Depois de um dia de ausência -- de novo uma ausência -- Lu saíu da abulia e voltou a si, à sua rotina. Durante todo o dia escrevia memórias, tentando localizá-las no tempo. Aos poucos, ia conseguindo cartografar a sua existência que dias antes lhe parecia vazia.
Agora, a rotina estava mais consolidada. Escrevia até estar exausta, os músculos doridos, a nuca em fogo.
De manhã, quando chegava à sala, relia o que tinha escrito na véspera. Espantava-se com o que ali encontrava. Era a sua vida, disso não tinha dúvidas, mas era como se se tivesse passado num tempo que não era o seu ou como se apenas tivesse sido espectadora do que se tinha passado.
Naquele dia, tinha acordado a pensar num episódio que, na altura, a tinha divertido.
Tinham combinado que uma certa pessoa não era 'grande espingarda' e que, portanto, deveria saltar. Falavam assim: 'aquele não é grande espingarda, tem que saltar'. Há já algum tempo que ele a mantinha ao corrente do que fazia para que fosse o outro a querer sair de livre vontade: atribuía-lhe objectivos irrealizáveis, não lhe dava as condições mínimas para que ele conseguisse fazer alguma coisa, 'apertava' com ele dia e noite, em privado e em público. Ela lembra-se agora bem de como um dia, numa reunião com a grande mesa orlada de gente, ele ter interpelado o outro, perguntando-lhe como estava um determinado assunto. O outro queria explicar as dificuldades mas ele não o deixava. O outro era sucessivamente interrompido 'não quero desculpas, quero resultados', dizia ele com voz melíflua, sem levantar a voz mas deixando aperceber uma violência em crescendo. Ninguém ousava interromper aquela tortura. 'Não conseguiu fazer nada do que se pretendia. Avanços: zero. Certo?' e, quando o outro, uma vez mais, queria invocar a impossibilidade da missão, ele a interromper, voz seca, 'Sim ou não?'. O outro, quase sem voz: 'Não' e ele 'Ok, era o que eu queria ouvir', logo mudando de assunto, deixando o pobre homem humilhado, isolado naquela mesa cheia de cobardes. Lembra-se de assistir a isso sem emoção, sem compaixão, quase achando graça à crucificação do outro.
Dias depois, ele disse-lhe 'vamos ali falar com o gajo, vamos arrumar o assunto'. Ela não percebeu: 'E que tenho eu a ver com o assunto?'. 'Tens, vais ficar com a incumbência de o despachar e arranjar alguém para o lugar dele'. Aceitou sem protestar. Tudo aquilo lhe parecia normal. Era assim que as coisas se passavam.
Na sala, grande e propositadamente desconfortável, uma mesa em U, aberta ao meio, ele e ela de um lado, o outro. longe, em frente. De novo um interrogatório feroz, de novo o outro a derrapar, a fraquejar e ele, sem dó, a apertar. De vez em quando, ele virava-se para ela, pedia-lhe opinião e ela, cínica, tão cínica, improvisava ali uma solução qualquer. Reparava que o outro abanava a cabeça, achando que o que ela dizia não fazia sentido mas ela respondia: 'Está a abanar a cabeça? Não concorda? Mas tem alternativas? Se tem, porque não as pôs ainda em prática?' E o homem, infeliz, a acabar por fazer aquilo que se esperava dele: 'Desisto. Estou a dar cabo da minha saúde. Não aguento mais isto. Demitam-me.' e ele, frio, 'Nós demiti-lo... ? Não senhor. Nós contamos consigo, ora essa'. E então, finalmente, a rendição total: 'Então, demito-me eu. Não aguento mais isto'.
E ele, frio, 'Muito bem, se sente que a saúde não está bem, não quero ficar com esse peso na consciência. É escrever uma carta e entregá-la à doutora, ela encarregar-se-á de tratar das coisas o melhor possível. A companhia tem esta tradição, tratar com humanidade todos os seus'.
E, quando o pobre coitado, arrumava os papéis, derrotado, amedrontado, ele encostou-se mais a ela e disse em voz baixa 'Nisto só vejo um problema' e ela, já solidária na preocupação: 'Sim... qual...?' Ele, voz sussurrada: 'É a mesa ser aberta, vê-se tudo. É que essas pernas estão um apetite'. Lembra-se de como teve que disfarçar, cheia de vontade de rir.
Mas, logo que o outro saíu, desforrou-se: provocou-o, vingou-se da maldade dele mas toda ela era malícia -- e queria lá ela lá saber da maldade dele ou do triste destino que esperava o outro pobre, era mais um assunto resolvido e o resto era conversa -- naquela altura já só queria era divertir-se. E, então, depois de muito o tentar, deixou que, ali mesmo, ele provasse o fruto proibido.
E, quando o pobre coitado, arrumava os papéis, derrotado, amedrontado, ele encostou-se mais a ela e disse em voz baixa 'Nisto só vejo um problema' e ela, já solidária na preocupação: 'Sim... qual...?' Ele, voz sussurrada: 'É a mesa ser aberta, vê-se tudo. É que essas pernas estão um apetite'. Lembra-se de como teve que disfarçar, cheia de vontade de rir.
Mas, logo que o outro saíu, desforrou-se: provocou-o, vingou-se da maldade dele mas toda ela era malícia -- e queria lá ela lá saber da maldade dele ou do triste destino que esperava o outro pobre, era mais um assunto resolvido e o resto era conversa -- naquela altura já só queria era divertir-se. E, então, depois de muito o tentar, deixou que, ali mesmo, ele provasse o fruto proibido.
Enquanto escreve, e escreve com distanciamento, olha a mesa em frente e pousa o olhar no belo objecto de vidro que, um dia, ele lhe ofereceu.
Foi outro daqueles dias. Fazia anos. Tinha querido ter um dia de férias, ir à praia, ao cinema, descansar. Na véspera, à noite, um telefonema dele. Era a atribuição de bolsas de mérito a jovens que se tinham candidatado. Apresentavam um projecto, havia uma comissão que fazia uma selecção e uma validação técnica, depois um júri que analisava as candidaturas seleccionadas e, então, havia uma sessão solene, com convidados e, no fim, era atribuído um prémio especial. Pelo meio havia música, projecção de filmes. Ela deveria estar presente, claro, mas, com antecedência, fizera saber que não ia poder ir. Pois de véspera, à noite, uma vez mais ele dizia que não podia ir, um compromisso de última hora, ela que o representasse. Ela que não. Não lhe disse que fazia anos, disse apenas que precisava de descansar, que tinha planos, que há que séculos ele estava avisado. Mas ele não sabia receber um não como resposta e ela não tinha paciência para o contrariar.
Foi. Contrafeita. Quando ao fim do dia chegou a casa, aborrecida, estava ele à porta do prédio, presente na mão. Foram a beijar-se no elevador preparando-se para festejar o aniversário. De vez em quando ele conseguia surpreendê-la: teria jurado que ele não se lembraria que fazia anos e, afinal, tinha aparecido com aquela peça tão bonita, a mesma que uma vez ela tinha desejado, num dia de verão, quando tinham ido à procura das obras do Pde Manuel Antunes. E ali estava ele, terno como um namorado, beijando-a, olhando-a nos olhos, pondo-lhe um chapéu sobre os cabelos despenteados, pedindo-lhe que se despisse para ele, que desabotoasse a camisa, devagar. E ela fazendo o que ele pedia mas não para prazer dele mas para seu próprio prazer. Gostava de ver o efeito que o seu desejo provocava nele.
Depois, mais tarde, corpo com corpo, ele foi o de sempre, convicto e falando indecências. E, só pela forma desprendida e obscena dele se entregar ao sexo, ela lhe desculpava tudo o resto.
O que também não era bem verdade pois, para ser completamente sincera, não lhe atribuía culpas nenhumas, de nada, já que ela, compactuando com ele, na prática era igual.
Depois, já tarde, nessa noite, ele sentou-a, nua, ao seu colo e puxando-lhe o cabelo para um lado, disse-lhe: 'Escuta. Fixa este nome: MyGodess. Era para ser para mim mas houve uma troca de mãos. Fica para ti. Tens lá um presente. Considera que é um bónus. Vou deixar aqui os dados.'. Ela olhou, sem grande interesse. ouviu palavras como 'o pêlo do cão', 'offshore', 'tudo certinho, limpinho'. Mexeu nos papéis. Viu um número com alguns zeros. Não estranhou. Era esse o mundo em que também se movimentavam.
Era já de madrugada quando ele se levantou, 'Tenho que ir. Reuniões de partir pedra, estas, as horas passam e não se chega a lado nenhum. Sorte tem a minha mulher que é artista, não tem que aturar estes gajos, chatos, que só estão bem a pôr areia na engrenagem. Estou farto de lhe dizer isso, a sorte que tens, sabes lá a seca que são estas reuniões que vão pela noite dentro'. Ela olhou-o de lado, divertida. Não que o achasse um bom malandro, talvez antes um belo sacana. Mas até por isso lhe achava graça.
E, escrevendo tudo isto, parecia-lhe que tudo se tinha passado há muito tempo. E, no entanto, pensando bem, não fora assim há tanto. E não sentia pena nem arrependimento pois parecia que as recordações eram de outra que não ela.
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Este texto que acabo de escrever vem na continuação daquele outro que escrevi quando me sentia mergulhada em tristeza: Numa noite sem palavras.
E continua em: Num excesso sempre incontido de perda e perdição
E continua em: Num excesso sempre incontido de perda e perdição
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E, não que tenha a ver com o que acima se escreveu mas porque sou dada à cultura geral e específica e gosto de partilhar o que julgo saber, queiram, por favor, saber as últimas sobre o clítoris -- para ver se acabamos de vez com a cliteracia
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