terça-feira, outubro 09, 2018

Ninguém nos pode parar.
["Seria incapaz de amar um filho homossexual" - palavras de Jair Bolsonaro, o preferido de muitos milhões de Brasileiros]


No outro dia recebi, via YouTube, notícia de um novo vídeo da União das Tribos. Fui vê-lo. Curioso: justamente no dia em que pessoa amiga me disse que tinha estado a almoçar com um conhecido nosso que eu pensava que ainda estaria a viver em Berlim.

Vendo o filme perceberão melhor a relação com o que vou escrever a seguir.


Como ontem referi, vou escrever com pinças. Não quero que alguém consiga saber de quem vou falar.
Lembro-me sempre de que uma vez escrevi aqui um texto violento, insurgindo-me contra uma situação que muito me abalou. Pelo tema que era, não disse o nome da pessoa envolvida nem, em meu entender, disse fosse o que fosse que a pudesse identificar. Mas penso que deixei transparecer o meu asco por quem tinha praticado tais actos. Pois bem: no dia seguinte recebi um mail da dita pessoa. Fiquei estupefacta. Era uma carta sentida. Dizia que se tinha reconhecido no que eu tinha escrito. Negava o seu envolvimento no caso e dizia que, de tudo aquilo pelo que tinha passado (e era muito), nunca nada o tinha feito sofrer tanto como as minhas palavras. Quando acabei de ler o mail, eu estava petrificada. Poderia ser que ele estivesse inocente? Seria possível que estivessem todos enganados, acusando-o injustamente, e que eu também estivesse a cometer uma tremenda injustiça? Li e reli. Eram palavras toldadas pela mágoa e nelas reconheci a verdade.
E, no entanto, relendo as minhas palavras, ninguém poderia adivinhar que era ele. Só ele. Escusado será dizer que fui alterar o meu texto e lhe pedi mil desculpas. E nunca mais deixei de me lembrar: toda agente é inocente até prova em contrário. E à Justiça o que é da Justiça. De facto, foi ilibado. De facto, eu e meio mundo estávamos enganados. Nunca me arrependerei o suficiente: como fui capaz de fazer sofrer tanto uma pessoa, ainda por cima uma pessoa inocente?

E nunca mais me esqueci de outra coisa: tem que se ter cuidado com o que se escreve aqui.
Outra vez falei aqui de uma pessoa com quem trabalhei, a pessoa com quem, até hoje, mais aprendi a todos os níveis. Um senhor. Um grande amigo. Aprendi o que é a confiança absoluta. Nunca ninguém confiou tanto em mim. Tinha defeitos e algumas pessoas odiavam-no. Eu reconhecia os seus defeitos mas gostava dele a ponto de tudo lhe desculpar. Nunca conheci ninguém tão inteligente, tão descarado, com tanto sentido de humor. Um sedutor. Um estratega. Um desafiador.
Não referi nome, traços fisionómicos, dados pessoais. Nada. No dia seguinte tinha um mail de uma Leitora que me dizia: conheci a pessoa de que falou, era exactamente assim. E dizia o nome e qual a empresa onde o tinha conhecido. Era verdade. Era ele e de facto, antes de ter trabalhado na empresa onde eu trabalhava, ele tinha trabalhado nessa empresa.
Mas isto para dizer que tenho que ter cuidado quando falo de alguém pois pode essa pessoa reconhecer-se e não gostar que eu esteja a fazer revelações sobre ela.
É o caso.

Conheci esse jovem de que falo lá em cima há uns anos. Discreto, afável, inteligente. Começou a progredir. Toda a gente lhe reconhecia valor. Passou a viajar bastante, em serviço. Era muito eficaz e alguém em quem se podia confiar para levar a cabo missões mais difíceis. Falava inglês fluente, tinha à vontade a falar em público. Low profile mas seguro, tranquilo. Almocei várias vezes com ele. Boa conversa, simpático. Os outros homens contavam viagens comuns, relatavam feitos. Sempre discreto, ele era um bom parceiro. Nada exibicionista mas também não excessivamente reservado. Lembro-me de um jantar no Porto, num restaurante escolhido por ele, o vinho escolhido por ele. Tudo irrepreensível.

Até que, um dia, um outro com quem tenho uma relação de uma certa cumplicidade, me disse: 'Cá para mim ele é gay'. Achei um disparate. Protestei: que disparate. Nem sinal disso. Nem um trejeito, nem um maneirismo, nada, nada, nada. Ele disse-me: 'Fui a um bar na sexta à noite e vi-o, numa mesa ao canto, estava com outro e tinham a mão em cima da mesa, como se estivessem prestes a dar a mão. Não me viu'. Achei uma conclusão despropositada. Às tantas tinha calhado porem o braço na mesa e ele ali, logo, a lançar tal suspeita. É que nunca, nunca, nada, nem uma forma de rir, nem um olhar suspeito, nada. 

De quando em quando, voltava à carga: 'Nunca se lhe ouve uma palavra de uma namorada, nada. Nunca nem uma palavra da vida privada. Não acha esquisito?'. Respondia: 'Não. Não acho nada. É discreto. E faz ele bem'

Pois bem. Continuou a sua justa progressão profissional, sem ninguém saber o que quer que fosse da sua vida. Sabia-se apenas que vivia num belo e caro apartamento numa das melhores zonas de Lisboa.

Até que um dia, do nada, a novidade estalou: demitiu-se. Pasmei. Toda a gente pasmou. Perguntei: Mas porquê? O que aconteceu? Faz aquilo de que gosta, parece sempre tão motivado, ganha tão bem. Disseram-me: 'Diz que vai viver para Berlim, diz que vai ter com a namorada. Diz que lá ia de vez em quando, ao fim de semana, mas que quer ir viver para junto dela'. Perguntei: Mas tem lá trabalho? Que não, que ia sem nada, simplesmente queria fazer lá a sua vida, e que arranjaria qualquer coisa. Fiquei admirada. Eu e toda a gente. Se houve ascensão meteórica, foi a dele. Toda a gente reconhecia o seu valor e era recompensado principescamente.

Mas foi.

Há uns anos. Esqueci-me dele. Pois bem, para minha surpresa, disse-me agora o meu amigo: 'Sabe com quem almocei?' E contou: 'Regressou. Telefonou-me. Fomos almoçar'. Perguntei: Mas então? O que aconteceu? Ele explicou-me: 'Parece que não conseguiu arranjar trabalho que lhe agradasse. E parece que o namoro também não correu bem. O não ter trabalho fez com que as coisas se degradassem. Voltou sozinho. Está a tentar montar a sua própria empresa'. Pensei logo que, se quisesse voltar, teria as portas abertas. O meu amigo disse: 'Também lhe disse isso mas ele disse categoricamente que não'.

Fiquei calada, sem perceber.

O meu amigo disse-me, então: 'Eu tinha razão. Ele é gay. Ele não diz nada e eu também não falo nada. Uma amiga contou-me. Contou-me que não era uma namorada coisa nenhuma em Berlim, era um namorado. Contou-me que ele saíu de cá porque vivia apavorado com medo que descobrissem'. Respondi: Mas que mal teria? Ele disse-me: 'Reconheça: é um meio conservador, machista. A minha amiga disse-me que ele não conseguia imaginar o que pensariam quando descobrissem. Tornou-se insuportável para ele manter a capa, esconder. Não conseguia mais. Ele diz que nunca ninguém desconfiou mas ele tinha horror de que um dia percebesse uma piada, de que desconfiasse de que os outros sabiam e falavam pelas costas'

E eu fiquei a pensar como deve ser horrível a vida das pessoas que se sentem obrigadas a esconder a sua natureza com medo da rejeição.


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A afirmação completa de Jair Bolsonaro, o candidato mais votado nas eleições do Brasil, é a seguinte:
"Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí" 
Bolsonaro, a par de Trump e de outros, é mais um caso extremo entre os políticos civilizados do nosso tempo --  mas a verdade é que a maioria dos votantes brasileiros escolheu-o a ele. E, para angústia dos democratas e das pessoas que prezam a liberdade e a tolerância humanista, pode acontecer que seja o próximo presidente do Brasil. 

Terá, com ele, milhões de pessoas que apoiam as suas ideias cavernícolas e assassinas. Parece mentira, parece uma loucura -- mas é o mundo perverso em que vivemos, um mundo a ser devorado pelo populismo.

Qual a vida das pessoas como aquele meu conhecido que, apesar de viver num meio civilizado e tolerante, teve medo que descobrissem a sua orientação sexual e fugiu? Como será para um homossexual viver num país presidido por um perigoso troglodita como Bolsonaro?

Quantos se esconderão atrás de máscaras --  em segredo sussurrando as palavras do refrão de 'Ninguém nos pode parar'?

Vamos fugir
Vamos deixar que as estrelas nos guiem
Vamos tentar
E começar noutro lugar
E vamos fugir
Vamos deixar que as estrelas nos guiem
Vamos lutar
E encontrar outro lugar 


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Não levem a mal que hoje não responda aos vossos comentários (e que bons eles eram...). O meu dia não foi fácil e, ainda por cima, foi longo. Cheguei a casa muito tarde e muito cansada. E ainda quero forçosamente tratar de um assunto profissional antes de me ir deitar; e, como um mal nunca vem só, amanhã tenho que madrugar. Por isso, desculpem-me mas não consigo. Se amanhã tiver a cabeça mais fresca, tentarei responder.

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3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Nada pior que gente que para sobreviver emocionalmente "constrói" uma ideia de omnipotência, um castelo de cartas que para ser mantido necessita de outros como alvos projetivos do que é percecionado pelo (doente) mundo psíquico como inferioridades - é aqui que temos o racismo, o elitismo, o sexismo...

Cá estamos nós, os felizes imperfeitos humanos, para o combate pela liberdade, igualdade e fraternidade.

Maria Santana disse...

Que tristeza!

Janita disse...

Pior do que conviver com o preconceito alheio, é viver com o próprio preconceito!
Esse seu amigo, UJM, não soube aceitar-se. Daí, o medo de não ser bem aceite pela sociedade.
Esta é a minha opinião e não arredo pé!

Quanto ao resto...tristes daqueles que renegam o próprio sangue.
Só um desalmado seria capaz de uma afirmação como a que fez Bolsonaro.
E por aqui me fico!



Um abraço.