a flauta, música oriental. E César Viana falando tranquilamente. E falava de música, de flautas com nomes misteriosos e de actividades surpreendentes como 'olhar as cerejeiras em flor', como 'contemplar o Monte Fuji'. E eu ouvi-o com encantamento.
Em tempos tive um colega e amigo que tinha uma mulher pianista e muitos filhos, uns músicos, outros pintores. Tinha uma imensa biblioteca, quase sem sítio para se sentarem, tantos os livros, tanta a tralha dos filhos. Espalhava lápis pela casa para que, quem deles precisasse, tivesse sempre algum à mão. Apesar da confusão que devia ser a casa dele, era, contudo, uma pessoa tranquila, quase silenciosa, e que tinha como passatempo olhar pássaros. Nessa altura, eu ainda sabia pouco da vida. Achava que viver era sinónimo de estar sempre a fazer qualquer coisa, e coisa com préstimo, palpável. Não percebia, pois, que alguém passasse horas a olhar para pássaros. Nem os fotografava, nem os desenhava. Nada. Apenas os olhava.
Hoje sinto saudades das nossas conversas e do prazer sereníssimo que transparecia das suas palavras. Fazia passeios em função dos pássaros que ia ver. Descrevia-os, descrevia os lugares diferentemente belos consoante a época do ano, falava das migrações, dos hábitos de nidificação ou acasalamento, falava de como sabia onde descobrir os pássaros. Tentava educar-me.
E eu, assim, no carro, com as minhas recordações, entregue ao que ouço na rádio, longe, longe dos assuntos dos meus dias, longe, longe de problemas -- crises, desvios nos resultados, rácios da dívida, ebitdas, desmotivações, reestruturações -- longe, longe.
E, então, enquanto ouço o som sereno da flauta, vou pensando como gostaria tanto de estar in heaven a olhar as árvores, a olhar o pouco musgo que vai rompendo, a geometria abstracta dos ramos quase nus das figueiras, o desenho harmonioso das sombras nas paredes brancas, a ondulação dos montes ao longe. E a ouvir o canto feliz dos pássaros.
Quando o trânsito flui, vejo com apreensão a aproximação do meu destino. Por vezes, chego à entrada da garagem e deixo-me ficar mais um pouco a ouvir a música ou as palavras dos entrevistados. Falo da Antena 2, claro.
Quando o trânsito flui, vejo com apreensão a aproximação do meu destino. Por vezes, chego à entrada da garagem e deixo-me ficar mais um pouco a ouvir a música ou as palavras dos entrevistados. Falo da Antena 2, claro.
Foi o caso desta terça-feira de manhã. Momentos tão bons.
Depois desci às catacumbas onde a rádio não entra, estacionei e, de elevador, subi à torre onde as janelas não são janelas e não foram feitas para abrir. Quando entrei no escritório, esqueci a música e as maravilhosas actividades de que César Viana falou. E entrei no meu mundo tão cheio de problemas para resolver, tão intranquilo, tão preso às circunstâncias.
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Entretanto, recebi um mail de um Leitor que me deixou agradecida e generosamente recompensada. Sem lhe ter pedido autorização, tomo a liberdade de aqui o partilhar com todos vós:
Obrigado pela prosa feita poema. Uma pequena dádiva em jeito de agradecimento:
Sei que estás aqui, sempre estiveste.
A tua aura flanando sobre mim é que me veste.
Em todos os lugares encontro a marca dos teus passos.
No sonho me aconchego no enleio dos teus braços.
É inútil esconderes-te no seio dos segredos,
pois tenho a pele lavrada pelo tateio dos teus dedos.
Caminho nas nuvens seguindo o teu roteiro,
guiado pelo perfume do teu cheiro.
Risco no azul navegações de asas
em torno da febre que me consome
e é de ti toda esta fome
que me queima como brasas.