Tinha agora o costume de se sentar no chão, os vidros das janelas completamente abertos. Descobriu uma agenda antiga e um lápis e ia tentando recordar, ano a ano, alguma coisa que, na sua vida, tivesse sido relevante. Como não o conseguisse, passou a fazer ao contrário: tentava recordar algum acontecimento marcante e tentava perceber em que ano tinha isso sido.
De início não se lembrava de quase nada mas, aos poucos, parece que a memória começava a despertar.
E sentia que esse exercício mental lhe fazia bem, parecia que até lhe trazia apetite. Um dia viu que já não tinha em casa quase nada que comer. Vestiu-se de forma descuidada; mas, antes de sair de casa, voltou atrás, pôs a t-shirt por dentro dos calções, colocou um cinto e um colar -- reminiscências de quando, uma eternidade atrás, não saía de casa sem se sentir irrepreensível (e irresistível). E foi ao supermercado. Soube-lhe bem. O ar da rua, a sensação de liberdade, a simplicidade da situação, tudo lhe foi agradável.
Quando voltou, arrumou tudo, tomou outro duche para se refrescar, e com gosto, dirigiu-se à sala. Escolheu uma música e pôs-se a pensar e a escrever. Não podia falar, dissra-lhe ele, mas podia escrever.
E os dias foram passando. E, aos poucos, foi adquirindo uma nova rotina: pegava num copo de sumo de laranja, em miolos de amêndoa, sentava-se no chão, pegava num banquinho que lhe servia de mesa e, muito concentrada, preparava-se para o exercício. Não sentia emoção ao trazer para o tempo presente acontecimentos que julgava ter esquecido. Encarava isso com a disciplina com que sempre se entregara a todos os trabalhos.
E portanto, era assim que os dias iam passando: de manhã tomava banho, ia para a cozinha já a pensar em episódios que tinha recordado, comia um queijo fresco ou um iogurte e uma peça de fruta -- mas estava absorta e, logo de seguida, como se fosse hábito antigo, dirigia-se para a sala. De facto, quase se sentia motivada.
Quando voltou, arrumou tudo, tomou outro duche para se refrescar, e com gosto, dirigiu-se à sala. Escolheu uma música e pôs-se a pensar e a escrever. Não podia falar, dissra-lhe ele, mas podia escrever.
E os dias foram passando. E, aos poucos, foi adquirindo uma nova rotina: pegava num copo de sumo de laranja, em miolos de amêndoa, sentava-se no chão, pegava num banquinho que lhe servia de mesa e, muito concentrada, preparava-se para o exercício. Não sentia emoção ao trazer para o tempo presente acontecimentos que julgava ter esquecido. Encarava isso com a disciplina com que sempre se entregara a todos os trabalhos.
E portanto, era assim que os dias iam passando: de manhã tomava banho, ia para a cozinha já a pensar em episódios que tinha recordado, comia um queijo fresco ou um iogurte e uma peça de fruta -- mas estava absorta e, logo de seguida, como se fosse hábito antigo, dirigia-se para a sala. De facto, quase se sentia motivada.
Um dia, lembrou-se da ida à Argentina. Tinha-se entusiasmado com a perspectiva de ir para um país lá tão longe mas, de facto, não era pelo país, era apenas porque tinha imaginado que ele ia aproveitar para ir com ela, quase como uma lua de mel. Afinal não conseguiu. Ou disse que não conseguiu. Nunca conseguia. Provavelmente o medo de andar de avião tinha falado mais alto. O homem tão corajoso nos negócios deixava de dormir e tinha que tomar ansiolíticos de cada vez que tinha que andar de avião. Frequentemente, à última hora, inventava uma desculpa e arranjava maneira de ir alguém por ele. Tantas horas de voo para nada. Uma viagem tão difícil, mau tempo no ar, passageiros com ataques de pânico. Depois reuniões complicadas, demoradas. Muitos do outro lado e ela sozinha, apenas com o advogado local. Gente que parecia afável e afinal tão enganadores. Supostamente já estava tudo combinado, ia lá apenas para firmar o acordo e eles, sem que nada o fizesse prever, traiçoeiramente, davam o dito por não dito e queriam introduzir cláusulas que desvirtuavam o acordo.
Podias ter lá ficado mais uns dias, dissera-lhe ele, tom de censura. Talvez. Mas tudo aquilo lhe trazia impaciência. Tinha ido contrariada por ele não ir. E aborrecia-se por ter que, uma vez mais, atravessar o mundo sozinha. E sempre de cara alegre. Até que, naquela vez, não conseguiu manter a aparência, fartou-se. E regressou. De mãos vazias, sem acordo, cansada. Podias lá ter ficado. Não devias ter desistido tão facilmente. As palavras dele naquele seu tom superior, blasé. Fosse ele, pensa ela ainda, tanto tempo depois.
Outra vez. Há quanto tempo? Seis, sete anos? Fez passar a ideia de que estava ali para desenvolver a empresa que tinham comprado a preço de salto. Era a CEO. uma mulher na administração de uma empresa praticamente toda masculina. Os trabalhadores confiantes. Depois de tanta incerteza, finalmente novos donos, finalmente, na administração, alguém que apostava na empresa. E ela sabendo que não, a fingir. Sem preocupações morais, como se estivesse apenas a cumprir uma missão, cínica, cínica todos os dias. Mas, na altura, nem pensava nisso. Decidiu o fecho de delegações, a rescisão de contratos. Emagrecer, ganhar o direito à sobrevivência - dizia. Insensível a casos pessoais. Depois, quando os custos estavam mais equilibrados, nova fase: conquistar quota de mercado. E repetia os clichés todos, o empowerment, a leadership, e decidia formação para todos, e apregoava a felicidade na organização, a motivaçao, vamos todos vestir a camisola, remar na mesma direcção. E, quando os resultados melhoraram, quando a noiva se tornou apetecível, vendeu a um fundo, sabendo que no pacote ia mais uma sangria, o despedimento de mais de metade daquela gente motivada e feliz.
Aquele que tinha sido o seu braço direito, um que orgulhosamente dizia que fazia parte da mobília, ingénuo e dedicado à empresa, sentiu-se traído. Ela sabia que ele seria o primeiro a ser contactado para se ir embora mas não apenas não o avisou como, a partir do momento em que realizou a operação, lavou as mãos das consequências. Sabia que os novos donos não tinham rosto e, portanto, também não existia vestígios de compaixão -- e os trabalhadores identificados como excedentários ou iam a bem ou iam por despedimento colectivo. E ela sem querer saber disso para nada. O encaixe foi excelente. A operação rendeu-lhe um bónus e pêras. Soube que o tal se tinha suicidado. Paciência. Cabeça fraca, disse. Lembra-se da conversa no gabinete do Mr. Big Boss, ela encostada à mesa de reuniões, sedutora, indiferente aos danos colaterias da sua gestão eficaz. Era bem sucedida, conseguia sempre avultadas mais valias para o accionista, e isso era a única coisa que lhe interessava. E ele, olhando a vertiginosa mulher que gostava de o desafiar: 'És perigosa, não és? Não queria ser teu inimigo...' e olhava-a, ar malicioso -- e ela gostava de o tentar, gostava de lhe mostrar que era capaz de o ultrapassar pela direita e pela esquerda.
Sem auto-complacência, sem falsos moralismos, páginas e páginas. Escrevia tudo aquilo de que se lembrava. De repente, as recordações -- que dias antes pareciam estar a esvair-se -- voltavam. E voltavam com toda a nitidez.
Este texto que acabo de escrever vem no seguimento de Sou aquela que transgride o abismo da paixão. Faz parte de um folhetim a que ainda não dei nome. Continuo agarrada a um nome muito inconveniente. Três letrinhas apenas. Mas não pode ser.
Não sendo esse, só se fosse Lu, uma mulher muito perigosa. Mas não sei.
Podias ter lá ficado mais uns dias, dissera-lhe ele, tom de censura. Talvez. Mas tudo aquilo lhe trazia impaciência. Tinha ido contrariada por ele não ir. E aborrecia-se por ter que, uma vez mais, atravessar o mundo sozinha. E sempre de cara alegre. Até que, naquela vez, não conseguiu manter a aparência, fartou-se. E regressou. De mãos vazias, sem acordo, cansada. Podias lá ter ficado. Não devias ter desistido tão facilmente. As palavras dele naquele seu tom superior, blasé. Fosse ele, pensa ela ainda, tanto tempo depois.
Outra vez. Há quanto tempo? Seis, sete anos? Fez passar a ideia de que estava ali para desenvolver a empresa que tinham comprado a preço de salto. Era a CEO. uma mulher na administração de uma empresa praticamente toda masculina. Os trabalhadores confiantes. Depois de tanta incerteza, finalmente novos donos, finalmente, na administração, alguém que apostava na empresa. E ela sabendo que não, a fingir. Sem preocupações morais, como se estivesse apenas a cumprir uma missão, cínica, cínica todos os dias. Mas, na altura, nem pensava nisso. Decidiu o fecho de delegações, a rescisão de contratos. Emagrecer, ganhar o direito à sobrevivência - dizia. Insensível a casos pessoais. Depois, quando os custos estavam mais equilibrados, nova fase: conquistar quota de mercado. E repetia os clichés todos, o empowerment, a leadership, e decidia formação para todos, e apregoava a felicidade na organização, a motivaçao, vamos todos vestir a camisola, remar na mesma direcção. E, quando os resultados melhoraram, quando a noiva se tornou apetecível, vendeu a um fundo, sabendo que no pacote ia mais uma sangria, o despedimento de mais de metade daquela gente motivada e feliz.
Aquele que tinha sido o seu braço direito, um que orgulhosamente dizia que fazia parte da mobília, ingénuo e dedicado à empresa, sentiu-se traído. Ela sabia que ele seria o primeiro a ser contactado para se ir embora mas não apenas não o avisou como, a partir do momento em que realizou a operação, lavou as mãos das consequências. Sabia que os novos donos não tinham rosto e, portanto, também não existia vestígios de compaixão -- e os trabalhadores identificados como excedentários ou iam a bem ou iam por despedimento colectivo. E ela sem querer saber disso para nada. O encaixe foi excelente. A operação rendeu-lhe um bónus e pêras. Soube que o tal se tinha suicidado. Paciência. Cabeça fraca, disse. Lembra-se da conversa no gabinete do Mr. Big Boss, ela encostada à mesa de reuniões, sedutora, indiferente aos danos colaterias da sua gestão eficaz. Era bem sucedida, conseguia sempre avultadas mais valias para o accionista, e isso era a única coisa que lhe interessava. E ele, olhando a vertiginosa mulher que gostava de o desafiar: 'És perigosa, não és? Não queria ser teu inimigo...' e olhava-a, ar malicioso -- e ela gostava de o tentar, gostava de lhe mostrar que era capaz de o ultrapassar pela direita e pela esquerda.
E, com afinco, Lu escrevia todas estas memórias.
Sem auto-complacência, sem falsos moralismos, páginas e páginas. Escrevia tudo aquilo de que se lembrava. De repente, as recordações -- que dias antes pareciam estar a esvair-se -- voltavam. E voltavam com toda a nitidez.
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Este texto que acabo de escrever vem no seguimento de Sou aquela que transgride o abismo da paixão. Faz parte de um folhetim a que ainda não dei nome. Continuo agarrada a um nome muito inconveniente. Três letrinhas apenas. Mas não pode ser.
Não sendo esse, só se fosse Lu, uma mulher muito perigosa. Mas não sei.
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