Tenho que ter cuidado com o que escrevo. Estou aqui na minha sala, praticamente às escuras, e ponho-me a escrever como se estivesse a divagar sozinha ou como se estivesse a confidenciar apenas junto de si, meu caro/a Leitor(a) que me está a ler. E, depois, por vezes, esqueço-me que não sei quem me está a ler.
Claro que tenho cuidados: se falo de pessoas reais, não apenas não divulgo o nome, como tento não dar pormenores que permitam identificá-las.
Claro que tenho cuidados: se falo de pessoas reais, não apenas não divulgo o nome, como tento não dar pormenores que permitam identificá-las.
E, no entanto, como a escrever sou como a falar, pão, pão, queijo, queijo, nada na manga, nada de dissimulações, acontece que, apesar dos cuidados, sou tão realista que depois me vejo confrontada com situações imprevistas.
Uma vez escrevi sobre um ex-político, ex-ministro, e, embora tivesse tido o cuidado de não o referir explicitamente, não fui especialmente abonatória nas palavras. Pois bem, uns dias depois recebi um mail dele que me deixou sem palavras. Dizia-me ele que já muita gente o tinha tratado mal, que se tinha habituado a tudo, mas que, de tudo a que já se tinha visto sujeito, nunca se tinha sentido tão magoado quanto com as minhas palavras naquele dia. Era um mail longo e muito sentido. Nesse dia senti-me muito mal. Fui ao dito texto e alterei algumas palavras. O texto ficou lá, o sentido ficou íntegro, mas limei arestas, eliminei as expressões mais cortantes. E escrevi-lhe a explicar a razão da minha desconfiança em relação a ele, a razão do desconforto que me tinha levado a escrever aquilo, razões que, a serem verdadeiras, seriam motivo mais do que suficientes para eu pensar aquilo que tinha escrito, mas, de qualquer modo, a pedir desculpa se estava a ser injusta, acrescentando que apenas ele saberia se eu estava ou não a ser injusta.
Mas aquele mail de uma pessoa que se reconheceu nas minhas palavras e se sentiu magoada no mais profundo da sua alma, o tom amargurado das suas palavras, ficou e ficará para sempre a corroer a minha consciência: estaria eu a ser injusta? estarei ainda, ao não escrever uma coisa de sentido contrário ao que escrevi naquele dia? Não sei.
Outra vez contei aqui um conjunto de peripécias sobre uma pessoa com quem trabalhei, que tive a oportunidade e o privilégio de conhecer de perto, de quem fui muito amiga. Claro que tentei não ser explícita. Pois bem, no dia seguinte tinha um mail de uma Leitora a perguntar-me se não era fulano de tal, que o tinha conhecido muito bem e que tudo o que eu tinha dito batia certo. Confirmei, claro. Mas fiquei a pensar que tenho mesmo que ter cuidado.
Isto já para não falar da minha filha que volta e meia me liga a dizer 'ó mãe, então ontem estiveste a falar de fulana de tal...?' e quando eu pergunto se dava para se perceber, ela responde, irónica: 'nããããoooo...' como quem diz que estava claro como água.
Por isso, a partir de agora, vou tentar falar de um caso verídico mas cuja identidade não quero divulgar - até porque não é certamente caso único. Figura aqui a título de exemplo. Entendam como uma abstração, uma personagem ficcionada.
*
Blue Moon (interpretada por Ella Fitzgerald)
Vem isto a propósito do filme que vi esta noite. Blue Jasmine. Quem viu o filme perceberá a razão da escolha da música Blue Moon, que agora talvez estejam a ouvir. Um belo filme, uma extraordinária interpretação de uma actriz que considero das melhores, das mais versáteis da actualidade, Cate Blanchett. Podia também referir a roupa dela, tão elegante, tão Chanel, mas isso seria fútil face à textura do filme cujas várias camadas o tornam tão interessante. Recomendo-o: é mais um belo filme de Woody Allen - o humor e a ironia no meio da tragédia pessoal, as situações desconcertantes mas tão realistas, a fragilidade e as contradições do ser humano.
A propósito de Jasmine - a mulher que constrói a sua vida em cima de expectativas, de ilusões, que constrói uma personagem para si própria, mas tudo tão frágil, tudo tão inconsistente - me lembrei de uma mulher com quem convivi durante muitos anos, talvez uns uns vinte anos.
Gostaria de vos contar a vida desta mulher, tão cheia de peripécias, de dramas, de rábulas, de loucuras, de fantasias. É uma longa história que eu facilmente repartiria em fascículos, cada um mais inverosímil que o anterior. Mas não posso contar como gostaria pois alguém poderia reconhecê-la ao ler estas minhas palavras e longe de mim arranjar-lhe problemas. A vida é complexa demais para que alguém se arrogue o direito de julgar os outros só a partir de um punhado de palavras. Que ninguém use as minhas palavras como pedras.
Dir-vos-ei apenas que, quando a conheci, era uma jovem desinibida, muito vistosa. Vestia-se de uma forma provocante, vestidos muito justos, muito decotados, muito curtos.
Dava nas vistas, mas mesmo muito. Era viciada em toilettes e, embora estivesse com ela quase todos os dias, tenho a ideia de que não a vi repetir uma.
Acho que o ordenado deveria ser gasto integralmente em roupa, sapatos, carteiras, colares, pulseiras.
A cor do cabelo variava entre o louro, o ruivo, o castanho, o negro. Usou-o também de vários tamanhos e chegou a pôr extensões para ficar com ele bastante comprido.
Dava nas vistas, mas mesmo muito. Era viciada em toilettes e, embora estivesse com ela quase todos os dias, tenho a ideia de que não a vi repetir uma.
Acho que o ordenado deveria ser gasto integralmente em roupa, sapatos, carteiras, colares, pulseiras.
A cor do cabelo variava entre o louro, o ruivo, o castanho, o negro. Usou-o também de vários tamanhos e chegou a pôr extensões para ficar com ele bastante comprido.
Nos primeiros tempos, vendo-a assim, admitia que fosse uma jovem caçadora. Os homens rodeavam-na cobiçosos e ela não se fazia rogada.
Por isso, um dia, numa festa, o meu queixo caíu quando a vi com marido e filha. Mais surpreendida fiquei quando conheci o marido. Uns anos mais velho que ela, ar de homem bem instalado na vida, por pouco quase passava por pai dela. Mas ela andava de roda dela toda dengosa, como se estivesse apaixonada pelo marido. E tinham um grande carrão. Soube depois a profissão dele, que ganhava muito dinheiro. E via-se.
Aos poucos fui conhecendo melhor: ela queixava-se amargamente dos ciúmes dele, que lhe telefonava amiúde, sempre a controlá-la, sempre a fazer cenas de ciúmes. Contava-me isto e eu ouvia-a perplexa porque, se eu fosse marido dela, também ficaria apreensivo. A forma, toda ela, da cabeça aos pés, como se arranjava, era do mais provocante que se pode imaginar. E depois, aos poucos, fui sabendo dos numerosos casos que ela tinha. Uma coisa inenarrável. Conheci alguns homens que estiveram na iminência de se separar das mulheres na esperança que ela aceitasse viver com eles. Ela alimentava a esperança, deixava-os de cabeça perdida, mas mesmo de cabeça virada do avesso, e depois acabava por ir adiando, adiando, até eles desesperarem. Por vezes era por eles, doidos da vida, ressentidos, magoados, que se sabiam as histórias. De vez em quando, via-a de ponto em fino, muito mais do que o habitual, sapatos de agulha, altíssimos, mais ainda do que o habitual, toda ela perfumadíssima, maquilhada como se fosse atravessar a red carpet, um aparato. Nesses dias, dizia que ia fazer um exame médico, que tinha uma consulta, coisa assim. E eu via-a a entrar para um carrão aparatoso que não era um dos do marido: havia programa especial.
Ao longo de todos estes anos, ela conversava comigo, omitindo em absoluto esse seu lado, fazendo de conta que era uma virtuosa mulher de família, vítima da incompreensão do marido. Não falava como se mentisse. Falava como se aquela outra que tinha casos com dúzias de homens, mas apenas os de condição social elevada, fosse outra, não ela. Contava-me angustiada que achava que o marido a traía e chorava, furiosa com o marido, como se não o perdoasse se as suas dúvidas viessem algum dia a concretizar-se. Eu ouvia todas estas confidências perplexa.
E ia de férias com o marido para os melhores locais, o marido tinha muito dinheiro, e parecia um casal feliz, não fora ela queixar-se das desconfianças em relação ao marido e não foram os ciúmes, que ela dizia doentios, do marido.
Entretanto, nas muitas incursões da sua vida dupla que a levaram a ir até para Espanha para sofisticados locais de férias com um dos casos que teve (dizendo ao marido que ia em trabalho), fazia por vezes acompanhar-se por uma outra (outra que tal mas de cabecinha mais fraca) que tinha um caso com um amigo do outro. Dois casais. Soube-se depois que estes dois casais saíam amiúde, faziam programas em conjunto.
Mas um dia, por uma zanga entre elas por causa de um dos homens, a outra denunciou-a ao marido.
Lembro-me bem: nesses dias ela chorava, injustiçada, que a outra que ela tinha por tão grande amiga e a quem tanto tinha ajudado, por inveja, má fé, tinha inventado intrigas horríveis e que estava a pôr em causa o casamento. Quis fazer queixa da amiga, que não admitia injúrias, calúnias, que a outra estava a atentar contra o seu bom nome, e chorava, sentida, preocupada com o que se adivinhava que iria ser o desfecho daquela história
Durante os meses em que durou a separação até ao divórcio foi o bom e o bonito. Dizia que estava com uma depressão, supostamente terá mesmo cometido actos desesperados, dizia que a outra tinha destruído a vida dela, chorava, chorava, furiosa. Sabendo o que sabia, parecia-me que a preocupação maior deveria ser a de ir perder a boa vida que tinha, dado os elevados rendimentos do marido, mas, a verdade é que ela parecia sincera quando chorava, como se amasse mesmo o marido.
Por vezes aparecia sem se maquilhar, olhos inchados, abalada, infeliz, numa prostração que dava pena, parecia outra.
Divorciaram-se.
Por vezes aparecia sem se maquilhar, olhos inchados, abalada, infeliz, numa prostração que dava pena, parecia outra.
Divorciaram-se.
A partir daí os casos multiplicaram-se, como sempre tudo homens com dinheiro. Por mais do que uma vez me pareceu que aceitava de bom grado vultuosos presentes e soube, a posteriori, que aceitava que lhe emprestassem consideráveis quantias de dinheiro, supostamente para fazer face a despesas com a filha. Mas eu via-a, então como sempre, vestida de ponto em fino, carteiras e sapatos de marca, perfumes caros, e sabia-a frequentadora de grandes restaurantes, a ir a espectáculos, a ir passar fins de semana aqui e ali.
A filha fez-se adolescente e ela contava-me as crises com a filha, as pegas, as discussões. Toda ela uma mãe atenciosa, preocupada, sempre furiosa com o ex-marido porque não dava o apoio devido à filha. Falava-me também das preocupações com os pais, a envelhecerem, os problemas da idade que trazem surdez, alguma confusão, o medo que tinha por eles, que o pai ainda conduzisse, a mãe que quase não saía de casa. Não tenho dúvida de que estava a ser sincera. Nas nossas múltiplas e longas conversas nem ao de leve, alguma vez, ela foi outra que não uma mulher a quem o marido abandonou porque andava metido com outras, desgraçando a vida tão boa que tinham, uma mulher agora sozinha com uma filha adolescente e pais velhos.
Entretanto, sabia-se dos telefonemas ameaçadores que recebia das mulheres dos homens com quem andava, telefonemas de bancos por causa de empréstimos que contraía e se atrasava a pagar (como já não tinha o nível de vida assegurado pelo marido, começou a recorrer a empréstimos). Mas isso eu sabia por quem acompanhava esse seu lado ou por telefonemas que se ouviam. A mim nunca tocou nisso, nem sequer, alguma vez, mostrou medos por algo que se passasse nesse seu outro lado. E eu sempre respeitei essa sua postura, sempre a ouvi como se acreditasse naquela fantasia toda.
Acontece que, a certa altura, começou a dizer que tinha um grande amigo (por acaso, o que a ia buscar num bruto carrão) que se ia candidatar a uma junta de freguesia e que ela, se calhar, se ia meter na política, que ele a tinha convidado para a lista dele.
Fiquei, eu e toda a gente que a conhecia, de boca aberta.
No meio da sua vida tão cheia de cenas nunca, nunca, nunca se lhe tinham visto quaisquer interesses pela política. Mas a ideia parecia mesmo ir concretizar-se. Pediu para negociar a saída da empresa onde trabalhava, recebeu uma indemnização e despediu-se.
Fiquei, eu e toda a gente que a conhecia, de boca aberta.
No meio da sua vida tão cheia de cenas nunca, nunca, nunca se lhe tinham visto quaisquer interesses pela política. Mas a ideia parecia mesmo ir concretizar-se. Pediu para negociar a saída da empresa onde trabalhava, recebeu uma indemnização e despediu-se.
Eis senão quando confidenciou a alguém que estava furiosa com esse amigo porque afinal o lugar que ele tinha para lhe oferecer na lista não era elegível. Ainda mais admirados ficámos. Mas, com a vida que levava, estava a pensar mesmo ir para uma Junta de Freguesia....?
Mas a fúria não durou nem uma semana. Toda orgulhosa, contava que tinha sido convidada pela principal lista adversária mas agora já para a Câmara. Arregalámos os olhos. Dizia que contava ser eleita e que o chefe de cartaz, pessoa muito conhecida (podem crer), lhe tinha garantido um lugar, mais certo ia ser vereadora.
A loucura.
Em menos de uma semana tinha passado da pretensão de ingressar uma lista para uma Junta de Freguesia para um lugar elegível na lista oposta e para uma grande Câmara Municipal.
Em menos de uma semana tinha passado da pretensão de ingressar uma lista para uma Junta de Freguesia para um lugar elegível na lista oposta e para uma grande Câmara Municipal.
Pensámos todos: furiosa com o amigo, vingou-se e já anda metida com o rival político do outro.
Se andou ou não, o certo é que na noite das eleições todos a vimos na televisão a cantar e aos saltos no palco, na sequência da vitória da sua lista. Por um triz não ficou vereadora mas o novo amigo arranjou-lhe um lugar fantástico que não lembraria ao diabo.
Por essa altura perdi-lhe o rasto. Aquela tinha-me parecido demais. Uma coisa era andar de cama em cama com tudo o que era homem com dinheiro (acho que sempre alimentando a esperança que algum deles fizesse dela a sua mulher, pois não conheci até hoje mulher mais deslumbrada pela vida fácil. E, no fundo, não sei se não andava sempre à espera de descobrir um grande amor - mas fazendo sempre tudo errado, sempre más escolhas, escolhas impossíveis, sempre metida em sarilhos), mas outra, bem diferente, era levar essa insanidade para a política, para cargos onde é suposto estar-se para servir os outros.
Passaram, pelos vistos, já quatro anos.
Passaram, pelos vistos, já quatro anos.
Ontem estava eu a telefonar, de pé, à janela. O piso onde estou é alto, os vidros são duplos: não se ouve nada. Mas reparei que, lá em baixo, uns carros andavam às voltas com bandeiras, que no passeio ia um cortejo distribuindo panfletos. No meio do cortejo ia ela, toda sorridente e produzida como sempre.
Não me admirei mas voltei a sentir uma incómoda estranheza, como que uma náusea.
A política hoje, em Portugal, é a ausência de política, é uma mescla de interesses das mais variadas espécies.
Claro que há certamente ainda pequenos nichos de nobreza de intenções e de carácter. Mas devem ser raros.
Não me admirei mas voltei a sentir uma incómoda estranheza, como que uma náusea.
A política hoje, em Portugal, é a ausência de política, é uma mescla de interesses das mais variadas espécies.
Claro que há certamente ainda pequenos nichos de nobreza de intenções e de carácter. Mas devem ser raros.
Seja como for, vamos votar - na melhor solução possível, mesmo que vamos como eu: um pouco contrariada por não ver extraordinária qualidade em todos os que fazem parte das listas em que votarei. Mas, enfim, do mal o menos.
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Trailer de Blue Jasmine, o último filme de Woody Allen com a luminosa Cate Blanchett
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As fotografias são todas de Cate Blanchett no mais recente filme de Woody Allen, Blue Jasmine.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belíssimo fim de semana!
10 comentários:
deste texto, fiquei confuso com duas coisas.Como é que gajos Burros ficam ricos e se ela sabe o que é sida e eles também (queria evitar referir-me novamente a eles, é burrice a mais)
e ela ter ficado de rastos, com a separação foi genuína, geralmente quem leva uma vida assim precisa de um porto, farol fixo de abrigo.
E a regra que vejo é que os ricos nas relações são tónios (por amor),e se não são tónios , são casamentos de interesse.
e embora a raça barrosã - http://tinyurl.com/p62h4cm, seja de montalegre, povoa mais a capital-))
o fim da relação, baixo-lhe a cotação,é que dá pica enquanto se pensa que o outro é de montalegre, mas quando o outro até dá espaço para ela estar mais à vontade e eles percebem, perde o interesse (parto do princípio que não são swinger)
para concluir , para mim existe dois tipos de prostituição, a oficial (principal fonte de rendimento e assumida)é a ponta do iceberg, e a civil(são mas não assumem, e tentam levar uma vida dita normal) (o iceberg quase na totalidade), embora não seja a principal fonte de rendimento é a que dá mais dinheiro, e é mato.Por isso, um filme ou livro que aborde esta banalidade não tem muito interesse.É um plágio recorrente
Depois deste texto e dos seus votos. Muito obrigado
em qualquer terreola existe uma mais figuras destas, e quem nunca conheceu uma, que atire a 1.ª pedra
aqui não precisava de ter cuidado para identificar a pessoa-são tantas, era muita presunção (da pessoa) pensar que estava a falar dela-))
um tipo está sempre a aprender, fiquei a saber que um político ficou sensibilizado e magoado com o que escreveu.De certeza que é político?
Olá UJM,
Obrigada por este texto maravilhoso!
É impressionante como há pessoas que procuram a felicidade desesperadamente e quando a encontram deixam-na fugir porque não a sabem reconhecer. Vidas muito complexas!
Um beijinho e bom domingo.
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