quarta-feira, novembro 23, 2022

The green fields of heaven

 


Acho que não há grandes novidades tirando as desgraças de sempre e dessas, tão tenebrosas me parecem, não consigo falar. 

O meu dia foi de trabalho e teve aquelas agruras habituais. Na fase em que estamos, uma fase complexa no futuro da empresa, parece que o pior de algumas pessoas se sobrepõe a tudo o resto. Quando se fala em atitudes tóxicas isso não é uma força de expressão, é mesmo uma realidade. Infelizmente, os episódios de stress ou irritação sobrepõem-se aos de motivação e isso desgasta. Mas é uma fase. Logo passa.

Por tudo isto, prefiro falar de momentos de paz e serenidade. 

O tempo cinzento, chuvoso, tristonho. Às quatro e tal estava escuro, às cinco e tal estava de noite. Às seis e tal fui andar lá para fora, estava noite cerrada. Tive que ligar a lanterna do telemóvel. Mas andar no campo, entre árvores, com tão fraca iluminação não é coisa fácil. Não se vê nada, nada, nada. Pensei que se um javali ou uma raposa saíssem da gruta ou de alguma toca eu cairia para o lado de susto. 

Apesar de tudo, gosto. E chuviscava. Via as gotas a percorrerem os fracos raios de luz do telemóvel. Bonito. Podia ficar ali parada a respirar o ar molhado, a sentir os odores e os mistérios da noite.

A fera tinha ido comigo e, de vez em quando, ouvia-o por perto mas, de noite e ele escuro como é, quase não o consegui ver. A certa altura, chamei por ele. Nada. De repente, ouvi um barulho e um monte de pelo passou a rasar por mim. Estremeci. Era ele numa corrida. Mas não o vi. 

Passado um bocado, ouvi o meu marido lá em cima, ao longe, a chamar por mim. Fui na direcção dele. Achava que eu andar por ali às escuras não era boa ideia. Acendeu as luzes todas à volta da casa e que eu andasse por ali. Dei umas três ou quatro voltas e desisti. Não tinha graça.

À hora de almoço tinha feito um pequeno passeio para fotografar cogumelos. É um fenómeno. Não sei a que ritmo se multiplicam aquelas células mas o facto é que, num abrir e fechar de olhos, aparecem e agigantam-se. Belíssimos. Claro que nem todos são de tipo giga. Há os que são delicados, quase como bailarinas, quase comoventes.

Há outros que parecem umas bolinhas brancas, quase pétalas, outros umas ondinhas quase em rendilhado, folhinhos subtis que embelezam os ramos que se fingiam de mortos. Quanto mistério nestas indecifráveis formas de vida.

Outros são carnudos, quase animais saídos da terra, outros parecem algas, são lustrosos, quase parecendo vindos do fundo do mar. 

Os mais exóticos são uns em campânula brilhante em amarelo exuberante. Mas hoje vi uns que parecem vidros de Murano, de uma delicadeza translúcida. Serão que são deuses? Ou serão simples anjos? São inexplicáveis, etéreos. Fiquei com vontade de me deixar ficar a olhar para tanta beleza, tão efémera beleza.

E os campos estão verdes, verdes. Muito musgo, macio, veludo, veludo, e muitas ervinhas, muitos líquenes. É bom estar entre o verde da natureza. Fotografo o que posso. O tempo não é muito. E há a chuva. Fiquei com os pés molhados, o cabelo molhado. Mas soube-me tão bem. 

Por vezes ocorre-me que se, por uma qualquer fatalidade, eu perdesse o que tenho ou soubesse que, em breve, estaria de partida, talvez me sentisse feliz na mesma, agradecida na mesma. Todos os momentos abençoados que tenho vivido estão inscritos no meu adn de uma forma indelével e são carga suficiente na bateria onde armazeno os meus momentos de felicidade. 


E já nem me refiro aos momentos vividos junto àqueles a quem amo e que trago sempre no meu coração. Refiro-me a estas coisas simples como ver como estão grandes e bonitas as arvorezinhas que plantei tão pequeninas, como é especial o círculo de pedras que imaginei e concretizei (tantas vezes carregando ou empurrando pesos que anos mais tarde mostraram o desgaste que provocaram em algumas das articulações que mais se esforçaram), como se tornou tão fértil a terra antes tão árida, como devem ser felizes os pássaros que aqui habitam.

Estava a andar e a pensar como estão bonitos os verdes campos deste meu paraíso. Depois apareceram-me as palavras em inglês e dei por mim a sorrir. The green fields of heaven. Quem conhece o mundo dos negócios e dos investimentos saberá bem o que são os greenfields projects. E na verdade foi isso que, há uns anos, foi esta nossa aventura. Tudo à nossa disposição para daqui fazermos o que quiséssemos. 

Imaginei caminhos, imaginei escadinhas de pedra, imaginei o lugar para os cedros, o lugar para os pinheiros, lá em baixo dois eucaliptos, os elegantes ciprestes pelos quais me apaixonei a ladearem os caminhos, a pimenteira toda leveza, as azinheiras que já cá estavam sob a forma de rústicos e informes arbustos e que fomos desbastando até se transformarem nas majestosas árvores de hoje. 

Tudo se foi concretizando até que ganhou vida própria. O que agora vejo quando por aqui caminho é, tantas vezes, novo para mim. Devem ter sido sementinhas que voaram de longe e que esta terra acolheu. Tal como os gatinhos, os esquilos ou os pássaros ou os bichos cujas grandes pegadas encontramos e que aqui se acolhem, assim as flores, os cogumelos, os arbustos felizes que por aqui vão construindo a sua vida.


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Desejo-vos uma bela quarta-feira
Saúde. Serenidade. Paz.

4 comentários:

Pôr do Sol disse...

Querida Um Jeito Manso,

Passei a maior parte do dia em analises e exames medicos. Rotinas que se vão espaçando cada vez mais, felizmente.

Obrigada a jejum, cansada, com fome, impaciente numa sala de espera de um hospital publico com a pediatria misturada, pobres anjinhos, tambem eles impacientes, lembrei-me de uma bela invenção que faz tudo. ( Menos pipocas, como diz a minha pequenina).

Procurei companhia no seu blog.

Que bem me soube aquele passeio no seu paraiso!

Gosto da sua escrita, livre. Mesmo que não tivesse publicado fotografias, conseguiria ver todas as cores. Consegui sentir aquela paz, cheirar a erva molhada e até a pureza do ar.

Agora uma brincadeira. Como disse um amigo a um cozinheiro de renome : Continue tem muito jeito.

Obrigada e um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Querida Pôr do Sol,

Ainda bem que os exames se vão espaçando... O que é preciso é que esteja tudo bem. E uma coisa é certa: tem a experiência de ter passado pelo susto e ter conseguido ultrapassá-lo e seguir em frente. Tem seguramente ensinamentos a dar.

Uma coisa que eu gostava de saber é como se deve falar com alguém que está a atravessar o pânico de ter sido diagnosticado com cancro e ainda não saber se vai conseguir acabar com ele. Conheço uma pessoa que neste momento está a passar por isso. Não quero ser intrusiva e estar a perguntar como está e se os tratamentos resultaram ou qual a próxima etapa pois temo estar a obrigar a falar de uma coisa de que se sente medo. Mas temo passar por desprendida e que ele pense que não me interesso. Também não quero deixar transparecer preocupação pois preocupação já ele tem demais. Ou seja, não sei o que é que quem está a passar pela angústia do diagnóstico e o receio de que não se cure precisa ou gosta de ouvir.

E fico contente que o meu passeio por entre os verdes do meu paraíso lhe tenham feito companhia.

E fico contente que me tenha dito. Muito obrigada.

Uma vida longa, saudável e feliz. Boa sorte e felicidade para si e para os seus, querida Sol Nascente!

Um grande abraço.

Pôr do Sol disse...

Querida Um Jeito Manso,

Gostaria de encontrar as palavras certas que a ajudasse a acompanhar o seu amigo. Não é facil lidar com as emoções de cada um.

No meu caso, primeiro desesperei, mas depois de ver jovens, cuja vida apenas tinha começado, a passarem pela mesma situação, senti que nao tinha o direito de desanimar. Conformei-me. Já tinha vivido 60 anos, constituido uma familia. Enfrentei tudo com esperança .

Apreciei o apoio de amigos que ligavam ou apareciam por vezes com um mimo, jantávamos ou tomávamos um chá com naturalidade, faziam-me sentir que estavam comigo e só se falava da doença se fosse vontade minha. As vezes mostrava-lhes o medo que sentia da degradação que viesse a sentir, medo pelo sofrimento dos meus. A amizade permite esses desabafos.

Tudo depende da altura em que é diagnosticado. No inicio é mais facil uma cura.

Como felizmente nos tres casos só fiz químio oral, não sofri as consequencias inerentes à outra mais agressiva. Evitava ter visitas no hospital, não me eram confortaveis.

Se faz alguma cerimonia e nao quer parecer intrusiva, faça naturalmente um telefonema, converse sobre interesses até aqui comuns peça-lhe um conselho mesmo que não necessite. Penso que lhe fará bem.

Um abraço.





Um Jeito Manso disse...

Querida Pôr do Sol, corajosa Pôr do Sol,

Muito lhe agradeço a partilha da sua experiência. Ajuda-me bastante. Não quero mostrar preocupação pois preocupado já ele está ou pena, pois é tudo o que com ele não funciona, mas também não quero demonstrar indiferença. Estar presente quando é preciso, ter a palavra certa, ajudar quando a ajuda for requerida. Deve ser o que se espera dos amigos.

Muito obrigada. As suas palavras são muito importantes para quem passe por aqui e tenha as mesmas dúvidas que eu.

Um abração, querida Sol Nascente!