A saudade dos três doces bárbaros na partida de uma deles
Hoje soube da morte de uma pessoa que conhecia. Conhecia-a apenas de vista mas, de todas as vezes que estive com ela nos mesmos eventos, via-a sempre vibrante, cheia de alegria e de vida. O seu próprio rosto irradiava. Sempre alegre, entre amigos, rindo, na paródia, ela era daquelas pessoas que não passava despercebida. Soube há algum tempo que estava doente, mais recentemente soube que estava mesmo mal, ontem soube que estava por pouco e hoje soube que o seu sofrimento tinha acabado.
Fez-me muita impressão. Há pouco vi uma fotografia sua e a sua morte parece-me ainda mais impossível.
Até há uns anos quem morria eram avós, tios de idade, depois mais recentemente começaram a morrer alguns pais -- pessoas de outra geração. Mesmo fazendo-nos impressão e sentido a saudade e a dor da separação, inevitavelmente aceita-se. É a lei da vida, diz-se nestas ocasiões. E é verdade.
Lembro-me de andar no primeiro ano do liceu e de ter morrido uma colega, vizinha e amiga. Toda a gente sofreu imenso e a mim causou-me uma aflição muito grande. Contudo, desde pequena que eu ouvia dizer que ela sofria do coração e que havia nela uma bomba sempre prestes a explodir. Lembro-me de ouvir dizer que, antes de morrer, tinha tido muitas hemorragias e, para mim, pensei que tinha mesmo acontecido, o coração dela tinha mesmo explodido.
Mais tarde, mas ainda no liceu, foi um vizinho da minha avó, colega de escola desde a infantil e amigo que também morreu. Tinha asma e sempre o conheci com uma tremenda falta de ar, sempre com pieira e sempre arfante, sem poder brincar, por vezes quase sem poder falar ou mexer-se. Falava-se da bomba como se vivesse dependente dela. Quando morreu foi uma pena muito grande mas foi quase como se fosse uma morte anunciada, a fatalidade que todos receavam.
Foram mortes muito precoces mas, em ambos os casos, no meu mais íntimo foi quase como se a natureza tivesse feito a caridade de reparar um erro irreparável
Não vou falar das mortes da minha família e que muito me custaram. Mas vou falar de uma morte que me fez mesmo muita, muita impressão.
Volta e meia falo aqui dela. Quando no outro dia andei a limpar mails, passei várias vezes pelos dela e não fui capaz de apagar um único. Nenhum era de trabalho. Eram todos mails de anedotas, vídeos divertidos ou bonecada frequentemente maliciosa (muito maliciosa, muito mesmo, para dizer a verdade). Era uma pessoa que estava sempre de bem com a vida, que brincava com tudo e com todos. Ainda me lembro dela, uma vez, nos contar que uns dias antes tinha estado com um ministro e que ele a tinha olhado de alto a baixo. Mas logo acrescentou: 'Mas não era com ar de quem queria comer, era mais ar de 'onde é que ela terá comprado esta roupa?'. O meu marido desconcertado, o marido dela a rir, já mais que habituado, eu perdida de riso. Ou quando contava toda a espécie de safadezas entre colegas de trabalho, explicando: 'Sabem como é, há muitas camas...'. Até que um dia ele me contou, preocupadíssimo, que ela tinha pedido a um colega que lhe fizesse um exame e, nesse exame, o colega confirmou o que ela temia: um tumor. Depois foram os dias de expectativa em relação à biopsia. E depois o que se seguiu, ela sempre optimista, os tratamentos, ela optimista, o marido reticente mas, depois, o mal erradicado, já confiante. Os anos seguintes foram anos tranquilos, ela bem. Os filhos casaram, veio um neto, eles felizes. Por vezes, a medo, eu perguntava-lhe a ele: 'E ela, bem?'. E ele: 'Felizmente'. Há pouco tempo, andava eu e o meu marido a passear em Óbidos, entre o Natal e o Ano Novo, toca-me o telemóvel. Ele. Conversámos. O bebé dormia a sesta. Disse que a mulher estava 'aqui ao lado, manda-vos beijinhos. E um feliz ano novo'. Ouvi a voz dela. Retribuí. Não sei se no primeiro ou segundo dia do ano, eu a trabalhar, o telefone. Ele. Num fio de voz, se calhar ela tinha que ir para os paliativos. Não percebi. Ele disse que também não. Ela tinha escondido que estava muito mal. Tinha-se medicado. No hospital, os colegas contaram-lhe: sabiam, ela tinha dores mas tinha-lhes pedido para não dizerem nada. Intrigada, eu: 'Mas a semana passada disseste que estava bem... '. E ele: 'Estava cansada mas foram as festas, a miúda lá em casa, pensei que era normal, ela dizia que era normal'. Mas na véspera não se conseguia mexer, estava sem forças, levaram-na ao hospital, teve que ir ao colo. Estava no fim. Ele ainda incrédulo. No dia seguinte, em lágrimas, ligou-me de novo: ela tinha morrido. Não quis estragar as festas à família, não quis que a família e os amigos sofressem com o seu sofrimento. O que ela sofreu nem imagino. Da sua coragem nem encontro palavras para falar. Mas viveu até ao fim como sendo ela própria e não como uma doente terminal e acho isso extraordinário. No velório, o meu amigo estava inconsolável, destroçado. Ela era a sua força, ela era o motor da família. E a mim fez-me muita impressão. Quase como se não conseguisse assimilar, não conseguisse perceber, não conseguisse aceitar que tinha mesmo acontecido. Ainda hoje me espanto.
E agora foi esta... (ia dizer esta rapariga). Está a meio caminho entre a idade da minha filha e da minha. Tão jovial, tão saudável. Parece que não se pode acreditar.
Há situações em que parece que, ao desaparecer uma pessoa, se abre um buraco negro que jamais será ocupado. Pessoas luminosas. Deixam um rasto que perdura na nossa memória, que continua a brilhar.
Não há ninguém que cá fique pelo que, racionalmente, deveríamos encarar estas situações com alguma naturalidade, aprendendo a aceitá-las melhor. Mas nisto das emoções nem sempre se consegue ser racional.
Caetano Veloso e Maria Bethânia falam sobre Gal Costa: 'Nossa história é amor'
A voz de Gal, apesar de única, sempre esteve perto de outras três vozes: as de Gil, Bethânia e Caetano. Juntos, eles transformaram a amizade em arte. A repórter Renata Ceribelli ouviu duas dessas vozes. Elas falam de lembranças doces e de uma bárbara saudade.
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A primeira pintura é Death on a pale horse, J. M. W. Turner. A segunda e a última são algumas das fantásticas mulheres de Armanda Passos. A terceira é da autoria de Gary Hume.
Pois,UJM, o tema de hoje é triste, muito triste... Acho que nestes tempos, todos temos dessas histórias impressionantes para contar. O cancro tem sido um grande flagelo, atingindo jovens,menos jovens, quem e quando menos se espera. Histórias tocantes de vida e de morte , muitas delas em que nos custa a acreditar! Também por cá estamos a enfrentar dessas lutas, infelizmente! Muita saúde. Maria
1 comentário:
Pois,UJM, o tema de hoje é triste, muito triste... Acho que nestes tempos, todos temos dessas histórias impressionantes para contar.
O cancro tem sido um grande flagelo, atingindo jovens,menos jovens, quem e quando menos se espera.
Histórias tocantes de vida e de morte , muitas delas em que nos custa a acreditar!
Também por cá estamos a enfrentar dessas lutas, infelizmente!
Muita saúde. Maria
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