segunda-feira, janeiro 13, 2020

O que não se vê
[Com reportagem fotográfica pelas ruas de Lisboa]





Estando pela cidade, decidimos ir veranear. Pelo Natal recebemos uma caixinha de vales Dois por Um da Time Out e isso, parecendo que não, é sempre um incentivo à descoberta. São restaurantes novos, bons, diferentes. E têm a graça suplementar de serem um bom motivo para turistarmos, ainda mais num dia de sol e, ao sol, de temperatura amena. À sombra, o frio sentia-se mas, escolhendo o lado soalheiro das ruas, dava gosto.

Durante a semana, almoçamos sempre 'fora' pelo que, ao fim de semana, para almoçarmos em restaurantes terá que ser lugar de boa estada, de boa comida, de boa companhia. 

Portanto, dia para passeio. O meu marido fez a pré selecção e, como cavalheiro que é, deixou para mim a decisão final. Optei por um naquele lugar a que sempre voltarei como se fosse a primeira vez. Por mil vezes que por lá passe, sempre olharei cada parcela da paisagem, cada rua, cada montra, cada pessoa que por lá anda como se tudo fosse absolutamente novo para mim.

Está cheio de turistas. Mas, desde que me conheço, sempre esteve. Turistas estrangeiros, turistas nacionais, gente de passagem. Agora mais, mas isso é parte da beleza. Gosto de lugares de muitas línguas, muitas raças, muitas culturas. Gosto. Gosto de ser uma estrangeira no meio de estrangeiros. 


E, portanto, passeámos entre o Príncipe Real, São Pedro de Alcântara, Chiado, Camões, Garrett, Carmo, Alecrim. Devagar, conversando, eu fotografando. Fotografei pessoas, pessoas tirando selfies, pessoas sentindo-se mais interessantes que a paisagem, pessoas posando para os namorados, sentindo que a sua imagem é mais importante do que o estarem ali os dois juntos num lugar tão lindo, casais de idade, de braço dado, de mão dada, uma menina pequenina a deitar a língua de fora aos pais que a queriam bem comportada para a fotografia.

Fotografei raparigas elegantes, mulheres conversando, um homem sentado numa varanda, um casal em que o marido era elegante e com um belo cachecol e ela tinha umas botas que deviam estar a dar-lhe cabo dos pés pois mal se aguentava direita. Fotografei uma banda reggae com uns jovens que animavam toda a rua e fotografei as pessoas que os ouviam. Fotografei a alegria quase dançante que parecia fazer ondular um grupo de pessoas tomando café ao sol.

Fotografei pessoas. Talvez um dia, daqui por muitos anos, os meus descendentes inventariem os retratos que venho fazendo e que não mostro com receio de que alguém diga que não tenho legitimidade para fazê-lo. Mas, juro, acho que tenho, nestes cartões que vou coleccionando, um razoável mosaico humano dos tempos em que me está a ser dado viver.


Portanto, quando chega a hora de escolher as que posso partilhar, escolho paisagens desprovidas de pessoas ou em que as pessoas estejam de costas ou dificilmente reconhecíveis. Tenho pena pois o que gosto mesmo é de pessoas. Mas paciência. 

E gosto de outra coisa: gosto de fotografar o que está por detrás. Gosto da ideia de que muitas vezes nos concentramos no primeiro plano quando o que importa é o que está atrás. Não me refiro apenas à fotografia. Falo da vida. 

Quantas vezes a nossa vida é transparente, tudo às claras, à vista de quem quiser ver. E, no entanto, quanto do nosso mundo é oculto, está escondido dentro de nós ou mesmo à vista de toda a gente mas num segundo plano a que ninguém presta atenção.

Posso estar a fotografar uns pombos meditativos nos ramos nus de uma árvore quando, por trás, está a mais bela cidade do mundo.


Ou posso estar a fotografar os folhas secas e douradas de uma árvore quando, por trás, ondulam as três bandeiras que representam o território, o palco e o cenário no qual nos movemos.

Ou posso estar a fotografar o que subsiste de iluminações de Natal e, por trás, estar um rio cintilante e, do outro lado, outras cidades abençoadas pelas mesmas águas.

Ou, por detrás de um gradeamento, quase anónimo por entre cartazes velhos, o letreiro de um bar, lugar de encontros, de desejos, de clandestinos afectos, de secretas recordações.

Ou, estando a fotografar um dos belos candeeiros de Lisboa, o rio, a outra margem, reparar que em baixo, como um insignificante elemento colorido, ondula a bandeira do meu país.

Gosto de valorizar a duplicidade e de olhar para além do que está à vista. Gosto de pensar que na vida, nas cidades tal como nas pessoas há camadas que se cobrem, protegem, ocultam. Quando olhamos para uma pessoa ou para um lugar o que percepcionamos é uma ínfima parte do que há para saber. Mas ainda bem. Ainda bem que os outros não alcançam os mistérios que nos habitam, ainda bem que ninguém detecta em nós o que preservamos com carinho e cuidado. Vamos guardando segredos, palavras luminosas, convites expostos ao sol, lamentos, lágrimas, sorrisos, memórias. Preciosidades muito nossas. Tal como os rostos e os abraços que vou coleccionando em fotografia nos meus cartões de memória que ninguém conhece, vou também coleccionando pedrinhas, conchinhas, poemas, palavrinhas doces, olhares inesquecíveis, surpresas boas, gestos para sempre guardados em mim.


E, depois, parece que aquilo que queremos vai fugir, que nos vamos perder do que nos faria tão felizes. Inquietamo-nos, sofremos. Mas não. O que é nosso a nós virá. Pode ser mais tarde, pode ser quando já não o esperemos, pode surgir sob uma outra forma. Mas virá.

Por exemplo, estava a andar, encadeada pelo sol, olhando à esquerda e à direita, tudo me solicitando, tudo me encantando. Até que o vi ao fundo. belo, deslizando sobre a superfície cintilante. Tentei capturá-lo, guardar para mim aquele momento que me parecia perfeito. Mas a luz, os meus passos, a velocidade a que ia, não me permitiram. Questão de fração de segundo. Atrasei-me. Nesta fotografia aqui abaixo já o veleiro se escondia, na seguinte já não se via. Estava lá mas, como sempre quando a gente não vê, era como se não estivesse. E, no entanto, a beleza com que deslizava está na minha memória, o momento em que quase desapareceu da minha vista está aqui e eu, falando nisto, focada apenas na beleza do veleiro ao fundo de uma das mais belas ruas de Lisboa, não reparo que dentro dele vão pessoas, pessoas pequeninas, figurinhas insignificantes no contexto. Mas são pessoas com as suas vidas, as suas histórias, as suas famílias. E, no entanto, nem por um segundo pensei nelas. São o elemento secundário da fotografia. Mas talvez, apesar de ocultas, sejam, afinal, o elemento mais importante desta imagem.


Depois entrei na Livraria da Travessa e comprei os Cadernos de Nijinski

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Tive pena que a Joana Alegre não tivesse ganho o The Voice. Mas aqui o palco é dela.

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A todos desejo uma boa semana a começar já por segunda-feira.

3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ai UJM qualquer dia tem de ir turistar por Lisboa, já tenho saudades, de caminhar até mais não, de bater chapas às belezas e como a menina tenho um especial gosto por ver gente e gente de latitudes várias.

Sempre belas as suas fotos.

Uma semana em grande.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Lisboa nestes dias em que o sol aparece de mansinho, com uma luz que só ela, fica linda. E em festa. tanta gente, tanta cantoria nas ruas, tão bom.

se vier e fizer fotografias depois tem que me mostrar, ouviu...?

Abraço.

Dias felizes.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ah, claro!

Um rico dia