domingo, setembro 30, 2012

No dia 29 de Setembro de 2012, o dia em que o guru do Governo de Passos Coelho, o avençado António Borges, disse que achava a famigerada medida da TSU 'extraordinariamente inteligente' e chamou 'completamente ignorantes' a todos os empresários portugueses, e a poucos dias de se conhecer o novo balde de austeridade que aí vem com o Orçamento para 2013, Portugal saíu à rua e compareceu na Concentração no Terreiro de Paço. São nossos todos os caminhos. (Texto acrescido com a minha opinião sobre as diferenças entre a manifestação de 15 de Setembro e esta)


O Povo é quem mais ordena - cantemos também


[Grândola Vila Morena, cantada por manifestantes neste quente mês de Setembro]


Este ano está a ser, para mim, o ano de todas as iniciações. A primeira anestesia, a primeira cirurgia, etc, etc, a primeira manifestação, e, hoje, a primeira manifestação da CGTP. 

Muitas vezes, ao longo da minha vida, fui muito contrária às posições da CGTP. Parece-me, quase sempre, um sindicalismo retrógrado, totalmente alinhado com o PCP. Mas, tal como no dia 15 de Setembro não fui para gritar contra a troika (porque, de momento, ainda não podemos viver sem apoio externo, o que temos é que fazer, e já!, é negociar, bater o pé) mas sim para dizer não a estas políticas e a estes políticos, fui especialmente para mostrar que estou contra os incompetentes e ignorantes que nos governam, também neste 29 de Setembro fui para a rua porque é na rua, todos juntos, mostrando o vigor e a energia de um povo unido, que podemos conseguir mudar o rumo dos acontecimentos.

Lá fui portanto.

Enquanto nos aproximávamos todas as ruas iam dar ao Terreiro do Paço. Casais com filhos, idosos, grandes grupos oriundos de vários pontos do País, gente com bandeiras, cartazes feitos em casa, muitos jovens.



Uma vez mais o povo saíu à rua


Ao chegar junto ao Cais das Colunas algo me chamou a atenção: algo avançava nas águas. Fiz zoom e captei a imagem.



Cão nadando a grande velocidade no Tejo, com uma gaivota seguindo os seus movimentos


Um grande cão. Maravilhosa imagem: o Tejo azul, o céu azul, o Terreiro do Paço transbordante de gente, e, enquanto isso, aquele cão ali andava a banhos. Que engraçado.

Mas impressionante foi, de novo, o imenso mar de gente. E depois as pessoas, milhares, muitos, muitos milhares de pessoas cantaram o Grândola Vila Morena. É muito emocionante ouvir em uníssono uma canção como esta. Há momentos especiais que todas as pessoas devem poder viver.

Poderia aqui mostrar-vos muitas das fotografias que fiz nas quais se vê a multidão. Mas já sabem que eu prefiro mostrar os pequenos apontamentos, os cartazes interessantes, as pessoas. Penso que, para quem não esteve lá, mostrando estes aspectos particulares, conseguirei transmitir melhor o ambiente.

Uma vez mais digo que, se algum dos retratados não permitir que a sua imagem aqui apareça, bastará que mo diga que logo a retirarei.

O que mais desperta a minha atenção e emoção são as pessoas de idade e as crianças. Estar nestes grandes ajuntamentos, em que é preciso andar bastante, pode não ser fácil para quem tem mais idade e, em especial, para quem venha de longe.



Um futuro difícil mas, enquanto existirem flores, haverá esperança


O calor apertava e nem a proximidade da água refrescava, em particular aqueles que percorreram longos caminhos para cá chegar.



Desencanto, preocupação mas, apesar das dificuldades, sentido de cidadania


Um dos aspectos mais gritantes quer nesta manifestação quer na de 15 de Setembro é o desprezo que todos os muitos milhares de portugueses mostram por Passos Coelho e pelos ministros do seu Governo.

É impossível a alguém governar um país que lhe perdeu o respeito, que goza com ele, que o trata por burro, por incompetente, por gatuno. É isto que está a acontecer a Passos Coelho. É humilhante para ele.



Coelho vai p'ra toca


A imaginação e o sentido de humor sai àrua nestes dias. As pessoas dão-se ao trabalho de escrever, desenhar, de montar, de transportar, de exibir os mais diversos gritos de revolta,


Contra o bullying política

E, no dia em que o vendilhão de Portugal, o avençado António Borges, chamou completamente ignorantes a todos os empresários portugueses, dizendo que não passariam no primeiro ano do seu curso (isto depois de na antevéspera Passos Coelho lhes ter chamado cobardolas e queixinhas), cá temos um cartaz em que o dito vendilhão é uma das figuras de proa.



Vieram peritos em habilidades...
(o António Borges, o Gaspar-não-acerta-uma, o etíope do FMI e o Senhor.Professor.Doutor.vai.estudar.ó.Relvas)


Mas o Gaspar aparece em vários cartazes. O maior nabo, o aprendiz não sei de quê, o que espantilha todas as contas públicas, o fulano que até hoje ainda não conseguiu acertar uma e que, mais grave ainda, ainda nunca percebeu nada do que se está a passar, é um dos mais gozados. Foi outro que virou cartoon, anedota.



Não se vê aqui o cartaz inteiro mas eu conto-vos: Estou... a... foder... vos... deva... garinho


Mas há um que é a gargalhada geral. O grande estadista Miguel Relvas, aquele que anda escondido, aquele que é amigo de espiões, que ameaça jornalistas, que quer despachar a RTP para os amigos e que tem uma carreira académica de mão cheia, e que, por mais inacreditável que possa ser, ainda é ministro, virou cartaz cómico.



Miguel Relvas: Doutor Horroris Caca


E depois, claro, sempre, nas mais variadas formas, temos o ex-doce, o maior responsável pelo desgraçado estado da nação, o Passos de Massamá, o marido da D. Laura, o Pedro do facebook.



Um polvo chamado Nini - duração de vida: e meses


E o sentido de humor, sempre o sentido de humor. O Coelho a violentar (digamos assim) um cidadão deu-me vontade de rir apenas pela ideia e pelo grafismo. Mas se nos lembrarmos que é isso que ele anda a fazer a milhões de portugueses, a coisa perde a graça.



Já chega! PORRA - diz o Zé povinho ao Primeiro-Ministro


À hora a que vos escrevo estou a ver na televisão a violência da polícia carregando sobre os manifestantes em Madrid. Em Portugal não há nada disso. As pessoas manifestam-se a sorrir, a cantar e os polícias manifestam-se juntamente com o resto da população.

Ouviu-se um grande aplauso quando chegou a coluna da PSP e GNR. As bandeiras ondulavam, hasteando os valores da fraternidade.



A PSP e a GNR ao lado do povo, contra este Governo e contra as suas políticas


E depois há o sentimento geral de que os políticos que agora estão no poder são mercenários, gatunos. São palavras que se multiplicavam pelos cartazes. Nas mãos de um belo sorriso juvenil, estes cartazes têm ainda mais impacto.



Mercenários (Cavaco à frente do grupo composto pelo Governo)
e Falas de barriga cheia - devolve as regalias e vai mas é trabalhar malandro!


E, claro, há a revolta, os lamentos, o sentimento de injustiça. 


Os reformados não são lixo! Não ao confisco dos subsídios.
É imoral!
É ilegal!



Muito engraçada também a declaração desta jovem ex-simpatizante do PSD. O cabelo ocultava a parte de cima, mas o que se via era elucidativo.



Sou leal à Social Democracia mas não ao 1º Ministro
Pedro Passos Coelho traíu e trais os princípios e valores do PSD


E depois houve de novo a força imensa da juventude, da beleza, da irreverência. Quando os jovens acorrem em força, da forma como eu tenho visto, temos que ter esperança. Talvez esta seja a hora em que os jovens vão perceber que têm que se interessar pela política, que têm que lutar pelo seu futuro.



Sorrisos, flores, cor, alegria, graça  -  e a vida pela frente


E os chapéus? Fantásticos. Adorei este aqui abaixo. Adorei.



Um guerreiro no Terreiro do Paço


E, no fim, já quase no rescaldo, o calor...? E a sede...? E o convívio...? E a joie de vivre...?



A beleza da juventude... e que haja cervejas para todos


Claro que esta manifestação foi diferente da de 15 de Setembro. A de 15 de Setembro em Lisboa congregou essencialmente pessoas de um meio mais urbano, e era notória a predominância das classes média e média alta. A deste sábado era uma manifestação convocado pelos sindicatos de todo o país e, portanto, via-se gente vinda da província, de meios rurais, talvez ainda do que sobra de meios fabris. E achei tocante ver toda aquela gente, muitos com aspecto muito humilde, outros com ar de quem vinha a Lisboa, todos mobilizados e festivos. Havia bandeiras da CGTP, havia palavras de ordem, havia organização e isso é um aspecto relevante e que merece ser saudado. É importante que os trabalhadores estejam organizados e que tudo se processe de forma tão ordeira. Mas, depois, havia também todas as outras pessoas de Lisboa e arredores que se lhes juntaram, gente, tal como eu, que não se identifica com muita da praxis sindicalista nem com os mandamentos dos partidos ditos comunistas e que estava ali apenas para se insurgir contra a destruição que está a ser levada a cabo no país. E via-se de novo muita gente 'muito bem' (desculpem-me a expressão), ou seja, via-se, de novo, gente muito heterogénea. E esta mescla é dos aspectos mais marcantes numa concentração desta dimensão.

Pessoalmente, reconheci-me mais na de 15 de Setembro, muito espontânea, muito mais alegre e emotiva. E de 29 de Setembro teve, em meu entender - e estou à vontade para falar porque sou estreante nestas lides - algumas características que tendem mais a desmobilizar do que a congregar: os discursos intercalados por palavras de ordem, o discurso longuíssimo de Arménio Carlos, já não são forma de cativar e motivar as pessoas.

Já na de 15 de Setembro me pareceu que faltou qualquer coisa que 'prendesse' um pouco as pessoas quando chegaram à Praça de Espanha. Chegaram ali e acabou.

Ou seja, parece-me que seria uma forma bastante interessante de prender e mobilizar as pessoas se o palco e as instalações sonoras fossem aproveitadas para que se ouvisse poesia declamada, canções projectadas nos ares, e, talvez, pelo meio, pequenas intervenções de opinião e mobilização.

O que aconteceu com o discurso de Arménio Carlos e o que aconteceu também na ausência de qualquer coisa na Praça de Espanha foi o mesmo: um imenso mar de gente com disponibilidade para se manter por mais tempo unido e atento e empolgado e que acaba por dispersar sem que tenha havido, digamos assim, um momento de clímax.

Seja como for, foi bom, e só o facto de vermos a população a sair à rua, a percorrer as ruas com vontade de dizer BASTA e de o dizer de peito feito e cara destapada, já é uma vitória.

E, portanto, depois foi tempo de regresso. As camionetas que vieram de longe, abrigavam geleiras, cestas, cabazes e, na hora de voltar à terra, fizeram-se pic-nics mesmo ali e as caixas com entrecosto frito, com pastéis de bacalhau, passavam de mão em mão, e toda a gente comia e bebia, feliz, animada.



Estas são as formigas trabalhadoras que ao longo dos tempos alimentam as inúteis cigarras como António Borges, Passos Coelho, Miguel Macedo, Vítor Gaspar, Miguel Relvas, Paulo Portas e outros 


Este é o povo que começa a levantar-se e a cantar Acordai!, este é o povo que percorre os difíceis caminhos da democracia e da liberdade. Este é o povo que recomeça a sentir que são nossos todos os caminhos.

**

Uma vez mais, saíu-me longo este post. Cheguei a casa muito tarde. Depois estive a passar as fotos para o computador, a escolher algumas de entre as muitas que fiz. E só agora, e já passa um bocado das 2 da manhã, estou a acabar isto. Por isso, peço desculpa aos meus queridos Leitores que comentaram o post anterior (quer do Um Jeito Manso quer do Ginjal e Lisboa) por hoje não responder mas estou mesmo cansada. Amanhã também vou ter um dia cheiinho que nem um ovo mas arranjarei tempo para responder, está bem?

Também não consigo manter os olhos abertos por mais tempo pelo que não vou nem espreitar o que acabei de escrever. Por isso, se descobrirem letras trocadas, vírgulas a mais, a menos ou fora do sítio ou gralhas de qualquer tipo, relevem, sim?

**

Desejo-vos um belo domingo. Despedimo-nos de Setembro, o mês da doçura, que foi tão quente. Esperemos que Outubro não seja ainda mais quente mas, se for, que o seja por uma boa causa. 

sábado, setembro 29, 2012

Grupo Corpo, Lady Chatterly, Maria Teresa Horta, António Ramos Rosa, Daniel Faria, Maria do Rosário Pedreira - 'les beaux esprits se rencontrent'. E, depois da alma lavada, as opiniões críticas de Paul Krugman e de António Lobo Xavier em relação às suicidárias políticas de austeridade (irracionais e aterradoramente impreparados, dizem eles dos nossos actuais governantes). Hoje é dia grande: Acordai!


A árvore foi a forma de te ver
e desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
entre os ramos
fizeste-me passagem
da folha ao voo do pássaro
do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
a pequenez.






                                     Primeiro roço-te                                                             Morrer de amor
                                     as asas                                                                             ao pé da tua boca
                                     suspensas dos teus ombros                        
                                                                                                                              Desfalecer
                                     imaginando apenas                                                          à pele
                                                                                                                             do sorriso
                                     aquilo que depois
                                     mergulho                                                                         Sufocar
                                                                                                                              de prazer
                                     e faço                                                                              com o teu corpo

                                                                                                                              Trocar tudo por ti
                                                                                                                               se for preciso






Que palavra sobe desta brancura cega, deste olhar branco,
que palavra respira em teu olhar perdido sobre este centro deserto?
Que palavra aquece e esfria, da sombra à
luz, do teu corpo ao sol,
da tua sombra ao sol,
que palavra caminha, vive ou morre
no esplendor calcinado?





Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome.


**

O primeiro poema é de Daniel Faria, o segundo e o terceiro são de Maria Teresa Horta (um pouco desformatados, como viram - mas o adiantado da hora, já passa das 2 da manhã, não me permite discernimento para os arrumar melhor), o quarto é de António Ramos Rosa e o último é de Maria do Rosário Pedreira.

O filme foi realizado por Pascale Ferran e é baseado na obra de D. H. Lawrence.

Este bailado do Grupo Corpo, grupo que, como sabem, pelo virtuosismo, sensualidade, graça, energia, tem, desde há muito, um lugar cativo no Um Jeito Manso, é coreografado por Rodrigo Pederneiras.

E, se ainda vos apetecer, gostaria de vos convidar a espreitar o meu Ginjal onde hoje me despeço da música de Boccherini e onde as minhas palavras se enleiam em torno do corpo do meu amor, levada pela onda de Maria Teresa Horta)

**



(Obrigada, Ana, por me ter enviado este filme!)


*

E, agora, se me permitem, transcrevo do Jornal de Negócios:

Na habitual coluna de opinião no "New York Times", intitulada esta semana de "A loucura da austeridade na Europa", Paul Krugman defende que as medidas de austeridade levadas a cabo por países como a Grécia, Espanha ou Portugal "foram demasiado longe". 

"(...)  a verdade é que estes cidadãos estão certos. Mais austeridade não serve nenhum propósito. Os verdadeiros intervenientes irracionais são os políticos, alegadamente sérios, que exigem cada vez mais sacrifícios", escreve o economista no jornal norte-americano. 

"O que a opinião pública destes países está, de facto, a dizer é que chegaram ao limite: com a taxa de desemprego em níveis idênticos ao da Grande Depressão, a austeridade já foi longe demais." 

<>

“Aparentemente”, diz António Lobo Xavier (CDS) , “o primeiro-ministro ficou surpreendido com a reacção dos portugueses” à proposta de aumento da TSU suportada pelos trabalhadores e diminuição da que é paga pelos empregadores. Daí que, diz, “o mais preocupante nesta crise é que” o primeiro-ministro parece que “não conhece o país, não conhece o que é que pensam as pessoas em geral”. 

As manifestações de 15 de Setembro não foram, na visão de Lobo Xavier, apenas posições de “desagrado” para com a austeridade mas foram também “contra um discurso que não bate certo com nada”.

O facto de, dias antes do anúncio das alterações na TSU, o governo ter dito que estava tudo bem “mostra uma impreparação que aterroriza”, afirma ainda António Lobo Xavier. "Como é possível dizer que estava tudo bem, há um mês, e depois virem à televisão anunciar medidas destas", questionou.




*
E, por hoje, é isto. Desejo-vos um belo sábado. O destino somos nós que o fazemos.

sexta-feira, setembro 28, 2012

Sobre o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre o Orçamento para 2013, sobre a ainda maior austeridade que aí vem, sobre os modelos usados pelo Governo, sobre os modelos em geral - os limites éticos, a vida, o futuro. E a estupidez. E a dignidade de que não podemos abdicar. E os limites que teremos, nós próprios, cidadãos portugueses, que impor.




Deixá-los sofrer? Deixá-los morrer mais depressa?



Uns senhores de um tal Conselho com bom nome, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida emitiram um parecer, que li e que contém matéria com algum interesse, do qual se infere que existe fundamento ético para que o Serviço Nacional de Saúde promova medidas para conter custos com medicamentos, tentando assegurar uma "justa e equilibrada distribuição dos recursos". À hora de almoço, no carro, ouvi que perante a possibilidade de uma pessoa ter apenas mais alguns meses de vida, à luz deste parecer, seria legítimo ponderar-se sobre a justificação económica de se gastarem uns 50.000 ou mais em tratamentos em doentes com escassos meses de vida. Aparecem referidos como doentes que poderiam ser abrangidos pela racionalização de tratamentos os doentes com cancro, com sida ou com artrite reumatóide. Contudo, o verbo usado e que choca não é racionalizar, é racionar, racionar o tratamento quando o rácio custo/benefício assim o indique.

Felizmente ainda há quem os tenha no sítio – e refiro-me também aos neurónios – e já tenha vindo a terreno a dizer que não contem com os médicos para este racionamento que, na prática, é o racionamento do tempo ou da qualidade de vida das pessoas (pessoas essas nas quais poderemos, nós, estar incluídos). José Manuel Silva, bastonário da Ordem dos Médicos, tem sido um exemplo de cidadania e rigor ético e hoje, uma vez mais, o foi. Maria de Belém foi outra voz que, com a sensibilidade e o bom senso que se lhe reconhece, se levantou.

Não fiquemos indiferentes perante isto: já aqui chegámos, já estamos a falar quase como se fosse uma coisa normal, da análise custo/benefício da vida humana. Devemos olhar para isto com pasmo, com vergonha.



A tristeza de termos chegado a este ponto
 e de vermos que o caminho que temos pela frente é igualmente triste


Que uma discussão ética, moral, racional, deve ser levada a cabo sobre a forma como se gerem os recursos públicos, estou de acordo. É uma discussão que deveria envolver várias disciplinas (medicina, economia, psicologia, filosofia, sociologia, etc) e que deveria ser feita numa óptica integrada, que deveria abranger custos dos sistemas públicos e custos dos sistemas privados, pois o que interessa analisar é a forma como se alocam os recursos do país para a saúde (e porque quem paga parte dos sistemas privados é também o Estado, através, por exemplo, da ADSE). Mas este deveria ser um estudo conduzido com pinças, com elevado sentido de humanismo e de respeito e compreensão pela condição humana. Agora, nos tempos que correm, com o poder entregue a um grupo de ignorantes e incompetentes, conclusões como as do acima referido parecer são um perigo. Um perigo muito grande.

<>



É aqui que queremos chegar, senhor Passos Coelho? 


Nem de propósito hoje Pedro Santos Guerreiro escrevia no Jornal de Negócios um interessante artigo com o título 'O Orçamento que não queremos querer'. Transcrevo esse lúcido artigo, com o qual concordo, quase na totalidade:

Saberemos todos o que pedimos, quando pedimos que cortem a despesa?

O pedido é justo. A troika diz que é obrigatório. E nós acrescentamos que o Governo falhou nisso. Quando acordou do sonho das gorduras, encontrou músculos e ossos. Quais deles vai rasgar e amputar agora?

Os impostos estão a matar a economia. Nem é necessário explicar porquê. Basta ver que um terço da austeridade prevista para o próximo ano decorre da recessão que a própria austeridade provoca ou agrava. E isto é admitindo que o PIB só cai 1% em 2013, o que já parece optimista. Não é preciso esperar por relatório nenhum para adivinhar que a actividade económica travou em Setembro, imediatamente após o anúncio de novas medidas de austeridade. 

A redução do défice prevista para os próximos dois anos é tão dramática que exige cortes como nunca se fez. Cortes que se somarão à redução de pensões e de salários da função pública. Como vai o Governo cortar quatro mil milhões de euros nos próximos dois anos? Como vai o Governo fazer o que não fez, baixar de modo permanente o custo do Estado? Só assim será possível baixar impostos. E sem baixar impostos a economia não cresce, consome-se - some-se.

Baixar a despesa do Estado tem de ser mais do que cortar salários à Função Pública e pensões. Se a troika nos baixasse os juros, como aqui se tem defendido, seria mais fácil. Mas mesmo assim, é preciso reduzir a despesa primária. Por muito moralizador e importante que seja eliminar meia dúzia de fundações do Estado, isso pesa pouco na conta final. 

"Cortar despesa" é desmamar muitas clientelas políticas. Reformar a administração local a sério é muito mais do que fundir freguesias, é desempregar muitos políticos. Baixar os custos do Estado é fechar institutos que não servem para nada senão para pagar os salários de quem lá anda. 

Reestruturar empresas públicas a sério é muito mais que antecipar as reformas a duas mil pessoas e aumentar brutalmente as tarifas. Mesmo assim, esta é a parte fácil de exigir.

A parte difícil é outra. É perceber que "cortar despesa" além das reduções temporárias de salários significa fazer reduções brutais como provavelmente só o Ministério da Saúde fez este ano. E com esse custo social. Nem despedir todos os políticos parasitas bastaria. "Cortar despesa" é reduzir serviços nos hospitais, nas escolas, nos tribunais, sítios onde já há falta de meios. "Cortar despesa" é tirar dinheiro a muita gente, médicos, professores, militares ou polícias. "Cortar despesa" é fechar partes de empresas públicas e organismos do Estado. "Cortar despesa" é abrir um programa de rescisões entre os funcionários públicos, o que nunca foi feito - e que numa economia em recessão é dramático.

É isso que o próximo Orçamento do Estado vai trazer. Mais impostos. Cortes na despesa. E isso é, em qualquer caso, fazer das tripas de outros o coração da reestruturação do Estado. É obrigatório mudar a equação do Estado, tornando-o suportável e deixando os agentes económicos respirar dos impostos que agora os asfixiam. O que poucos assumem é o odioso do que quer dizer "cortar despesa". É amputar corpos. É isso que andamos a querer. É nisso que não queremos crer.


É aqui que queremos chegar, Ministro Paulo Portas?

<>

O Governo, com o Orçamento de 2013, prepara-se para ir ao osso dos portugueses, para amputar corpos, para lançar a miséria indiscriminadamente, para lançar a indignidade sobre a nossa vida, para nos roubar o futuro de forma irreversível. 

Não há alternativas, dizem. Ora não há nada de mais errado. Há sempre alternativas.



É este o modelo que queremos, Presidente Cavaco Silva?


Sei o que são fazer modelos. Posso até dizer que comecei a minha vida profissional a fazê-los e, justamente, a fazer modelos sob orientação do Banco Mundial. A minha formação académica andou à volta de números. Mas, felizmente, porque não sou estúpida, sei que os números são uma abstracção para representar a realidade, sei que os modelos são a forma analítica de representar a realidade, de a encenar, de a manipular. Tenho dito aqui, por vezes, que não fui grande estudante. Mas quando o digo, digo no sentido de nunca ter feito uma directa para estudar para um exame, de não perder muito tempo a 'marrar', de privilegiar o tempo de namoro ao de estudo. Mas o facto de não precisar de estudar, não significa que não tenha sido uma boa aluna. Acabei o meu curso com média de 16 numa escola a sério em que a exigência era grande. Depois da licenciatura fiz pós-graduações e vários outros cursos de formação profissional. Tenho tantos anos de vida profissional que nem me atrevo aqui a dizer. Não estou a falar nisto para me gabar do que quer que seja. Digo-o apenas para vos dizer que sei do que falo quando opino sobre algumas matérias. Não falo de cor, não papagueio, não falo do que não sei.

Quando digo que há alternativas não o digo apenas por convicção pessoal ou referindo-me a aspectos do ponto de vista social, político ou, até, filosófico: digo-o também do ponto de vista da elaboração de modelos, os célebres modelos que neste Governo são a bíblia.

Quando se fazem modelos estabelece-se qual o objectivo a atingir e definem-se as condições, as restrições, definem-se as constantes e as variáveis e quais as ligações entre elas. 

Ora, se um estúpido qualquer se puser a brincar com modelos que mexem com a vida das pessoas e não tiver estabelecido que há limites que não podem ser ultrapassados, que há 'objectos' que não são constantes mas sim variáveis e outros que, pelo contrário, são constantes que não podem ser questionadas, o que vai acontecer é que o resultado é um aborto ou uma arma de destruição em massa.

É o que está a acontecer com este governo. Não percebem nada de nada de coisa nenhuma. E o drama é que a nossa vida, a qualidade da nossa vida, para estas ignorantes criaturas, são meras variáveis em geometria variável. E, em contrapartida, recusam-se a mexer naquilo em que o deveriam fazer. São ignorantes. É que isto de fazer modelos complexos não é para aprendizes, para ignorantes.



É este o modelo para que queremos para Portugal, senhores Deputados?



A dívida para eles é uma constante, a dívida e o serviço da dívida (isto é os encargos a ela inerentes), são uma 'coisa' na qual não se pode mexer. Em contrapartida retirar rendimento das pessoas para pagar essa dívida é uma variável. Ou seja, não equacionam que se pode e deve renegociar a dívida, pagá-la em mais anos, dizer que não se paga como forma de pressão para que se aliviem os juros. Mas parece-lhes normal roubar os rendimentos dos trabalhadores e reformados, parece-lhes normal deixar doentes sem tratamento, crianças sem vacinas (ouvi ontem na televisão que já há muitas pais que não conseguem vacinar as crianças contra a meningite), parece-lhes normal atirar as pessoas para o desemprego e para a miséria.

É que a porcaria dos modelos que andam a fazer padece de um erro fatal.

Imaginem os meus Caros, o seguinte. Imaginem que estão a gerir uma empresa e que querem geri-la o melhor possível. Então, para verem onde mexer, fazem um modelo que represente a empresa. E imaginem que por um azar dos távoras, têm um totó, ignorante e estúpido, a fazer esse modelo. E o que é que ele faz? Faz um modelo que tem por objectivo minimizar os custos da empresa.

Acham razoável? À primeira vista pode parecer mas alguém mais experiente ou com dois dedos de cabeça verá logo que isso é errado pois, de redução em redução, o melhor é fechar a empresa que assim terá custos zero.

O que se deverá fazer é o oposto, ou seja, um modelo que maximize os resultados. Ou seja, um modelo que permita encontrar o justo equilíbrio entre as vendas e os respectivos custos. Geralmente, o melhor para a empresa é atingido pelo aumento de vendas, ou seja, conseguindo o crescimento da empresa, e ajustando os recursos a esse crescimento.

Pois o que está a acontecer em Portugal é que os 'espertos' do Governo (Braga de Macedo, Carlos Moedas, Gaspar, Passos Coelho, etc) acham que o resultado se vai atingir com cortes, cortes, austeridade e mais austeridade quando deveriam estar a fazer tudo ao contrário, olhar para o resultado, apostar no crescimento da economia, ir buscar os fundos não aproveitados do QREN, alocá-los ao crescimento, unirmo-nos aos italianos, aos gregos, aos espanhóis, aos irlandeses, para fazer pressão sobre a Alemanha, para que não imponha o seu jugo absolutista. O objectivo tem que ser o de se fazer de tudo para potenciar o crescimento do País - porque, crescendo a economia, crescem naturalmente os impostos, amortiza-se a dívida, reduz-se o défice. Mas primeiro tem que crescer a economia porque aqui a ordem dos factores não é arbitrária.

O que está a acontecer é que Passos Coelho está a conduzir o país para a catástrofe. E Paulo Portas está a ser conivente. E Cavaco Silva está a assobiar para o lado.


Vamos aceitar estas condições para as crianças de Portugal?
Vamos tolerar esta tristeza nos olhos das nossas crianças?


O País não pode aceitar a sua destruição, não pode. Eu não aceito. Eu não aceito!


**

Bom... isto saíu longo, longo... e pesado. Se alguma coisa posso fazer para aligeirar o ambiente, é convidar-vos a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Ao som de Boccherini, poderão ler as minhas palavras que recordam tempos de amores sem casa em volta de mais um poema de Rui Caeiro.

**

E é isto, meus Caros Leitores. E tenham um belo dia. 
Está uma chuvinha fresca que ajuda a limpar o ar. 
E no sábado vamos todos para a rua?

quinta-feira, setembro 27, 2012

Lídia, a mulher triste, vai encontrar-se com Paulo e o encontro não começa nada bem


Dove sei, dove t'ascondi



[Bononcini (Polifemo), Martina Bovet]

*


Lídia estava muito em baixo. Tinha chorado, os olhos estavam inchados, vermelhos, tinha olheiras. Uma sombra, como sempre.




O que é agora isso?, perguntou Nita quando chegou; e enquanto perguntava, mudava a fralda à idosa, limpava-a, punha-lhe cremes, ajeitava o resguardo, tirava as luvas, uma rapidez de movimentos que só visto, dir-se-ia que toda a vida fizera aquilo. Depois deu-lhe uma papa, limpou-lhe a boca, deu-lhe os medicamentos, ajeitou-a na cama, puxou o cobertor para cima, entalou-o dos lados. No fim fez uma festa na cabeça da senhora. Lídia, como se ganhasse força, levantou-se e deu um beijo na mãe, durma bem, mãe. A mãe perguntou-lhe, sabe a que horas é que a minha filha chega? Lídia fez-lhe uma festa ao de leve na cara e respondeu, está quase a chegar.

Nita olhava para ela, mas então foi-se outra vez abaixo ou quê?

Lídia encolheu os ombros, fechou os olhos. Depois disse, combinei ir amanhã pagar o dinheiro àquele polícia que me ajudou.

Nita ficou à espera, E...? Como Lídia não respondesse, insistiu, Sim, e então, que é que isso tem?

Lídia não queria falar nisso mas como Nita continuasse à espera, de mãos nas ancas, explicou, e toda ela uma hesitação na voz, Eu não quis que ele viesse aqui a casa... combinou irmos a um café...

A outra continuava sem perceber, E então? que é que isso tem?

Há anos que não vou a um café, sentar-me numa esplanada, e ainda por cima à hora de trabalho.

A outra pensou que ela estava com medo de ser apanhada numa fiscalização, Não tem problema! Então, a sua baixa é psiquiátrica, a senhora pode sair, só lhe faz é bem, devia era sair mais.

Lídia viu que ela não tinha percebido, mas nem sei estar num café, não me dá jeito

Ora, D. Lídia, mas o que é isso de dar jeito? Não é para estar sentada a uma mesa...? Que jeito é que é preciso para estar sentada a uma mesa...? e riu-se.

Lídia ganhou coragem, Mas ele é casado.

Nita deu uma gargalhada, Ora essa! E então ser casado é ter peçonha? 

Lídia, envergonhada, já com medo, Se me vêem sentada num café com um homem casado...

A outra ria-se, Oh D. Lídia mas está a pensar ir arrancar-lhe algum pedaço...?

Lídia sorriu. E nem sei o que hei-de vestir... e estou tão magra.

Nita pegou nela pela mão, Bora lá, vamos lá então escolher a toilette e levou-a até ao quarto.

Depois de vasculhar, confessou, rindo, Pois é, D. Lídia, este guarda roupa bem merecia uma boa reforma, que roupas mais tristes, senhora...

Mas lá escolheram. 

Nessa noite Lídia mal dormiu. Levantou-se cedo, tomou banho, vestiu-se logo, aprontou-se, guardou o livro de cheques e a meio da manhã estava pronta. Mal conseguiu comer tal era a ansiedade. Depois uma outra questão começou a atormentá-la: queria lembrar-se da cara de Paulo e não conseguia. Começou, então, a temer chegar lá e não o reconhecer.



A mãe chamava-a, chamava pela mãe, pela prima, pelo marido, estava levada da breca, uma agressividade difícil de aturar, que as janelas estavam escancaradas, que os ladrões entravam, que entrava o frio, que entrava o vento, que entravam os gatos, que os gatos davam conta de tudo, e Lídia, não estão nada, mãe, estão fechadas e a mãe, sua mentirosa, estás a gozar comigo, então eu não vejo tudo aberto, a chuva a entrar, o chão todo molhado, os tapetes encharcados, sua estúpida, sua malvada, queres é que eu morra, não é?

Lídia, enervada, impaciente, Que ideia, mãe, está tudo fechado. Quando se ia chegar à mãe para lhe ajeitar a mantinha sobre as pernas, a mãe quase a agredia, julgas que eu estou velha, que já me podes enganar? dou-te um par de estalos para veres quem manda aqui.

Sentiu o cheiro, aquele horrível cheiro. A mãe estava suja, devia mudar-lhe a fralda. Mas queria era ir-se embora, estava ansiosa, impaciente.

Infeliz, a sentir-se culpada, saíu da sala. Foi ver-se de novo ao espelho. Desengraçada, ultrapassada, mosca morta, solteirona, menina velha, desmereceu-se em pensamento. Mudou de casaco, vestiu um mais claro. Depois saíu de casa, enervada, culpada, culpada por deixar a mãe assim, culpada por se ir encontrar com um homem casado. Viu as horas, a D. Fátima deveria estar quase a chegar, limparia a mãe, da-lhe-ria o almoço.

Chegou ao Cais do Sodré antes da hora e o coração batia, batia, pancadas incertas e audíveis. As pernas tremiam-lhe, a boca seca, as mão molhadas. Podia colapsar a qualquer momento. 




Não sabia o que fazer, se devia entrar, se devia ficar por ali a fazer horas. Era uma estranha naquele ambiente. Havia gente descontraída nas almofadas cá fora, gente junto ao rio, pareciam todos felizes, bem vestidos, descontraídos. Lídia não sabia se haveria de ir para ali, tinha vergonha, tinha medo, não costumava andar em sítios assim, medo que a assaltassem, medo também que algum homem se metesse com ela, medo que Paulo não aparecesse, medo, medo, sempre aquele insidioso medo, sempre, um medo surdo a tolher-lhe a vida..




Mas, mal se aproximou, viu Paulo. Estava perto da entrada, mãos nos bolsos. Era alto, forte, uns cinquenta anos, talvez mais, parecia quase um homem do campo e também ele parecia ali ligeiramente deslocado.

Quando a viu, riu e avançou para ela. Parecia ir aproximar-se para a beijar mas Lídia estendeu-lhe uma mão gelada, húmida. E mal o fez logo se arrependeu, que vergonha, porcaria de mãos, vai ver que estou neste estado, mas ele deu-lhe um vigoroso aperto de mão, Então como está?

Lídia, atrapalhada, estou bem, obrigada. E só pensava em entrar e esconder-se num canto, sentar-se de costas numa mesa escondida.

Paulo, disse, Não quer vir aqui até à beira do rio? e Lídia já numa aflição, a voz a tremer, Não, não quero ser vista consigo aqui a passear.

Paulo parou espantado, Hom'essa, mas então porquê? Eu sou dos bons. Eu prendo os maus. Eu não sou nenhum bandido. Tem vergonha de ser vista comigo porquê?

Lídia sentiu-se corar, a voz sumida, Porque é casado...

Paulo deu um passo atrás, espantado. Casado, eu? Mas onde é que foi arranjar essa ideia? E se fosse? Essa agora é boa...

Lídia assustou-se, pensa, já estou arrependida, bem diziam que devia ser um meliante, é um mentiroso, bem me avisaram contra gente desta, agora pensa que me vai enganar, julga que se pode aproveitar, vou-me mas é já embora. Pago e vou-me embora, nem me sento à mesa. Tem ar de sabido, credo..., nem tinha ideia que fosse assim, julga que me pode enganar, ah que pouca sorte a minha, olha como sorri a ver se me leva na conversa.

**

Caso vos apeteça passear comigo pelo Ginjal, teria todo o gosto em vos ter por lá. Boccherini continua a ser uma presença envolvente e hoje as minhas palavras pintam rios e pontes para me unirem a vocês, meus Caros Leitores, junto a um belo poema de Pedro Tamen.

**
Desejo-vos, meus caros leitores, um belo dia. Está um fresquinho e uma chuvinha de Outono, é bom.

quarta-feira, setembro 26, 2012

Lídia, a mulher triste, tem uma estranha reacção enquanto telefona a Paulo


Uma sonata para Lídia, por favor



Giovanni Bononcini  - Sonata para dois violoncelos


**

O telefone chamou, chamou, e Lídia quase desligava, boca seca, sentindo que mal conseguiria articular palavra, mãos húmidas de nervoso, coração descontrolado, sem conseguir pensar no que diria depois de tanto que tinha tentado ensaiar. Percebia o ridículo da situação, tanta coisa por causa de um simples telefonema, tanta coisa apenas para combinar pagar um dinheiro que devia. 

E então o clique, a chamada que se atende, Estou? E Lídia nada, toda ela um sobressalto, o coração disparado, uma amnésia, um vazio negro, e do outro lado, Está lá? E Lídia em pânico, quase a desligar, e agora o que é digo? E uma voz que já se irrita, Mau! Está lá? E ela amedrontada, Estou…, e era apenas um trémulo fio de voz.

Quem fala?, perguntou Paulo, impaciente, julgando tratar-se de uma brincadeira. Engoliu em seco, limpou a mão na saia, sou eu, a Lídia. Silêncio do outro lado. Lídia aflita a escutar a respiração densa de Paulo. Pensou, esqueceu-se. E então explicou, sou aquela que tem uma mãe doente e eu também adoeci e veio ajudar-me aqui a casa… Esperou e ele nada. Lídia, envergonhada, já arrependida de ter pensado que ele se lembrava, já não se lembra... E então ele disse, lembro-me, lembro-me muito bem. Pôs-me fora de casa sem uma explicação…, e Lídia percebeu que havia um tom de ironia, talvez de condescendência, talvez de caridade. E eu fiquei muito preocupado porque achei que você não estava em condições de ficar sozinha. Fui aí algumas vezes, toquei à porta lá em baixo e ou não me atenderam ou, nas duas vezes que fui à hora de almoço, atendeu-me uma mulher, que deve ser a sua empregada, que me disse que já estava tudo bem consigo e que não valia a pena eu voltar. Desisti. Ficou calado e Lídia calada ficou. Não se lembra de ter ouvido nenhuma campainha. Às vezes é para abrir a porta da rua para pôr publicidade ou o carteiro, qualquer coisa, se calhar não ligou, ou, então, o mais certo, estava a dormir, nos primeiros tempos dormia sem parar. Mas aquela conversa era coisa da D. Fátima, já se estava mesmo a ver, e não lhe tinha dito nada. Ele percebeu que ela não ia explicar nada, Mas tenho pensado em vocês. Como é que estão?




Lídia voltou a sentir uma vergonha muito grande, as lágrimas começaram a correr-lhe, sempre esta tristeza, sempre esta angústia no peito, uma garra silenciosa, o medo de rejeição, o medo de tudo deitar a perder. E afinal ele tinha-se preocupado. Lídia comovida, agradecida: não estava habituada a estas atenções. E a voz de Paulo, Estou? 

E Lídia, num esforço muito grande, estou. E a sua voz era uma voz de menina pequena, de menina assustada, de passarinho. Paulo tentava perceber, mas é afinal o que se passa, que não a ouço? 

E Lídia, a garganta num colapso, estou um bocadinho nervosa, desculpe e quase lhe saía um soluço. Paulo não disse nada durante um bocado mas depois falou e havia cuidado na sua voz, Então calma, respire, não fale agora, respire. Lídia sentiu-se ridícula, que figuras, credo… pensou, numa aflição. Paulo não via as lágrimas, apenas ouvia a voz tão trémula, mas diga-me uma coisa, aconteceu alguma coisa? Sinto-a tão nervosa… Lídia, não, não, não aconteceu nada. Paulo tentava acalmá-la, vá, respire, vá, já se sente melhor?... Então diga lá.

E Lídia disse, a voz muito cansada, muito lenta, muito gasta, uma leve lamúria atravessando o espaço, toda a vida com medo da opinião dos outros, não sair com os amigos, não chegar tarde, não ir de férias com os amigos, não usar saia muito curta, não usar calças muito justas, não usar blusas muito decotadas, não dar confiança aos rapazes, e o tempo a passar. As outras arranjando namorado, casando-se e eu sem sorte, sempre com cuidado, sempre com medo, sempre obediente. Fui ficando em casa com os meus pais. E então quem é que te ligou? Tu vê lá se não é para se aproveitar de ti… Tu não dês ouvidos, há muita malandragem, tu tem cuidado… e o tempo a passar. Depois morreu o meu pai e foi aquele desgosto e a minha mãe muito em baixo, anos de desgosto e eu a ter que a acalentar, um luto no corpo e na alma, e sempre tu não vistas isso que até parece mal agora que o teu pai morreu, tu não andes a rir na rua, o que é que hão-de dizer, ainda de luto e a para aí a rir, e os anos a passarem, e depois já todos os amigos e colegas se tinham casado e sempre aquele medo do que dissessem, não falar com homens casados para não ficar falada, e sempre aquele medo da censura, e ia de férias sempre com ela e ia ao cinema com ela, mas ela também pouco queria sair não fossem pensar que era viúva alegre, e fui ficando uma solteirona e ninguém já olhava para mim e já me sentia diminuída, uma imprestável que nunca ninguém quis, e depois ela adoeceu, esquecimentos, confusões, e eu pensava que eram mentiras que dizia mas depois percebi que a cabeça já não estava a funcionar e agora é isto que vê, uma desolação, falta de meios, falta de tudo, uma solidão tão grande, um cansaço, um sofrimento que nunca mais acaba e eu acho que já não consigo aguentar e olho para mim e vejo que não tenho vida própria, e olho para trás e vejo que nunca tive e olho para a frente e vejo que não há nada.

Parou, cansada, quase sem voz, os soluços enredados na garganta. Do lado de lá, silêncio. Paulo não sabia o que dizer perante tão inesperada confissão. Só lhe ocorreu dizer, estou a ver, mas tenha calma. Mas pensou, coitada, coitada.

Lídia nem conseguia acreditar no que estava a fazer, nunca tinha falado assim com ninguém, uma vida inteira de silêncios e agora esta vergonha, que conversa mais parva e logo com um desconhecido, que vergonha, que vergonha, o que iria ele pensar dela? Uma solteirona tonta, com certeza. Que vergonha, as lágrimas corriam sem parar.

Desculpe, nem sei o que foi isto, desculpe, não era isto que eu queria dizer, eu só queria pagar-lhe, fiquei a dever dinheiro, desculpe.

Paulo só sentia pena, não tem mal, não se enerve, pode falar, falar faz bem, desabafe se quiser.

Não, não, não sou nada disto, não sei o que foi isto que me deu, deve ser dos comprimidos, nem sei, desculpe, desculpe, que vergonha.

Paulo, olhe o dinheiro não é pressa mas, se quiser, eu passo aí.

Lídia não disse nada, atrapalhada, envergonhada. Depois assustou-se, não, aqui não.

Paulo percebeu, pois, desculpe, esqueci-me, diga então onde quer.

Mas Lídia estava bloqueada. Não sei, não conheço nada, não sei.

Paulo acalmou-a, ora essa, com certeza que conhece. Olhe o que acha do café que há no Cais do Sodré, uma casa de madeira que tem uma esplanada mesmo em cima do rio?

Lídia não sabia, nunca tinha visto, mas ele explicou-lhe tudo. Amanhã às 2 da tarde, pode ser? É boa hora para si?

Lídia não conseguiu raciocinar mas disse que sim, a cabeça esvaída.

Quando desligou o telefone toda ela era um tremor, um nervoso descontrolado. 




Depois, aflita, e o que é que hei-de vestir? e a que horas tenho que sair de casa? e se ele ainda não estiver lá, o que faço? e o melhor é não ir, se não ainda vou para lá fazer vergonhas, desatar a chorar, que vergonha, e já só queria que Nita chegasse para lhe pedir ajuda.

A mãe chamava, Então mas então onde é que se meteram todas? tenho aqui o chá e os bolos e foram todas falar para outro lado? estávamos aqui a ver as fotografias, a minha irmã, a minha prima, a minha mãe, e as pequenas, todas aí numa chinfrineira e agora desapareceram todas. Onde é que andam? daqui a na parto o bolo e como-o eu  sozinha. Falta de consideração. E já falava aos gritos, muito zangada. Estão a gozar comigo?! Estão a gozar comigo?!

E Lídia ouviu uma coisa que caía e os gritos Vão ver o que lhes faço! Vão ver! Sempre a gozarem comigo! 

Lídia passou por ela, já vêm, mãe, estão quase aí. A mãe respondeu com indiferença, como se o assunto tivesse deixado de lhe interessar, Ah, está bem.

**

As imagens são partes de pinturas de Lucian Freud e são ainda as mesmas mulheres silenciosamente tristes .

Recordo que, para ler esta história desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí do lado esquerdo, lá mais para baixo, 'Lídia - uma mulher muito  triste'

**

Caso vos apeteça ainda dar um passeio pelo meu Ginjal, terão a bela música de Boccherini e hoje as minhas palavras são as palavras de uma mãe que ri como se risse deslumbrada quando afinal só sente uma cega dor, junto à explicação do sorriso de Daniel Faria.

**

E já chega não é? Calo-me já - mas não sem antes vos desejar saúde (tão importante que é a saúde) e felicidade.

terça-feira, setembro 25, 2012

Passos Coelho sai da Concertação Social com uma grande novidade: vem aí nova onda de austeridade, mais impostos, mais impostos, mais impostos! (diz ele que é para compensar aquilo da TSU mas a gente sabe que não é nada disso, a gente sabe que é porque tudo o que anda a fazer está a redundar numa enorme derrapagem). E Paulo Portas? Face a isto o que vai fazer? Eu, no lugar dele, pintava a cara de preto!



[Vocês olhem-me bem esta carinha. Mas isto engana alguém?
Não está tudo  neste fácies?
Eu acho que sim. Olhem lá bem...]



E eis que, no primeiro dia útil depois de ter sido pública e humilhantemente obrigado a meter a viola - ou melhor, a TSU - no saco, veio a cigarra Passos Coelho dizer aos parceiros da Concertação Social como é que afinal tenciona ir combater o desemprego.

Recordo que a explicação com que esta inteligente criatura nos tinha divertido numa famigerada sexta feira antes de um inofensivo jogo de futebol era que o donativo que os trabalhadores iam ser obrigados a fazer aos patrões tinha como objectivo que estes desatassem a admitir novos trabalhadores. Não conseguiu.

Não conseguiu mas não percebeu.

É que qual é a fórmula mágica desta vez tentada?... Simples, vira o disco e toca o mesmo: vai aumentar os impostos.

Sendo conhecida a execução orçamental de Agosto que aponta para nova derrapagem, tendo o Tribunal Constitucional recomendado que se abandone o roubo dos subsídios aos funcionários públicos e pensionistas, Passos Coelho faz um mix de todas as premissas e... baralha tudo de tal maneira que acaba baralhado.

É certo que os nossos tutores querem saber se vamos atingir as metas. Mas também é certo que já era mais que tempo de alguém lhes abrir os olhos e explicar, loud and clear, que nem que todos os portugueses arrancassem a pele, os olhos, a língua, o coração, tudo, tudo a que se conseguisse deitar a mão, nem assim iria ser possível a Portugal cumprir as metas. Não com esta receita, não com este esmiframento. Por isso, não vale a pena persistir neste crime contra Portugal e contra os portugueses.

Que uns burocratas de meia tigela fechados num gabinete em Bruxelas, que se limitam a olhar para folhas de cálculo, não percebam bem isto, até condescendo. Agora que Passos Coelho, depois de tudo o que se passou no País nos últimos dias, insista na mesma receita, já me deixa mesmo preocupada.

Começa a suspeitar-se por aí se o homem e os que o rodeiam não serão foragidos do Júlio de Matos. É que isto não é normal… Então o País sai à rua e grita-lhe aos ouvidos que está farto desta política, todos os parceiros socias gritam que o empobrecimento está a levar o País à ruína, os partidos todos, incluindo os das coligação, insurgem-se contra este desvario, a imprensa internacional já fala dos perigos de levar a austeridade longe de mais… e ele aparece de novo, com aquela sua carinha de pau, a dizer que vai voltar a aumentar os impostos…? Começo a concordar com a vox populi, ou o homem está a gozar ou não é bom da cabeça.

É certo que diz que vai começar a devolver (mas não diz quanto nem como) parte dos subsídios que substraíu à Função Pública (mas o Tribunal não tinha dito que a constitucionalidade deveria ser reposta? Ou seja, não era suposto devolver na íntegra?), mas dá com uma e subtrai com outra, alargando agora os que são assaltados. Face aos insistentes rumores que correm (e basta percorrer a comunicação social e as redes sociais para o comprovar) e face às provas do que é capaz de fazer, já me interrogo é como é que ainda ninguém mandou internar o homem...? Não será caso de alguém tratar disso …? 



Eu só tenho aqui esta. Mas são tantos os que parecem precisar que acho que não chega.
Mas estabelecemos prioridades. Eu concordo, talvez seja de começar por ele, pelo  ex-doce


E depois aparece agora num tom de quase choradeira, armado em vítima, dizendo que a melhor forma de dinamizar a economia é aumentar a competitividade e que, para aumentar a competitividade, a melhor maneira é reduzir os custos de trabalho e que, para reduzir os custos de trabalho, o melhor é cortar na TSU e que, para cortar na TSU, o melhor era a solução que tinha engendrado, isto é, serem os empregados a financiarem esse corte… E eu ouço isto e não quero acreditar… O sujeito ainda não percebeu. Ainda não percebeu nada. Tudo o que diz está errado, não há uma única premissa que esteja correcta. Tudo errado! Digo-vos… isto é assustador…

Eu trabalhei com um presidente de um Grupo que costumava dizer que há os malucos mansos e os malucos perigosos e, na brincadeira, fazia o exercício de catalogar quais, de entre os que trabalhavam connosco, eram os mansos e os perigosos. Pois eu também vos digo: esta criatura é dos perigosas.

Certamente por isso é que o Monti se reuniu de novo com a Espanha, com a Grécia e com a Irlanda e se está nas tintas para ele. É que falar com ele parece ser o mesmo que falar com uma pedra. Uma pedra fundamentalista.

Ainda não percebeu que esta via não é solução para o problema, que esta via, pelo contrário, só agudiza o problema, ainda não percebeu...!

O sujeito vê os resultados, o défice que não baixa, a dívida que aumenta, o desemprego que não pára de subir, a economia que continua a decrescer, o consumo a pique, as falências a dispararem, a pobreza a alastrar de forma viral, a sopa dos pobres que já não chega, o país a divergir dos outros à força toda, tudo na maior desgraça, o sujeito ouve toda a gente a gritar-lhe aos ouvidos que está errado, e vai…. e tomem lá nova dose! E olhem que desta vez é a doer!

Apre!

E quanto ao Ministro Paulo Portas, líder do CDS, que há pouco dirigiu uma carta aos militantes hasteando de novo a bandeira do NÃO a qualquer novo aumento da carga fiscal... o que tem a dizer a este novo anúncio do seu chefe Coelho?



Paulo Portas em dia de festa


Vale tudo Paulo Portas? Diga-me, vale? Os discursos de pingo no nariz, jogando com palavras de efeito fácil, apagam a sua má consciência Ministro Paulo Portas? Pode olhar-se no espelho e dizer a si próprio que ainda está nisto por patriotismo?

Claro que não é patriotismo. E também, no seu caso, não é falta de inteligência. No seu caso é o quê, então, Ministro Paulo Portas? É a palavra Ministro? É o palco? É o quê?

Está bem, não me diga, não diga a ninguém. O melhor é que nem a si próprio o diga. Sugiro é que, se tiver que aparecer em público, não apenas por auto-defesa mas, sobretudo, por uma questão de coerência, apareça assim:



Disfarce para Paulo Portas poder sair à rua sem ser humilhantemente vaiado

**

Nota: A propósito do que escrevi, considero interessante e digno de reflexão o caso islandês de que se fala no pequeno documentário muito oportunamente divulgado aqui.

**

Quando comecei a escrever isto, ainda tencionava voltar à história de Lídia. Mas comecei a escrever muito tarde, depois ainda fui refrescar-me com música e poesia ali ao lado, no meu Ginjal e, como se não bastasse, desviei-me para este assunto e, claro, alonguei-me. E agora já tenho os olhos a resvalarem para lá de Bagdad. Por isso, ainda não é hoje. Não faz mal,  não me esqueço de onde ia...

De qualquer forma, teria muito gosto em receber-vos lá pelo meu Ginjal. Continuo com Boccherini e hoje as minhas palavras pousaram sobre um ventre redondo e cheio de vida, em volta da poesia de António Ramos Rosa.


**

No meio do drama que é viver num país governado por gente assim, até custa pensar em felicidade. Mas eu não desisto e desejo que vocês, meus Caros Leitores, também não. Uma boa terça feira!