terça-feira, abril 28, 2020

Viver é, afinal, o sentido da vida?
Será?
O grande mistério não é, afinal, mistério nenhum?







Ao fim de semana o meu marido afadiga-se a desbastar árvores, a podar silvas e tojo. Tem posto os sobrantes num monte que não se queimava porque ele tinha esperança que isto do covid aliviasse e que se fizesse uma grande fogueira quando cá estivessem todos. Os meninos gostam imenso de ver, sentem aquele misto de susto e vontade de vencer o medo. O meu filho também gosta.

Mas o monte de mato já era uma montanha, não dava para continuar a amontoar, e hoje decidiu produzir a sua queima. Inscreveu-se no site e, tendo obtido o ok, ao fim da tarde atirou-se a isso.


Quando foi lá para baixo, fui com ele. Estava um resto de sol, um entardecer agradável. Ele a queimar mato e eu a caminhar pelos caminhos em volta. Ia pensando: caminho por caminhar, não com o objectivo de chegar a algum lugar mas apenas pelo prazer de andar. Andar em volta como numa oração mas com a mente desocupada de palavras ou ideias.


Ouvi, então, um carro a parar lá em cima, na estrada. Desviei-me. Era o vizinho que vinha de acomodar as vacas lá em baixo. Pôs-se a falar com o meu marido. Falavam alto, de um para outro, para se ouvirem. Mas não muito alto. Sem qualquer outro ruído, a voz propaga-se bem e, mesmo à distância, ouviam-se bem. Percebi que falavam dos isolamentos e que o meu marido dizia que aqui, por estas bandas, no campo, o bicho não entra. Enquanto caminhava por entre as árvores, pareceu-me perceber que o vizinho respondia que não era bem assim, que um senhor da aldeia o tinha apanhado, que até foi levado para o hospital, que a família está toda sob suspeita. Ficaram a conversar, a espaços, com silêncios pelo meio. Quando se despediram, aproximei-me, intrigada. Na aldeia? O meu marido confirmou. Fiquei impressionada, parece-me uma coisa impossível. Tantas vezes que eu digo que por aqui, tudo tão longe uns dos outros, não há perigo algum. No outro dia, eu disse que podíamos ir à aldeia ver se por lá vendem feijão verde, cenoura e batata doce, coisa que consumo em excesso. Dizia eu que qual máscara, qual carapuça, qual cuidado, qual carapuça, aqui o ar é limpo, não há quem pegue bicheza.

Afinal.

O meu marido também estava admirado.


Depois andei a fotografar as florzinhas, os troncos lavrados das árvores cheias de vida, a descobrir outros cogumelos que, confundidos com este tempo outonal, desataram a ressuscitar. A ouvir os passarinhos.

Por acaso, por ali em silêncio, até apanhei um susto. Um restolhar ruidoso, um barulho que quase parecia uma moto aérea. Um pássaro grande levantando um apressado voo à minha passagem. Que som curioso, aquele intenso bater de grandes asasa.

Já aqui estou, de seguida, há tantas semanas e todos os dias me maravilho com o que vejo. Tantas coisas novas, tanta beleza, tanto milagre.

Ah, por falar em milagre. Hoje aconteceu-me mais um. Tomei banho e, como sempre, fui estender o lençol de banho na corda que vai do plátano ao abrunheiro. Passado um bocado, de repente, caíu uma chuvada brutal. Um daqueles aguaceiros tão violentos que pensei que até podia ser, outra vez, uma bátega de granizo. Uma coisa brutal. Estava a ter uma reunião e quase nem ouvia o que diziam tal a força da chuva. Passado um bocado, o meu marido passou ao pé de mim e, olhando lá para fora, disse: podias ter apanhado a toalha. Só então me lembrei dela. Entretanto, tinha parado de chover. Fui lá fora sem saber se a deveria trazer para dentro ou deixá-la, a ver se, com algum bocado de vento, secava. Pois bem, para meu total espanto, estava seca. Seca. Disse ao meu marido. Não acreditou. Eu afiancei: seca. Foi lá fora ver. Seca. 
Não tenho explicação. Não há explicação. À noite contei à minha filha. Ela perguntou: qual é a explicação? Respondi que não há. Perguntou se estava debaixo das árvores. Não, está no espaço aberto entre as árvores. Não há explicação. É um daqueles milagres que por aqui acontecem.

Mas voltando à queima. Gosto daquele cheiro de fogueira, em especial quando se dissolve pelo ar, pelo meio do arvoredo. Na minha cabeça é um cheiro que se mistura aos perfumes do campo, leva-me até à infância, leva-me até memórias que não consigo situar.

Quando regressei a casa, quase ao anoitecer, fiz os telefonemas do costume, os familiares e mais um ou outro profissional. E depois por aqui andei, com aqueles pensamentos meio desencontrados, a querer gostar de aqui estar, apesar do confinamento e da saudade, mas sem querer assumir que gosto. Talvez porque a jornada acabou ligeiramente mais cedo e, portanto, o dia me foi menos pesado, cheguei à noite menos revoltada, muito mais tranquila.


Entretanto, já estive a trabalhar para preparar o dia de amanhã que começa cedo e vai acabar tarde e agora, aqui, como habitualmente, para descansar a cabeça, resolvi espreitar os vídeos. E, treco-lareco, na mouche. Adivinhando que a minha disposição está para peace and love, natureza e harmonia, bucolismo e tranquilidade, tinha para me sugerir daqueles vídeos em que não percebo nada do que dizem. Mas sem problema. O primeiro tem legendas mas são tão miudinhas e o meu computador tem um monitor tão pequenino que não pesco uma. Mas não sinto falta. Gosto na mesma. Já vi duas vezes. Tão bonito. A casa, a luz, as fotografias, os gestos vagarosos, as grandes janelas, as árvores, os verdes, os trabalhos manuais. Uma tal paz. 


Penso: será que um dia vou ser assim, como a senhora deste vídeo? Feliz, apaziguada, vagarosa, toda eu tempo para tudo, para passar as mãos ao de leve sobre as coisas, olhando lá para fora. Fazer pão. Será que um dia me vai dar para fazer pão, para fazer compotas, para organizar as fotografias? Será que um dia vou deixar outra vez crescer o cabelo e fazer uma trança? Quando era adolescente usava muito uma trança. Uma trança de ouro velho como estava escrito num poema. Quando desmanchava a trança, o cabelo caía-me pelas costas, ondulando como fogo. Gosto dessa recordação.


E depois a Liz Qi que, por sinal, também usa uma trança. Aqueles gestos intuitivos, aqueles movimentos decididos, aquelas mistelas, flores com leite de não sei o quê, aqueles cremes com ar de serem doces, saborosos. Ela cultiva, ela colhe, ela monda, ela separa, criva, filtra, ela ferve, ela separa. E eu, sem perceber o que ela está a fazer, deixo-me dicar a ver. Gosto. Se ela morasse na serra, aqui perto, talvez eu lá fosse pedir-lhe que me aceitasse como discípula. Acho que era capaz de passar dias inteiros a aprender com ela.


Uma vez mais partilho algumas das fotografias que por aqui vou fazendo. Gosto de fotografar porque acho tudo muito bonito. Espero que, para quem vê, não seja uma seca. Gostava que também gostassem. Significaria que talvez víssemos o mundo com o mesmo tipo de olhar, um olhar embevecido, agradecido.


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Desejo-vos uma boa terça-feira.
Saúde e alegria.

8 comentários:

Estevão disse...

Uma toalha que passou pelos pingos da chuva ..
Se não é a toalha dum animal político, que corpo terá ela envolvido para se tornar num sagrado linho do santo sudário a perdurar per omnia saecula saeculorum?
Fica reforçada a tese de que a UJM é um clérigo, talvez o vispo do pôrto. A ber bamos!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Para já o bicho aqui na CIM do Oeste só não chegou ao concelho do Sobral de Monte Agraço, de qualquer modo não há um número muito elevado de casos.
No concelho das Caldas são 28 casos confirmados, 15 recuperações e 3 óbitos (população total de ca. de 52000 hab.).

Por aqui também temos andado em fainas jardineiras, que este ano o Verão vai ser caseiro em termos balneares, pois praia para mim é espaço de liberdade, pelo que aguardo o que for necessário para poder desfrutar
sem restrições.

Um belo dia.

Lúcio Ferro disse...

Gostei. Das fotos e das palavras. A da queima então lembrou-me do que anda a fazer o meu caseiro por esta altura. Parece que por lá ainda não entrou o merdinhas, menos mau. Se já anda por aí, conforte-se com o pensamento de que pode sair por esse campo sem olhos nas costas, sem máscaras, que pode tocar nas plantas, que as pode fotografar sem ter que higienizar a máquina antes e depois. Que só tem de ter cuidado nas compras. Seja como for, no campo ou na cidade, com mais ou menos restrições, façamos dos momentos difíceis momentos felizes. Carpe Diem, UJM.

Um Jeito Manso disse...

Não, Unknown,

A UJM não é clérigo coisa nenhuma, ora essa. E bispo do porto? Credo? Por quem me tomais?

Não senhor. UJM é santa. Santa mesmo. Não de pés de barro mas de coração de ouro, de milagre, de fazer proeza, de fazer com que os incréus tenham vontade de acender vela.

Quando estiver apuros, feche os olhos, balbucie uma prece aqui à Santa UJM e vai ver que a coisa se dá. Creia.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Que saudades da praia, nem me fale. Sou bicho do mato mas, ao mesmo tempo, bicho da beira de água. Praia, ver o mar, passear à beira do rio. Quando voltar a vê-los nem vou acreditar que consegui estar tanto tempo longe.

E também não quero pensar se vou ter que voltar a andar enfiada em elevadores com gente desconhecida, quase em cima uns dos outros ou a ter reuniões a toda a hora em salas fechadas sem janelas. Já a epidemia por aí andava, num dos últimos dias de trabalho normal, tive uma reunião com um cavalheiro que desconhecia que, mal me viu entrar na sala, se levantou e veio apertar-me a mão. Numa altura em que a etiqueta já mandava que nada de apertos de mão. Depois, durante a reunião, tossiu várias vezes para a mão. Eu sem confiança para o repreender. No fim, voltou a apertar-me a mão e eu com vontade de o mandar apertar a mão à prima. Agora já não conseguiria suportar isso, nem com carradas de boa educação e inibição em cima....

Enfim. O corona vai-nos mudando os hábitos, trocando-nos as voltas.

Abraço, Francisco! Saúde e boas jardinagens.

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Não tem vontade de ir ajudar o seu caseiro, ver-se livre de maus olhados, de medo de tocar nas coisas? Não lhe apetece andar de roda das flores, a espraiar a vista pela paisagem em vez de viver confinado na cidade, fazer fogueiras, sentir-se mais livre?

Eu, se não tivesse outro remédio, pois. O que não tem remédio remediado está. Mas, podendo, mil vezes aqui à larga, à solta, por entre pássaros e flores...

Carpe Diem, também, LF. Agarremos cada dia que temos nas mãos. Vita brevis.

Lúcio Ferro disse...

Há uma coisa que a UJM não sabe. O meu caseiro salvou-me a vida em março do ano passado. Andávamos os dois a desmatar e eu, citadino, não tomei as devidas precauções, dei uma queda e fui parar ao fundo de um barranco e quando dei fé não me podia mexer, percebi logo que tinha o fémur partido, a vantagem de ser filho de ortopedista. O sítio é muito, muito isolado. O homem chamou por mim, tentou sacar-me de lá mas não conseguia. Telemóveis que é bom, eu tinha mas de pouco valia, questão de rede. ele não tinha levado o dele. Estou a falar de uma pessoa com quase setenta anos, mas rijo, aledão, esculpido no tempo.. Curiosamente, numa primeira avaliação da situação, quando me tentei erguer e era impossível, estava calmo, sabia que estava fodido, mas estava calmo. O gajo pegou, disse que já voltava, buscar ajuda, e foi a correr até à aldeia, telefonar aos bombeiros. Fiquei ali, a ouvir os passarinhos. Havia dois milhafres lá no alto, quanta beleza, pensei que havia piores forma de ir. Depois ele voltou afogueado para o pé de mim, com uma garrafa de água que conseguiu passar-me e estivemos ali uma hora, a falar, ele a contar da vida dele e eu da minha. Por muito que possa ainda viver, nunca me esquecerei. Tenho um dívida de gratidão gigante. Escrevo isto com lágrimas nos olhos. É difícil pensar naquilo e escrever sobre aquilo ainda é mais, acho que é a primeira vez que o faço. Julguei que ia ficar ali, julguei que o meu tempo tinha acabado. Quando os bombeiros finalmente chegaram ao caminho de cima, não nos conseguiam localizar. Nós ouvíamos a sirene, gritámos, mas não nos ouviam, parecia que a sirene se afastava e ele lá foi a correr outra vez, encosta acima a buscá-los. Sacaram-me de lá à filme, só faltou o helicóptero. O homem não me deixou, recordo-me de me ter feito uma festa na testa quando me enfiaram numa daquelas macas insufláveis e de ter dito, “pronto, está tudo bem”, e parecia meu pai e ficou, uns meses depois, tudo bem. Enfim. Amanhã. Amanhã, em Deus querendo, vou sair daqui, para o campo, para o ar puro. Um bom dia no paraíso, vai ser sim. 😊

Um Jeito Manso disse...

Olá, Lúcio,

Um testemunho que impressiona. Está descrito de uma maneira que dá para imaginar e para sentir a aflição que sentiu. E a estima forte que existe entre gente de bem. Certamente ficará um vínculo ainda mais forte entre ambos. Não economize no afecto que lhe mostre.

E espero que a fractura não tenha deixado sequelas e que, para a próxima, tenha mais cuidado, ouviu? Pode não ter sempre por perto o seu anjo da guarda, esculpido pelo tempo...

Cuide-se, descanse, aproveite bem o ar livre e a vida simples do 'paraíso', está bem?

E vai daqui um abraço e um agradecimento pelo que escreveu, tão bom de ler...