sábado, janeiro 26, 2019

Uma mulher normal cuida das vestes das mulheres ideais
-- E faces, selfies, filtros e fantasias levadas a sério --


Só posso dizer que sou uma mulher normal. É quase meia-noite e estou com muito sono. 

Chegámos há pouco e, tal como os bebés quando estão cansados, também eu, quando me apanho num carro a andar (e não estou a conduzir), logo me dá o sono. Só que o meu marido parou para abastecer e não cheguei a adormecer e, durante o resto da viagem, estava quase mas não adormeci mesmo. Quando me sentei aqui no sofá depois de me ter descalçado, tirado os brincos, o colar, a roupa justa e etc e me pus à vontade, fiquei com frio. E o meu marido já pôs lenha ali na salamandra e o aquecedor a óleo também já deita quentinho. 

Mas não chega. Então fui buscar a manta grande e quentinha que estava na cadeira de balouço e embrulhei-me toda nela. É assim que estou agora, envelopada em flanela e ovelhinha, com sono.

Sou uma mulher normal. Canso-me. Tanto trabalho, tanto trânsito, tanta reunião, tanta pressa para conseguir chegar a horas, tanta vontade de ter tempo para ler, para escrever, para passear, para descansar.

Tenho muitas ideias, muita vontade de fazer muitas coisas. E pedem-me que as faça. E eu fico contente, porque é o que acho que deve ser feito, porque me sinto motivada. E depois são coisas a mais. 

Podia ser diferente. Mas não seria eu. Não sei ser de outra maneira. A procurar e a encontrar trabalho. O pior é que sou uma mulher normal. Canso-me. Não estico. Preciso de dormir, de descansar. Não sou a fingir, daquelas executivas que não precisam de descanso, sempre em cima, sempre prontas para exigirem, darem o litro, sempre muito bem pintadas, penteadas, calçadas. Eu não. Nada disso.

Estive a ver uma coisa que gosto muito de ver: costura, bordados, trabalhos manuais cuidadosos. Dedos artífices, dedos de mulheres dedicadas.

São as mãos normais de mulheres normais de corpos fortes, pernas e braços grossos, roupas normais, sapatos normais.

Fazem obras de arte para sílfides, sereias, ninfas, fadas aladas, mulheres meninas esguias e etéreas. As mulheres de peles e carnes espessas ajeitam os folhos, as sedas, as rendas, os tules perfeitos, os alfinetes de pérolas, as pedrinhas coloridas dos vestidos das meninas bonecas pestanudas.

Os segredos dos ateliers Dior



Li uma outra coisa muito estranha. Em todas as eras haverá de haver excentricidades, maluqueiras, excessos. Na nossa há muitas. Uma é o culto da sua própria imagem associado  ao mito de  que a beleza física tem que ser perfeita, extrema.

O que li e que me deixou perplexa e um bocado triste: com isto das selfies e dos filtros há muitas mulheres que se viciam na ausência de vincos, rugas, papos, manchas. Modificam a sua imagem, aperfeiçoam-se. Snapchat para todos os gostos: mais bebezinha, mais olhudinha, mais borboletinha, mais gatinha. Até aqui tudo bem. O pior é que depois vão ao médico e pedem que as ponham iguais às selfies transformadas e transbordantes de fantasia. Começam com os botox e essas coisas que relaxam o músculo, depois preenchem rugas e depois vão por aí fora: narizinho fininho e pequenino, olhos grandes e sonhadores, maçãs do rosto lisinhas, redondinhas e lindinhas, queixinho com covinhas, lábios desenhadinhos com perfeição de barbbiezinhha.

A jornalista do Guardian, Elle Hunt, ilustrou com a sua própria imagem.
Me, my selfie and I: a portrait of Elle Hunt, taken in natural light on a digital camera; a selfie, taken on an iPhone without a filter; a selfie, with a Snapchat filter. Photograph: Linda Nylind/Elle Hunt

Ainda não chegámos à fase de fazer bebés a la carte mas já não falta muito.  Ainda se está na fase que, não tarda, será coisa do passado, olhada como uma coisa meio pueril: querer ser iguais à fantasia da nossa cara.

Acho isto uma coisa parva mas, lá está, se calhar falta-me sofisticação, alinhamento com as trends, conhecimento das mais recentes práticas de engenharia social. Não passo de uma mulher normal.

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E agora vou para a cama que isto de estar para aqui a escrever de olhos fechados é capaz de não produzir bom resultado. Desejo-vos um belo sábado e peço desculpa por não ser capaz de responder aos comentários do post abaixo.

2 comentários:

Isabel disse...

Achei o documentário muito interessante. As verdadeiras artistas nunca aparecem.

Para mim que nem pintura uso (só os cremes básicos e um pouco de baton )não compreendo como é que mulheres já tão bonitas ainda querem modificar o rosto para melhor, ou tirar as marcas da idade. Deixam de ser quem são e muitas delas ficam mais feias. Não acredito que consigam ser muito felizes, porque depois nunca estão satisfeitas com a imagem. Mas enfim, são mulheres diferentes; vivem para isso e vivem noutro mundo.

Desejo-lhe um bom fim-de-semana:))

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Questões para um psicoterapeuta e não para um cirurgião plástico.

Viva a feliz imperfeição

Um belíssimo fim-de-semana.