segunda-feira, março 31, 2014

Alípio de Freitas, Luanda Cozetti, José Afonso. O generoso laço da fraternidade. A liberdade que nunca deveremos calar no nosso peito. Estamos quase em Abril.



O 25 de Abril por Vieira da Silva


Aproxima-se Abril e a generosidade que tantas vezes salta fronteiras e se aproxima dos que combatem pela liberdade ou, apenas, por um futuro digno, começa a ser mais assiduamente evocada. 

Pode haver gente ignorante ou miserável que despreza a história ou os outros e que vive fechada na sua pequena caixa de tweets, agarrada ao seu mural de facebook ou presa a coisa nenhuma que não a sua maldade mascarada de eficiência - mas a esses devemos ter a sabedoria de desprezar (tanto mais que, empoleirados na sua pesporrência, geralmente, não aceitam ensinamentos alheios ou gestos de comiseração).



Mural pintado pelos alunos da Escola de Arte de Lagoa



Pelo contrário, deveremos deixar que o nosso coração se encha de solidariedade, de vontade de lutar pelos outros, pelos que já não têm força para isso e pelos que parecem não encontrar espaço para se desenvolverem.

(Estou a escrever isto e sinto que as estas palavras quase soam a banalidade, a conversa fiada - mas é inabilidade literária minha pois sei bem que não é banalidade, sei bem que a solidariedade e a energia para lutar são bandeiras que bovinamente trazemos enroladas, esquecidas na passividade em que nos deixamos adormecer)

Abril é, por excelência, o mês da primavera, do renascimento, o mês limpo de que falava Sophia, falando do dia em que Portugal renasceu em festa.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.

E, por falar em Abril...


... Eu era menina e estava numa casa de grande pé direito, de soalho de madeira, e, às vezes, abria-se a porta da divisão onde eu estava e via a cara de José Afonso a espreitar. Depois a porta fechava-se e eu não sabia para onde ia ele.

Quando era o 1º de Maio, sabia-se de prisões, e falava-se de José Afonso, mas não se sabia se era verdade ou não. Eu não sabia, era menina ainda. Mas nunca se sabia bem de nada, havia um clima de medo, falava-se das coisas à boca pequena. Talvez os mais crescidos soubessem melhor mas tenho ideia de que, se sabiam, falavam disso às escondidas.

Depois, já mais tarde, eu tinha um namorado cantor - e que bem ele cantava - e tocava e cantava de tudo e, entre esse tudo, Joan Baez e José Afonso. 

A seguir um outro namorado. Não tocava viola nem tinha o vozeirão do outro mas, embora fosse de poucas palavras, sabia de cor todas as canções de José Afonso (tal como sabia dizer de cor parte dos Lusíadas e outros poemas).

Aqui em minha casa tenho os discos todos de José Afonso (em vinyl, claro). Se toca ou se vem à conversa alguma canção do Zeca, o meu marido ainda a canta de fio a pavio.

Uma das canções de que nunca conheci a história para além do que José Afonso lá diz é Alípio de Freitas

Leio agora:

José Afonso tinha feito, depois do 25 de Abril, uma canção dedicada a um padre transmontano que no Brasil se tornara guerrilheiro e ali fora preso. Dizia assim: “Baía da Guanabara/ Santa Cruz na fortaleza/ Está preso Alípio de Freitas/ Homem de grande firmeza// Em Maio de mil setenta/ Numa casa clandestina/ Co’a companheira e a filha/ Caiu nas garras da CIA.” 





Muitos outros, desde então, têm recriado as canções de José Afonso. Uma das mulheres que o fazem com entrega é a improvável Luanda Cozetti, uma brasileira, que, com Norton Daiello, seu companheiro na vida e na música, formou o duo Couple Coffee, que várias vezes já divulguei no Ginjal & Lisboa. A última vez que o fiz foi justamente com a sua interpretação de Alípio de Freitas.


Pois qual não é o meu espanto quando hoje leio que Luana é nem mais nem menos que filha de ... Alípio de Freitas, justamente a filha de quem o Zeca falava na canção. Fiquei pasmada.



Leio também agora:

Passados sete anos, já com o Couple Coffee bem instalado no meio musical português, resolveram relançar o disco. E arriscar essas duas canções, com uma curiosa abordagem. Traz outro amigo também conta com a voz do próprio Alípio de Freitas que, nascido em Vinhais, em 1929, deixa ali impresso o seu sotaque transmontano e altivo. 


Luanda conta, agora, como correu a experiência:

“Pôr o meu pai a cantar não foi nada difícil. Há uns dois anos que estávamos com essa ideia, mas fomos enrolando. Estas duas músicas tinham ficado de fora do disco. Alípio de Freitas por aqueles motivos todos e Traz outro amigo também porque foi uma música em que eu não queria mexer. Porque, para mim, ‘aqueles que ficaram’ são os que ficaram pelo caminho. Estou cercada de defuntos, enfim. Mas achei que agora era a hora dessa canção, propus ao meu pai e ele foi profissionalíssimo, 40 minutos de estúdio e gravou tudo, cantando, falando deu uma alegria, uma dignidade à canção. Quisemos deixar a forma como ele fala, o timbre muito transmontano, ficou muito lindo assim.”



Traz outro amigo também pelos Couple Coffee (com Alípio de Freitas)






Enquanto estou a escrever, estou a ouvir a voz de Alípio de Freitas e estou emocionada. O mundo dá muitas voltas e às vezes há ciclos que se fecham mas fecham-se como um laço de espanto e afecto, um abraço. Alípio de Freitas, o próprio, interpreta agora José Afonso e fá-lo pela mão da sua filha, a menina que vivia numa casa clandestina quando ele, homem de grande firmeza, foi preso.


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