Não é novidade, tenho-vos contado. Não gosto de decorar. Decorar = Fixar = Marrar. Não gosto. Nunca gostei. Enquanto estudei era o meu calcanhar de aquiles. Tudo o que fosse de decorar era um castigo. Não dava. Não que não tenha boa memória. Acho que, de certa forma, até a tenho. Mas selectiva que só ela. É o que ela quer. Nunca tive motivação para a forçar. Era assim. Continuo igual. Gosto de descobrir. Não gosto de mal-habituar o cérebro. Tudo há-de ser degustado como numa primeira vez.
E já nem sei se é causa ou consequência: se não me lembro porque a memória é de má qualidade ou se é por ser de qualidade de me deslumbrar de forma quase infantil que a memória já se acomodou a ficar a leste. Nunca consigo lembrar-me de citações, de títulos de livros ou canções, nunca nada em que possa mostrar que sei alguma coisa. Mas, se calhar, porque nunca me esforcei.
A verdade é que espreito paredes e gestos, paisagens e pássaros, rostos e poemas como se nunca antes tivesse visto coisa que se parecesse. O meu marido agasta-se, não quer que eu esteja sempre a parar ou a abrandar para ver ou fotografar porque acha que já o fiz mil vezes antes. Mas eu acho que é sempre novo. Porque a luz é diferente, porque a envolvente é outra. Por mil motivos. Ele acha que é por mil maluquices. Não discuto. Não sei explicar. Só sei que é assim.
Sei de pessoas que perderam a capacidade de se deslumbrar porque se lembram de tudo o que conheceram antes e já nada lhes parece novo ou à altura do que aconteceu nos primórdios, nomeadamente na Grécia Antiga. Eu sou o oposto: laboriosamente cultivo a ignorância. Nem shazam nem bases de dados de coisa alguma, nem nada. Ler e ouvir às cegas, como se tivesse nascido naquele instante e nada mais esperasse do que conhecer o mundo.
Mas, claro, isto sou eu a dizer. O cérebro, apesar do meu esforço, regista e classifica algumas coisas e, portanto, volta e meia dou por mim desatenta em relação ao que a minha cabeça, por si, decreta ser déjà vu.
Portanto, não tenha dúvidas de que ignoro mais de metade do que me é dado conhecer: por cegueira, desatenção ou preguiça.
Arte, música, palavras. Quantas vezes passei por situações que, se atenta, me vergaria de admiração e que, por desatenção, as ignorei? Mil vezes. Mil vezes por dia.
Mas, pensando bem, a responsabilidade não é só minha. Sempre me questionei sobre isto, sobre a nossa incapacidade para abarcarmos toda a realidade ao nosso alcance e para a processarmos de forma abrangente. E agora fiquei a saber que, para que o click se dê e para que a coisa nos agarre tem que haver um misto de logos, ethos e pathos.
Fosse eu uma rapariga esperta e desenvolveria o tema. Mas não sou. Portanto, limitada que sou, cedo o passo a quem melhor o possa explicar.
Fosse eu uma rapariga esperta e desenvolveria o tema. Mas não sou. Portanto, limitada que sou, cedo o passo a quem melhor o possa explicar.
O que Aristóteles e Joshua Belle nos podem ensinar sobre a persuasão
E, agora, abaixo, Joshua Bell, o conhecido violinista, explicando o que se passou. A coisa não é de agora mas é interessante e intemporal: depois de encher salas de espectáculos com devotos que iam para o ouvir tocar (a ele e ao seu fantástico Stradivarius avaliado em milhões), em que ninguém discutia os 100 dólares por bilhete, aceitou fazer a experiência de ir tocar para o metro em Washington, D.C. Tocou durante 45 minutos as mesmas músicas que tinha tocado uns dias antes, incluindo Bach. Contudo, ninguém parou e apenas algumas pessoas lá deixaram umas moedas. Desprezo absoluto.
Tempos depois repetiu a experiência mas, desta vez, tendo anunciado que ali ia tocar. A estação encheu. Foi o delírio.
Joshua Bell na Estação de Metro de Union Station em Washington, DC
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O mesmo aconteceu com obras de Banksy vendidas no Central Park há um bom par de anos. Vendidas a preço de uva mijona. Obras que normalmente são vendidas por cerca de 20.000 estiveram à venda por $60. Pois bem. Ninguém quis saber. Pouco se vendeu. Provavelmente, outra vez, a aquela 'cena' do Aristóteles.
[Sempre os gregos, caraças...]
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Imoral da deshistória: por involuntários preconceitos, limitações intelectuais, deformações a nível de percepção ou por falta da conjugação certa das circunstâncias, mais de metade do que seriam opções válidas de interesse são, por nós, descartadas sem que, sequer, disso nos apercebamos.
E mais não digo.
E mais não digo.
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Fotografias feitas in heaven.
Lá em cima é Je crois entendre encore de Bizet interpretado por Joshua Bell.
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