domingo, maio 19, 2019

Viver num mundo paralelo





Madruguei, salvo seja, para ir à cabeleireira. Quando liguei, só havia hora para a tarde o que cortaria o dia. Ficou mas pedi que, se houvesse alguma desistência, me avisasse. Ligou há dois dias a dizer que a primeira cliente do dia tinha adiado por uma semana. Ao sábado ter que me levantar tão cedo é contranatura e violência gratuita mas, enfim, era a hora que estava livre, fui. Quando lá cheguei ainda o salão estava fechado. Arrependi-me de ser tão bem mandada, bem podia ter dormido um pouco mais. Paciência. Fiquei sentada no parapeito da montra.

Quando ela chegou não refilei. Coitada. O dia todo de pé, sem horários, não deve ser fácil. E é uma simpatia, discreta, contida, boa profissional. 


Quando viu a ficha, disse-me, com ar admirado, que eu já lá não ia há alguns meses. Até para mim foi surpresa, não pensei que tivesse passado tanto tempo. Depois, ao pegar-me no cabelo, disse que já tinha perdido o escadeado, que já estava sem corte, que estava com muito volume e pesado e que não sei quê, não sei que mais. Ou seja, cá para mim estava a tentar que eu confessasse. Mas não me denuncio facilmente. Não confessei que tenho cortado o cabelo em casa. Mas o cabelo cresce-me muito e, volta e meia, tenho vontade de me recondicionar toda, a começar pela cabeça -- e lá vai disto. Portanto, ter corte até tem, tem é dos meus, tesourada aqui, tesourada ali.


Aproveitei foi para o de sempre, para me atirar à literatura ali residente para pôr a fofoquice em dia. Revistas variadas. O problema é que cada vez mais conheço menos daquela gente. Ou são de telenovelas que não vejo ou de programas da manhã ou da tarde que também desconheço. E uns são ex de outras e namoram numa revista e desmentem na seguinte e são amigos para a vida numa outra. E há desaguisados que metem baptizados e não se percebe se a mãe da criança convidou a namorada do ex-marido e se as indirectas da namorada no facebook são directas para ela ou se para a geral ou se é mera filosofia. E depois, para minha surpresa, vejo o Conde rodeado de duas putativas namoradas de um agricultor e, quando aprofundo, leio que uma descobriu sms de uma com o Conde e que ficou sentida e prefere afastar-se. E quando ainda estou a refazer-me, sem perceber nada, vejo uma outra que foi descartada por um agricultor agora a namorar com um dos que casou à primeira vista. Sem perceber, perguntei: 'Mas afinal passam de uns programas para outros e só desistem quando casam mesmo?'. Ela disse-me: 'Numa era destas, como é que as mulheres se sujeitam a isto, a entrarem em programas destes, serem escolhidas?' e eu disse: 'Mas, do que percebo, as que não foram escolhidas num programa, vão tentar a sorte com os ex-maridos à primeira vista do outro programa...'. Ela disse, resoluta: 'Isso não sei, não tenho tempo para ler as revistas. O que sei é que o pior de tudo é o da TVI, em que são as mães que escolhem para os filhos. Só consegui ver um bocado, uma vez. Um disparate que não imagina, até revolta, desliguei logo'. Eu confessei que esse não conhecia, deve dar a horas a que não apanho. Expliquei que, no campo, sem cabo, ao sábado à noite, volta e meia, à falta de melhor alternativa, vejo um bocado daquilo do agricultor e que é coisa de doidos, mulheres aparentemente normais a sujeitarem-se a andar a disputar um namoro com outras. Uma coisa do além. Mas agora vê-las aparentemente a tentarem a sua sorte com outros de outro programa ainda me faz achar que tudo isto é ainda mais rocambolesco e que a televisão e as revistas e tudo isto é um nonsense pegado.


Quando ela, de escova e secador na mão, me perguntou se era como sempre, despenteado, eu disse que sim, claro. E daí até estar despachada foi um ápice pelo que nem tive tempo de digerir esta minha condição de marginal. Quando leio estas revistas -- e gosto de folheá-las para me certificar disso -- concluo sempre o mesmo: há um mundo paralelo àquele em que vivo. Aliás, há muitos. São mundos habitados por pessoas diferentes das que conheço, que pensam e agem de forma oposta à minha. Votam como eu e o seu voto vale tanto como o meu. E, no entanto, eu e esses seres somos perfeitos estrangeiros. Não falamos a mesma língua, não temos os mesmos hábitos, não perfilhamos os mesmos valores. Aparentemente nada nos une.

De lá viemos para cá. No caminho, voltei a mostrar como sou fraca: comprei outra vez o Expresso. Ver a Sophia na capa da Revista fez-me não hesitar. 

Li no carro, li depois de almoço, antes de adormecer, li depois de acordar, li antes de jantar e depois de jantar. Sobre a Sophia e não só. A ver se para a semana nada me tenta porque isto não pode ser.

E já passeei ao vento, já fotografei, já me maravilhei com a beleza de todas as florzinhas, e já fiz uma máquina de roupa que secou ao vento e já limpei o pó e já zaragateei comigo mesma por nunca ter tido coragem de acabar com este acabamento rústico das paredes que faz com que as teias de aranha se infiltrem nas rugosidades e já senti aquela sensação boa de fazer a cama com roupa de lavado, acabada de colher, ainda transportando o vento e a sol.

E fotografei estes frutos cheios de luz e doçura e a seguir comi-os e, portanto, é assim que me sinto agora, doce e cheia de luz. Mas isto sou eu a dizer, claro.


E estou a ver o Sexo e a Cidade 2 e o Mr. Big continua cheio de charme e passa das duas e meia da manhã e eu gosto tanto da noite, de aqui estar neste dolce fare niente, a escrever coisas de nada. E, de madrugada, hei-de despertar ao de leve para abrir a janela e deixar entrar o cantar dos pássaros e a frescura do alvorecer e vou bendizer a vida e vou sentir a felicidade de respirar este ar tão bom e tão cheio de paz aqui neste meu mundo paralelo, e voltarei para a cama para adormecer e dormir até a manhã ir alta porque não há coisa melhor do que dormir até tarde numa manhã de domingo.

(Quer dizer, haver até há. Mas faz de conta que não para o texto poder acabar em beleza)

3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Então ontem deu uma de Lola Rocha, hahaha.
Eu também já cheguei a dar uns toques no cabelo entre os cortes oficiais.

Essas cenas da TVI diz que são verdadeiros casos freudianos, uma coisa indescritível.
Eu não deveria ficar abismado com tanta miséria existencial, porque sei como ela se configura, mas há com cada aventesma que não dá para deixar de surpreender.

E as revistas de quadrilhice que dantes só mostravam vidas de sonho, até as escandaleiras tinham ares de romance dos bons, entretanto descobriram a fórmula Albarran e as subcelebridades...

Um rico domingo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Até tive que ir conferir: quem é a Lola Rocha???? E já me fartei de rir. É isso! :)))))

Folheia-se aquilo e é um pesadelo. Ou são resumos das telenovelas e é tiro, facada, pancada, violação, abandono. Ou sáo tricas entre gente que não conheço, acusações, trapalhadas.

Charme, romance, casas bem decoradas, nada. Só má onda, confusão. Não percebo porque é que fazem revistas destas nem quem é o público alvo.

E essa do Albarran também é boa, já nem me lembrava. Mas é mesmo isso.

Que boa e interessante memória a sua...

Uma bela semana para si, Francisco.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Olá UJM,

A Mulher do Senhor Ministro, pois claro, hehe.
A minha tia, a dos panelões de sopa, foi a cabeleireira da série a partir do meio da primeira temporada, normalmente levava as perucas para casa para as arranjar, por isso conheci pessoalmente as ditas cujas :D

Saudades da !Hola! quando era !Hola!...

Anos 90 é comigo!

Merci e uma rica semana também.