quarta-feira, agosto 09, 2017

A luz do olhar


Sempre que dou de caras com o retrato que pintei da minha filha, fico a olhar sem perceber bem que parte da pintura é tão diferente dela a ponto de se olhar e perceber que, apesar de quase poder ser, de facto, não são a mesma pessoa. E, no entanto, mal o olho logo a reconheço. É ela e, no entanto, não é.

Fi-lo a partir de uma fotografia do seu casamento. Modifiquei um pouco o vestido, pintei-o a dourado porque, na minha cabeça, é assim que a vejo. Cheia de luz. Apesar de sair ao pai na pele morena e no cabelo escuro, tirando quando anda com aqueles picos de stress que a deixam capaz de trucidar quem se lhe atravesse à frente, para mim ela irradia luz. Quando era adolescente, eram quatro amigas e, entre elas, ela era o sol. Outra a lua e as outras não sei. No dia do casamento, então, vestida com o vestido dos seus sonhos, numa cerimónia e, depois, numa festa que idealizou ao milímetro, tudo passado em lugares de sonho, com uma música escolhida ao mínimo pormenor, entre família e amigos e completamente apaixonada, toda ela irradiava felicidade. Descrevi esse dia e os que o precederam em vários posts.

Quando, nas minhas pinturas, decidi suspender a abstração e tentar o retrato foi logo nela que pensei. Uma luta. Ou o brilho do olhar ou o sorriso ou a curva do rosto, qualquer coisa ali me falhava. Olhava a fotografia e olhava a minha obra e parecia-me que a tinha reproduzido com todo o cuidado e, no entanto, na minha pintura não vejo aquele desafio alegre que a caracteriza. A fotografia que escolhi é a preto e branco porque quis ter liberdade para a banhar de cor mas tive que me forçar a pendurar o grande quadro na parede para não continuar indefinidamente a retocá-lo enquanto não a visse lá, segura, jubilosa, insinuando raios de luz à sua volta.

Nunca mais pintei nenhum retrato e duvido que volte a tentar. 

Ficou claro para mim que me falta arte para conseguir abstrair-me dos pormenores reais e fixar o que apenas se pressente, o que, não sendo visível, traça a diferença.

Olho os retratos que Picasso fez das mulheres da sua vida. Um olho para cada lado, o nariz descentrado, a boca perfilada mesmo que o rosto de frente, o corpo desconstruído -- e, no entanto, está lá a graça de uma, o nervo de outra, a sensualidade de mais uma. Olha-se e reconhecem-se e elas são intemporais e, pela mão dele, tornaram-se eternas nas suas linhas e cores abstractas.

Uma vez em França, em Montmartre, um pintor de rua retratou os meus filhos. Perfeitos. O meu marido perguntou se eu não queria. Não quis. E sempre que vejo um pintor de rua a fazer bons retratos tenho a dúvida: e se fizesse? Mas nunca me arrisco. E se o que ele fizesse fosse o retrato de uma desconhecida? E se os outros achassem que era eu e só eu me desconhecesse? Não quero. Prefiro viver na ignorância do meu pretenso conhecimento.

Tenho um livro que mostra auto-retratos e a forma como os pintores se têm visto ao longo dos tempos, tantas vezes tão diferentemente do que as fotografias os mostram. 

Eu nem em fotografia me registo, não faço selfies. Mas gosto de fotografar a minha sombra no meio da sombra das árvores, ou nas rochas, como se fosse uma pintura rupestre, rudimentar. Gosto de pensar que a minha sombra contém uma parte de mim e que essa parte de mim habita os lugares que me encantam e neles perdurará.

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Há pouco vi um vídeo incrível. Retratos feitos não em fotografia, não com tintas... mas com erva. Erva de verdade. Relva.


Custa a crer que um retrato feito desta forma retenha a luz do olhar, a humildade da expressão, o silêncio do momento. Tal como os retratos de Vhils, escavados nas paredes, também estes, parece conterem vida. Vejam, por favor, porque é impressionante.

Grass is something that most of us take for granted. We walk all over it, we lay on it and sometimes mow it down. Few appreciate grass the way Dan Harvey and Heather Ackroyd do. And yet their art can stop you in your tracks. By manipulating the natural processes that fuel life itself, these British artists blur the line between science, nature and art, all while drawing attention to climate change.


Growing Portraits with Grass




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As três primeiras imagens mostram Jacqueline, Marie Thérèse, e Dora Maar, três das mulheres de Picasso por ele pintadas.

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E queiram continuar a descer para verem como uma actividade da maior utilidade pública (detectar incêndios em florestas) pode proporcionar momentos de encantamento a que, ano após ano, quem as pratica não consegue fugir.

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