terça-feira, janeiro 25, 2011

Quando ele é outro; quando nós somos o outro

Há uma pessoa que eu detesto desde que a vi aparecer na televisão. Incomodava-me sem motivo aparente. Mal o via, já eu estava a protestar. Perguntavam-me que embirração era aquela e eu não sabia explicar. Era a voz, era a cara, os gestos, tudo aquilo me parecia ter um ar de falso.

Um dia, há algum tempo, ia eu a descer umas escadas num local público e vinha ele a subir. Quando me viu teve aquela reacção de quem vê alguém conhecido. Não sei se eu tive a mesma reação, penso que não mas pode ter acontecido, dado que eu estava fartíssima de o ver na televisão - antes por motivos normais, depois pelos piores motivos.

Mas ele subiu na minha direcção, sorrindo e cumprimentando-me com à vontade, 'Olá, está boa?'. Fiquei sem reacção. Ele sorria, dizendo-me que não tinha logo falado porque não tinha reparado. Sorria esperando que eu retribuísse mas eu nada, estupefacta. Depois continuei a descer as escadas sem desfazer o equívoco, sem ser capaz de dizer nada, gelada.

Quem me acompanhava, ficou ainda mais admirado: 'Mas então, afinal, conhecem-se?'. Que não, que nunca antes o tinha visto ao vivo. Mas a reacção do outro ali à minha frente a falar comigo como quem fala com alguém que conhecia bem, desencadeou muitas dúvidas, 'Pois não parece'. Pois não, nem a mim. Fiquei a pensar se já o teria antes conhecido em qualquer circunstância de que me tivesse esquecido depois mas não me parece. Não percebi e ainda hoje continuo a não perceber. Quem é que ele pensou que eu era? Olhou para mim e viu uma outra. Uma sensação estranha.

Ao vivo é como o imaginava quando o via na televisão: aparentemente afável, amável, simples. No entanto, voltou a desencadear em mim a mesma inexplicável rejeição, uma profunda rejeição.

Sou leitora omnívora e no outro dia comprei o livro de um ex-casapiano que descreve a sua vida (tão triste) e como o abandono a que a família o sentenciou o tornou frágil, presa fácil. No livro ele conta o que, durante anos, se passou na Casa Pia, se passou com ele, os passeios de carro, a casa das Forças Armadas, a casa de Elvas, os abusos, o nojo, as dores, a vergonha, os medos, os silêncios.


Pois bem, aí ele conta como, de todos os que o violaram, o que mais o marcou era esta pessoa que sempre me incomodou e que naquele dia se dirigiu a mim, me cumprimentou, parou à minha frente, sorrindo, simpático.

Nem todos os monstros têm cara de monstros, nem todos aqueles que albergam demónios dentro de si têm ar demoníaco. Não. Pode conviver-se uma vida inteira com eles e nunca perceber que lá dentro há um outro.

Poderá o mesmo acontecer connosco?

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PS: Todo este caso é uma vergonha, seja sob que prisma o olhemos. Como se não bastasse toda a confusão que o rodeou, os recursos, o arrastar no tempo, a infâmia, aparece agora Carlos Silvino, o célebre Bibi, dizendo que tudo o que disse até aqui era mentira, que estava drogado quando fez as confissões. Despediu o advogado e, surpresa das surpresas, aparece a dar o dito por não dito. Nos dois livros que li com depoimentos de alunos abusados, aparece descrito com um detalhe difícil de imaginar como ficcionado, tudo o que se passou envolvendo o ex-motorista e intermediário da rede pedófila. Custa a acreditar que os miúdos tivessem inventado tudo, que as versões de todos fossem consonantes e que todos os investigadores e juízes se tivessem equivocado. Que coisa!

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Volto a este post, em Junho. A semana passada, no Expresso, Clara Ferreira Alves entrevistou Ricardo Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz no processo Casa Pia.

Diz ele, com absoluta convicção, que aposta toda a sua carreira na inocência dos nomes que foram a julgamento. Diz também que o caso da pessoa acima referida é outro em que não havia sustentação possível. E eu interrogo-me sobre se tal é possível num país civilizado. Poderá ter acontecido que, por alguma macabra razão, tudo não tenha passado de uma tremenda encenação (a mando de quem?) para incriminar algumas pessoas? Mas que as crianças foram abusadas, isso foi provado. Então por quem? Onde estão? Porque não foram acusados?

Em contrapartida, poderá ser possível que se tenha destruído a honorabilidade e a vida de pessoas, acusando-as de crimes que jamais cometeram? Que jamais cometeriam?

Em relação à pessoa em concreto que refiro acimo, posso ter sido imperdoavelmente preconceituosa?

Penso nisso e sinto-me excessivamente mal. O assunto Casa Pia incomodou-me sempre demais. Custa-me pensar em crianças que se são abandonadas pela família, que se sentem um fardo, mal-amadas, entregues ao Estado, e que seja o próprio Estado a não zelar para que tenham o carinho que lhes faltou em casa. E custa-me a pensar que alguns homens, de comportamente animalesco, busquem o prazer violando justamente essas crianças. O meu sentido maternal ressente-se, revolve-se, fico muito incomodada.

Mas eu, que geralmente, sou tão cuidadosa não me deixando levar na onda da comoção pública, não embarcando em julgamentos apriorísticos, posso ter sido, neste caso, vítima da onda de fundo que se gerou na sociedade condenando toda a gente que as crianças incriminaram?

Se assim foi, posso eu também ter pensado de forma monstruosa? É que não deve haver também monstruosidade maior do que um inocente ver-se enlameado por um crime que não praticou e que é dos mais socialmente insuportáveis. Se assim foi, imagino o que deve ter sido a vida destas pessoas, a insuportável vida destas pessoas.

Nesse caso, se com o que escrevi sobre este tema fiz sofrer alguém, as minhas muito sentidas desculpas.

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