segunda-feira, fevereiro 27, 2012

O Livro da Matemática de Clifford A. Pickover e o Livro da Areia de Jorge Luis Borges (com o Ponto de Luz de Sara Tavares e Déjà Vu segundo Hans van Manen) - a oferta do meu amigo e a minha retribuição num dia de sonhos e labirintos


Música, por favor


Ponto de luz  -  Sara Tavares

Meu amigo,

Hoje sem gracinhas, hoje na primeira pessoa, o meu sincero agradecimento. Quando há pouco por aqui passaste, numa corrida, para me deixares o livro de que falaste no outro dia, nem quiseste esperar que eu o tirasse do envelope de papel. Estavas cheio de pressa, nem entraste.

Logo que te foste, abri com curiosidade. Já o fotografei. Queria que a imagem mostrasse a capa, bonita, e alguma das páginas de dentro. Por isso, retirei a sobrecapa e ajeitei-a numa cadeira, junto ao livro aberto, para aqui o poder mostrar.

O Livro da Matemática de Clifford A. Pickover
(De Pitágoras À 57ª dimensão - 250 marcos da história da matemática)

O livro, numa bela encadernação, é da editora Librero (holandesa, se bem percebi), distribuída em Portugal pela Ilus Books (de Espanha) e foi impresso na China. Ou seja, um produto dos nossos tempos globais.

E, no entanto, este livro é um objecto cheio de beleza. Cada 'evento' da história da matemática ocupa duas páginas. A página par descreve a descoberta, o seu interesse histórico e os factos correlacionados. A página ímpar tem uma imagem que ilustra ou interpreta ou embeleza o facto em si. E é nesta selecção que o livro marca a diferença. Há pinturas, há representações abstractas, fotografias e a escolha revela sensibilidade e bom gosto.

Que não se espere grandes descrições científicas, linguagem hermética para o grande público. Não. Pelo contrário, tudo é apresentado de forma apelativa, como se as grandes descobertas da matemática quase estivessem ao alcance de qualquer um. E, ao mostrar, factos que decorrem num arco temporal que vai de c. 150 milhões a.C. ('O Odómetro das Formigas') até 2007 ('A resolução do Jogo de Damas'; 'A Procura do Grupo de Lie, E8' e ' A Teoria Matemática do Universo'), de uma forma leve e cronológica, consegue perceber-se como estas matérias desde sempre exerceram grande fascínio em algumas mentes.

Multi-dimensional, geométrica,  silenciosa
 - matemática em movimento, beleza abstracta e pura, arte

Logo na abertura do livro, podem ler-se algumas citações das quais transcrevo duas:

'A matemática, encarada de forma correcta, possui não só verdade, mas também beleza suprema - uma beleza fria e austera, como a de uma escultura.' - Bertrand Russell, 'Mysticism and Logic', 1918

'A matemática é uma disciplina maravilhosa, louca, cheia de imaginação, fantasia e criatividade que não está limitada pela miudeza dos pormenores do mundo físico, mas apenas pela força da nossa luz interior' - Gregory Chaitin, 'Less Proof, More truth', New Scientist, 2007

Fractal (belo e imaterial como são geralmente os fractais),
emanação puríssima da abstração lógica, da contemplação devota do mundo

Termino com Max Tegmark, a propósito da sua Teoria Matemática do Universo: 'todos nós vivemos num objecto matemático gigante, e provavelmente mais complexo do que os objectos com nomes intimidantes como os múltiplos de Calabi-Yau, os múltiplos tensores e os espaços de Hilbert, que aparecem nas teorias actuais mais avançadas. Tudo no nosso mundo é puramente matemático - incluindo você!'.

Ah, adoro esta loucura poética dos matemáticos.

Por isso, meu amigo, agora não estou na brincadeira, agora não estou a provocar a ira dos deuses, não. Agora, meu Amigo, estou apenas a dizer-te que apreciei muito que, ao veres o livro, te tenhas lembrado de que eu iria gostar. Gostarei de o ler, de o folhear. Vou lê-lo com cuidado. Muito obrigada.

.&.

Gosto de retribuir. Estive a pensar o que poderia oferecer-te que, de certeza absoluta, te agradasse. Preso que andas a compromissos maçadores, agendas apertadas, lutas aqui e um pouco por todo o mundo, um peso enorme em cima de ti, não podes falhar. Sempre eficiente, assertivo, sempre a criar valor para o accionista, neo liberal, sorridente e bem vestido, convidado estrela em congressos, seminários, mesas-redondas, mal tens tempo para seres tu, muito menos, claro, tempo para ler.

O labirinto do Minotauro

Por isso, meu Amigo, como agradecimento, aqui te deixo um excerto de um pequeno livro de um autor de quem gostas particularmente, Jorge Luis Borges. Lembras-te como, antes, gostavas de discorrer sobre o que ias lendo deste argentino que tanto admiravas?

De 'O livro de Areia', da Quetzal, com tradução de António Sabler, pequeno excerto de 'O outro':

Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um dos dois tem de pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. A nossa evidente obrigação, entretanto, é aceitar o sonho, como temos aceitado o universo e ter sido engendrados e ver com os olhos e respirar.
(...)

Respondi que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Propus-lhe que nos víssemos no dia seguinte, nesse mesmo banco que está em dois tempos e em dois sítios.

Anuiu de imediato e disse-me, sem olhar para o relógio, que se fazia tarde para ele. Mentíamos os dois e cada qual sabia que o seu interlocutor estava a mentir. 
(...)

Despedimo-nos sem nos termos tocado. No dia seguinte não fui. O outro também não terá ido.

Reflecti muito sobre este encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo num sonho e foi assim que pôde esquecer-me; eu conversei acordado e ainda me atormenta a lembrança.

O outro sonhou-me, mas não me sonhou rigorosamente.

Labirintos, tantos labirintos - como podemos não nos perder?

Espero que gostes, meu Amigo. Um dia talvez voltes a poder ser simultaneamente tu e o outro, um mesmo, tu próprio - como um dia foste.

Talvez voltes a ter tempo para ler Jorge Luis Borges, talvez voltes a surpreender-nos dizendo longas passagens, talvez voltes a levar os que te ouvem para os labirintos em que gostavas de te perder.

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E vocês, meus Caros Leitores - como hoje o texto foi escrito especialmente para o meu amigo - para que não dêem o tempo por perdido, aqui vos tento compensar com um belo bailado.


Déjà Vu, coreografia de Hans van Manen, Nederlands Dans Theater


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E tenham, meus Caros, uma boa semana - para já, uma boa segunda feira!


PS: Já sabem: para ler de carreirinha as 'cenas' com o meu amigo, família e apêndices, é ir ali ao lado, mais para baixo, e escolher Folhetim (se bem que não sei se hoje devo encaixar o texto no dito folhetim).

E, já agora, se quiserem dar uma espreitadela, hoje no meu Ginjal e Lisboa, a love affair, começo a semana dedicada a Brahms e acompanho com Camões sobre as manchas e tropeços dos amores (im)perfeitos Nem mais.

2 comentários:

Maria disse...

Querida Jeitinho
Não gosto de matemática.
Gosto muito de Jorge Luís Borges.
O Bailado é soberbo.
Beijinhos
Maria

Um Jeito Manso disse...

Olá, Mary,

Se calhar não calhou ter quem, na escola talvez, lhe mostrasse a beleza e a utilidade da matemática. Eu, que tanto gosto de palavras e de poesia, tenho uma 'pancada' forte pela matemática, por modelos matemáticos, por fórmulas e por sistemas. Mas, enfim, tem que haver quem goste de umas coisas e não de outras, senão era uma enchente de gente em torno dos mesmos assuntos.

O bailado é, também acho, uma maravilha. Esta companhia de bailado tem coreografias fantásticas, os bailarinos entregam-se ao movimento com todo o seu corpo e alma.

Um beijinho, Mary!