A espionagem vem da Rússia. As gripes vêm da China. Outras espionagens também vêm dos States (mas este é um mundo em que não há virgens). Os ventos vêm do deserto. A vergonha vem do Brasil. Outro tipo de vergonha vem do que se vai sabendo do Vaticano e suas sucursais. Os homens e as mulheres que querem casar com agricultores vêm da sic.
E isto é o que concluo do que vou espreitando por aí. E isso, em boa verdade, pouco contribui para a minha felicidade.
Em contrapartida, é com grande curiosidade e em estado de encantamento que, enquanto me reúno para tratar de assuntos nem sempre fáceis, observo um passarinho redondinho e bonito debicando as flores no canteiro ao pé da janela. Está no alinhamento do monitor e penso que, do outro lado, não perceberão que não olho para a apresentação mas para a gulodice do passarinho.
Ao fim da tarde, estava a escrever um mail, pousou no parapeito um outro passarinho. Olhou para dentro de casa mas não quis saber. Saltitou e logo dali partiu em voo tranquilo.
Quando os últimos raios de sol douravam a folhagem, consegui sair de casa e fui fazer um último telefonema de trabalho para o terraço do lado, o terraço das suculentas. Há ali uma trepadeira que dá aqueles belos cálices cor-de-rosa. Não sei se são essas flores se são outras que transmitem um perfume que é muito bom. Estar ali a sentir o ambiente dourado e tranquilo de fim de tarde e respirar aquele ar oloroso transmite-me paz e felicidade.
Há algum tempo, quando contei a um amigo que agora morávamos aqui, ele ficou curioso. E disse: eu, se penso em morar numa casa assim, penso também logo: e se um de nós morre? o outro fica sozinho numa casa assim?
Eu disse: a mim nunca me passa tal pela cabeça. Mas, se passar, penso que, aconteça o que acontecer, sempre abençoarei os dias felizes que aqui tenho vivido. O que vivi já ninguém mo tira.
Não sou uma pessoa complicada. Não padeço de preocupações por antecipação. Também não padeço de alguns outros males incapacitantes. Por exemplo, não padeço de ciúmes. Não padeço de inveja. Não padeço de ressentimentos. Esses males corroem a alma de quem deles padece. Tenho a sorte de deixar a minha alma e a minha mente livres para se irem deleitando com as pequenas coisas.
Tenho preocupações concretas e maleitas bem reais como provavelmente toda a gente tem mas não dramatizo: relativizo. E como sou emocionalmente primária e mentalmente despistada, mal me distraio das preocupações ou maleitas logo as esqueço. Se passados dois dias me perguntam por elas, já tenho que esforçar-me para não parecer anormal pois a verdade é que já mal sei do que estão a falar.
Portanto, é assim que o tempo vai passando.
Noto que os meus cabelos vão aparecendo brancos junto às frontes laterais. Cada vez os noto mais. Até não há muito eu pensava que iria chegar aos cem quase sem cabelos brancos. Agora já não penso isso e, ao ver-me ao espelho, eu percebo que o tempo passa, sim. E vai deixando o seu rasto. Mas também isso não me afecta.
Quando falo com a minha mãe, por vezes queixa-se. Não gosto dessas queixas, digo-lhe que não tem razão para se queixar. Fica sentida com o meu desprendimento: não tenho razão como? Desde que o teu pai morreu, tudo me acontece.
Fico aborrecida: tudo, como? o que é que lhe aconteceu? está de boa saúde, devia era dar graças.
Contrariada, desfia os seus males: volta e meia uma dor na perna, a espécie de alergia que a máscara lhe provoca, a inflamação no ouvido que teve no outro dia.
Indigno-me: o que é isso? nada!
Ouço-a suspirar, incompreendida, mas continuo: mas achava que podia chegar quase aos noventa sem um dorzinha de nada de vez em quando, sem sequer uma inflamação de nada no ouvido?
Suspira, indignada, ela, com a minha incompreensão: De nada... Sim, sim... eu é que sei.
Depois mudo de conversa, digo-lhe que deve aproveitar e sentir-se agradecida pela sorte que tem. Não protesta, penso que para não me ouvir mais com a mesma conversa.
Mas penso mesmo isso. Passaremos melhor por esta vida se, em vez de andarmos sempre a reclamar contra a nossa sorte, agradecermos a que temos, vivermos a bênção que é habitarmos um planeta que tem, em si, tantas belezas, tantos perfumes, tantas palavras tão belas, tantos voos, tantos mistérios.
A vida é curta? Ah pois é, bebé, mas sempre ouvi dizer que até onde chega não é curta. E essa é que é essa.
2 comentários:
Não querendo assustar a UJM, muito menos que erradique a sua linda trombeteira, convém ter sempre presente que
“… todas as partes das plantas de Brugmansia suaveolens são tóxicas para as pessoas e para a maioria dos vertebrados, com as sementes e as folhas a serem particularmente perigosas para os humanos … / …”
https://pt.wikipedia.org/wiki/Brugmansia_suaveolens
Um bom Corpo de Deus, se é que isto se pode dizer !!
Querida UJM
Sem intensão de contribuir para a desilusão que o Leitor Amofinado possa causar, venho dizer-lhe que estou de acordo com alguns cuidados que deva ter. É o chamado usar mas não abusar.
Lembro-me de muitas tardes e noites de conversa passados no terraço de uns amigos, no tempo em que podíamos fazê-lo, onde o ar era perfumado com duas dessas belas arvores que cresciam mais rapido que qualquer outra.
Nos dois dias seguintes era atacada por um mal estar a que atribuia a excessos ou poucas horas de sono. Até que um dia soube que uma amiga tambem presente nesses encontros, teve de recorrer ao hospital proximo por sensação de asfixia e o médico que a atendeu referiu-se a plantas tóxicas tipo essa e à Diefenbachia.
A Naturea é bela mas tambem tem senão.
Um beijinho.
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