quinta-feira, fevereiro 28, 2019

O meu vício





Sempre ouvi dizer que os alcoólicos nunca deixam de sê-lo: conseguem é ter força de vontade para deixar de beber. Contudo, têm que manter uma disciplina férrea. Por exemplo, não podem aproximar-se do álcool pois sabem que, se abrirem uma brecha, logo a oportunidade voltará a transformar-se em necessidade e o caldo lá voltará a entornar-se. 

Com o tabaco é capaz de ser a mesma coisa. Deixei de fumar e nunca mais toquei num cigarro. Não sei como seria se abrisse uma excepção. Até pode ser que me soubesse mal e me arrependesse para todo o sempre. Contudo, não arrisco. Na altura, quando a memória estava mais fresca e os gestos mecanizados ainda inseridos na habituação, sentia a falta de levar o cigarro à boca, sentia aquela falta de, em determinadas situações, aliviar a tensão através das longas inspirações e expirações. Mas não cedi. Todos os dias, quando entro ou saio no escritório, passo por pessoas que estão num recanto ao ar livre junto à porta que separa o edifício do estacionamento. Fumam. Uns estão sozinhos, meditando, soltando longas baforadas, outros estão aos pares, conversando. É inevitável que aspire algum do fumo que paira no ar. Não me desagrada aquele cheiro embora me incomode um pouco a perspectiva de estar a inalar ar poluído. Nunca me senti tentada a pegar num cigarro e matar saudades. Penso que, se calhar, nunca fui verdadeiramente viciada no tabaco. 

Tenho ideia que isto de uma pessoa ter vícios é coisa genética, uma propensão para se ficar agarrado e, se não for isto, é aquilo. Uma adicção, uma tendência inelutável para a dependência.


E é isto que sinto com os livros. Sei que, para mim, a solução é não me aproximar das livrarias. Sei que, estando eles por perto, caio na tentação, cedo ao vício.

Penso que talvez seja como com os cigarros: eu dizia e sentia e tinha a certeza de que no dia em que decidisse deixar de fumar o conseguiria e que seria para sempre. Só que esse dia levou trinta anos a chegar. Talvez o dia em que ficarei indiferente aos livros ainda esteja para chegar.

Mas reparem nos meus mixed feelings em relação a isto. Parece que digo uma coisa e o contrário. Não consigo ter certezas. E isto porque com os livros não consigo ter opiniões muito racionais e, na verdade, não tenho claro que esta dependência seja demolidora para mim e que fará sentido cortar de vez com a vontade de ter novos livros.

Quando comprei as últimas estantes e reorganizei a biblioteca, deixei aqui, ao meu lado, fora das estantes, uns quantos livros, uma meia dúzia. Entretanto, já se transformou numa pilha bastante jeitosa e, um dia destes, ficará arriscado continuar a pôr os novos em cima dos outros.


Andei de umas para outras, hoje, com música boa na antena 2 enquanto conduzia, momentos tranquilos. Mas, nos entretantos, cenas agitadas, aquele stressezinho macaco que só não é maior porque, com o tempo, aprendi a cultivar um saudável distanciamento. Mas, à hora de almoço, tombei. A culpa foi do Jorge Carreira Maia que veio trazer notícia de um livro novo de Mathias Enard. Em tempos o Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes tinha-me cativado. Com a referência dele a este livro, fiquei curiosa. Fui à livraria só mesmo para ver, para folhear. E para ver se o tradutor era o Pedro Tamen. Pedro Tamen a traduzir um livro é atestado de coisa boa.

Fui. Não estava no escaparate. Procurei na estante, na devida ordem alfabética. Lá estava. Fui conferir. Não escondo a decepção. Não era Pedro Tamen, era Ana Cristina Leonardo. Fiquei na dúvida porque nunca avaliei a qualidade dela nesta vertente mas, enfim, muito má não haverá de ser, sosseguei-me. Ou seja, resolvi apostar. E jurei: só este.


Mas, ainda assim, já que lá estava, até pareceria desconsideração não prestar uma atenção ao que por ali chamasse por mim. Mas sempre bem comportada, selectiva, superior -- ceder a tentações nem pensar. Com a Bússula na mão, melhor orientada não podia estar.

Até que vi Uma lágrima que cega. Na contracapa: 'o vinho sem ti é água' e 'sem ti a água não arde'. Senti que começava a salivar. Folheei. Aquela coceirinha boa da atracção. Casimiro de Brito armado em prosaico. Peguei. É só mais este.

Depois vi o Kaiser icónico em black e white. Paris Photo by Karl Lagerfeld. Folheei. Bom demais. Impossível deixar para trás. Uma coisa mesmo na base do dever.

Já com os três livros, pensei que tinha que fechar o espírito e sair de lá. Mas, no caminho, ainda um outro: Photographers A-Z. Conferi. Útil demais.

E, portanto, aqui os tenho comigo e tenho estada encantada como se tivesse ganho o melhor presente do mundo, como se tivesse descoberto um tesouro raro com jóias muito preciosas. Livros tão bons. Uma companhia tão boa, tão gratificante, uma sensação tão boa. Uma fotografia especial, uma conjugação de palavras tão perfeita.


Penso: se isto é vício, porque é que não me curo? Porque é que não me arrependo?

Mas não sei responder. Quando era ainda muito pequena descobri a emoção que pode vir dos livros e essa emoção não se esbateu ao longo do tempo. É a mesma. É maior.

E é total: não são apenas as palavras ou as imagens. É também a elegância da paginação, é o toque do papel, é o cheiro do papel impresso, é a beleza da capa. É a infindável magia das palavras mas é também o prazer de ver, de tocar o objecto livro.

Gostava de poder partilhar convosco um pouco destes livros mas não é fácil pois um livro é um todo, não um excerto. Se fosse mais cedo talvez, apesar de tudo, o fizesse mas, assim, não o farei.

São caros os livros e percebo bem que, quem não tem muitas posses, não pode dar-se ao luxo de gastar tanto dinheiro neles. Mas depois penso: quantas pessoas não podem comprar livros mas conseguem ter dinheiro para os cigarros? E não faço ideia mas imagino que devem estar bem caros. Portanto, vício por vício talvez seja preferível este dos livros: não faz mal à saúde e fico com preciosidades ao meu dispor.


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As fotografias fazem parte das melhores do The Sony World Photography Awards 2019

E a música é de Max Richter - Mercy 

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Um dia feliz a todos

9 comentários:

Anónimo disse...

O livro já não é uma novidade, foi Prémio Goncourt em 2015 e saíu cá em Agosto de 2016.
Mas foi uma boa compra, tal como os outros: um livro é sempre uma boa compra.
E o Max Richter é sempre uma boa escolha ;)
Boas leituras!

Isabel disse...

Somos duas! Também não posso entrar numa livraria, nem que vá cheia das melhores intenções! Não resulta. Paciência. A vida não são só obrigações, não é?...

Beijinhos e bom fim-de-semana:))

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A questão das dependências tem sempre uma história, mas em geral corresponde a uma disrupção no sistema motivacional, que coloca a obtenção de prazer no topo das necessidades.

Livros e música são de outro campeonato.

Rico dia.

Anónimo disse...

É curioso, mas também já tive duas dessas tentações. Embora, com o tabaco nunca fosse além de 1 maço por dia e isso foi já no limite. Fumava, digamos, uns 10 cigarros por dia. Um dia, os meus filhos me propuseram que eu parasse de fumar. E assim fiz, de um dia para o outro. Custou-me? Custou, sobretudo quando via alguém a fumar, ou, por exemplo, uma cena no cinema em que um dos actores fumava (hoje é politicamente incorrecto alguém aparecer a fumar num filme, embora seja politicamente correcto, por exemplo, vender armamento ao regime facínora saudita, responsável pelo genocídio no Yemen. Enfim!). Isto ocorreu há uns 20 anos (julgo que agora tenho os pulmões limpinhos, com o passar do tempo!). Mas, até para me testar, já, muito raramente, fumei um ou outro cigarro e até retirei prazer nisso, mas nunca mais tive a tentação de voltar a fumar. Para mim, aquela minha decisão de há 20 anos foi definitiva, no sentido de nunca mais voltar a ter o hábito de fumar.
Com os livros, passei, desde há também uns tantos anos, a seguir a seguinte receita – que resulta, pode crer, UJM: só compro livros que sei que vou ler. Que gosto de ler mas que terei, acima de tudo tempo e disponibilidade para os ler. Nunca mais comprei mais do que o que vou poder ir lendo. Os que possuo cá por casa, já os li quase todos e tenho bastantes. Julgo que neste tipo de coisas, a combinação de disciplina e (força de) vontade em tomar uma decisão é a solução.
Todavia, convenhamos que não vem mal nenhum ao Mundo se alguém não consegue controlar, digamos, o vício de comprar livros: não faz mal à saúde (a não ser da bolsa, se for limitada), satisfaz os livreiros (ainda bem), alivia o stress de um dia de trabalho árduo, e se calhar alegra os produtores de mobiliário em S. João da Madeira (por terem de fazer mais estantes), tudo bons efeitos colaterais. Já o do tabaco faz mal, engorda as indústrias tabaqueiras, é uma sobrecarga para o SNS e incomoda muita gente.
Boas leituras, que só fazem bem!
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a,

Pois, pensava que a Bússula era recente mas tem razão. Estou com muita vontade de lê-lo. Mas sou um bocado exigente com traduções e ia naquele engodo de ser outra vez o Tamen. Não sabia que a Ana Cristina Leonardo era também tradutora. Espero que tenha feito um bom trabalho. Um mau tradutor destrói um livro. Dantes, quando lia o Expresso, gostava de ler as crónicas dela.

Quanto aos ouros, também estou expectante quanto ao do Casimiro de Brito. O de fotografias escolhidas pelo Lagerfeld tem algumas muito belas e outras surpreendentes.

Obrigada pelo seu comentário.

E uma boa sexta-feira.

Um Jeito Manso disse...

É isso mesmo que penso, Isabel. A vida não é só trabalho e deveres.

Tenho, aliás, um pensamento íntimo que aqui confesso: venho a sair da livraria, a pensar que lá cedi de novo à tentação e, para aliviar a consciência, ponho-me a pensar que mereço, que é um presentinho que me ofereço porque bem mereço. E, mentalmente, faço contas: se fumasse, se só lavasse a cabeça no cabeleireiro, se fizesse 'nails' e coisas assim, gastaria ainda mais dinheiro e ficava era com nada. Assim, é um investimento, os livros perduram para todo o sempre.

Mas, enfim, são pensamentos à toa pois, na verdade, o prazer de ter livros é um prazer nobre e não há coisa mais intemporal e mágica nem melhor companhia do que um livro.

Uma 6ª feira feliz, Isabel!

Um Jeito Manso disse...

Olá, Dr. Francisco,

Não apenas sabe da coisa como sabe bem expô-las. É isso aí que diz, isso das dependências, essa fragilidade da pessoa face ao que espera alcançar.

E os livros, tem toda a razão, os livros são mesmo outra coisa, são companhia e superação e felicidade. E a música também, claro.

Uma 6ª feira muito boa para si, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Havia na empresa uma médica que era fumadora que dizia que até 10 cigarros por dia o organismo aguentava. Por isso, sempre tentei não passar os 10. Mas, por fim, já sentia que aquilo, apesar disso, não dava saúde nenhuma.

Com os livros eu gostava de ser disciplinada assim. Mas eu sou indisciplinada por natureza. Desalinhada. Uma grande tendência para a irreverência. Isso de pensar que não deveria comprar outro livro enquanto não tivesse lido o último não é coisa para mim. Leio um, folheio outro -- tudo na base da indisciplina, mesmo.

Sou um caso perdido. A sorte é que não alimento sentimentos de culpa. Sou assim e recomendo-me. Ou melhor, não me recomendo. Vai dar no mesmo, não é?

Uma bela 6ª feira, P. Rufino.

Isabel disse...

Parece eu a pensar, quando saio da livraria!!