quarta-feira, dezembro 06, 2017

Não sei se vou habituar-me a isto. Juro. Não sei mesmo.




Estou aqui a flutuar que nem vos conto. E, de tanto flutuar, já estou quase almariada. Flutua-se-me o teclado, flutuam-se-me as coisas aqui ao meu lado. Tudo. Uma bailação em nebulado. Que coisa mais horrível.

Conto.

Sou um pouco míope, já o contei. Nada de extraordinário. Não uso óculos senão para conduzir ou estar no cinema. No primeiro caso é mais por sentido de responsabilidade e no segundo por preguiça mental, para não estar preocupada em ouvir cada palavra já que, sem óculos, se calhar não veria lá muito bem as legendas. De resto, não uso. O que não vejo, não vejo, azarinho. 

Uma vez, estava a podar um loendro e, ao puxar uma pernada que estava presa, ela soltou-se de uma maneira tal que disparou na direcção da minha cara e feriu-me um olho. Tive uma dor brutal, pensei que o estupor da pernada me tinha vazado o olho. Nem conseguia tirar a mão do olho e nem conseguia abri-lo, tamanhas as dores. Fui para o hospital, fizeram-me exames, estava ferido, trataram-me e taparam-no. Tinha que voltar ao hospital uns dias depois, podendo nesse dia tirar o penso.
Moro num andar muito alto. Quando vou à janela, vejo o que há para ver mas sem grande definição. Para mim, está bem assim. Estou habituada. 
Contudo, nesse dia, ao ir à janela apanhei um susto. Pensei: 'Que horror, não vejo nada, querem ver que quase ceguei...?' Encostei-me à parede, desconsolada. Tapei o olho bom e espreitei pela janela. E aí fiquei estarrecida. O olho ferido via a milhas. Conseguia ver as matrículas dos carros lá em baixo, mesmo os que estavam mais longe. Nem queria acreditar. Assustei-me com aquele excesso de visão. Tapei depois o olho ferido e pus-me a ver pelo bom. Por esse via mal, como sempre tinha visto. Tinha sido o contraste entre as visões dos dois olhos que me tinha dado aquela estranha impressão de que por um olho via mal. Estava tão estranha que não me arrisquei a ir a conduzir para o hospital. O médico, quando lhe contei o que me tinha acontecido, disse: 'É natural. Mas vai voltar ao normal'. Perguntei: 'O que quer dizer com isso? Vou voltar a ver mal do olho ferido?'. Ele confirmou. Na alura ele explicou mas agora já não tenho a certeza. Tenho ideia que a pancada fez achatar o globo ocular.

De facto, com o tempo, o olho foi recuperando a sua miopia. Mas nunca a recuperou completamente. Portanto, entre os dois, agora vejo melhor ao longe do que via antes desse acidente.

Contudo, ao perto, a coisa tem vindo a perder alguma qualidade. Presumo que seja a isso que se chame vista cansada, com a agravante que o olho que vê melhor ao longe é o que vê pior ao perto. Mas, enfim, vou-me habituando a conviver com a situação e não uso óculos para ver ao perto.

Acontece que no outro dia partiu-se-me a armação dos óculos. Para mal dos meus pecados, a seguradora, para comparticipar os óculos, requer receita médica. Conclusão: fui ao oftalmologista, coisa que não fazia há mais de mil anos.

O médico admirou-se com a minha autogestão visual e recomendou que, para ver ao perto, não esforçasse a vista e usasse óculos. Para o longe pois que gerisse como até aqui já que agora a visão já é melhor ao longe que ao perto.

Lá fui ao oculista. A preocupação, claro, foi com a estética, em especial com a dos de ver ao longe que, neste caso, são escuros. Optei por uns Armani, bem ao meu gosto.

Agora ao perto...? Não me via de óculos. Tipo prof...? Tipo quê...? Ná. Not my kind. Portanto, escolhi uns invisíveis, uns Ray Ban sem aros e umas hastes finíssimas. A menina perguntou se os queria progressivos. Que não, qual progressivos, qual carapuça, só mesmo para ler ou escrever. Ela ainda tentou mas a minha paciência tinha-se esgotado com a escolha dos escuros e, para além disso, pensei que ela estava era a querer facturar. 

Resumindo: quando fui buscá-los e pus os desgraçados de ver ao perto, ia-me dando uma coisa. Só via alguma coisa, se olhasse para baixo e exclusivamente para o que estivesse mesmo perto. Mal levantava a cabeça nem o ecrã do computador conseguia enxergar. Ao longe, então, era para esquecer: uma mancha.  Ainda tentei. Impossível. Ou usava os óculos deprimentemente na ponta do nariz ou só de levantar a cabeça dos livros para dois palmos à frente e já estava toda trocada. Uma turbulência enevoada. Muito mau. Conclusão: tive que admitir que tinha tomado a decisão errada. Tive que dar a mão à palmatória e trocar para lentes progressivas.

Fui hoje buscá-los. E o que vos posso dizer é que é do catano. A menina disse-me: 'Requer habituação. Estão aí três graduações, a de perto, a de longe e a intermédia. Tem que dar um tempo. Tem que os usar para se habituar.'. Fogo. Que desatino.

Estou com eles postos. Se estiver a olhar apenas para o teclado a coisa ainda vai. Se levanto a cabeça para ler no ecrã, tenho que dar um jeito até descobrir a posição em que não me aparece tudo de esguelha, tudo meio a fugir. Se olhar para a televisão, é um disparate. Péssimo. Está a dar o Miguel Esteves Cardoso com o Bruno Nogueira, dois que gosto imenso de ouvir. Mas, caraças, tenho que estar a espreitar pelo canto, a virar a cara de lado, a tentar descobrir qual o ângulo em que vejo qualquer coisa. 


E depois, quando trago os olhos, de novo, para a escrita, tenho que vir de mansinho, toda esgueirada, a espreitar por cima, a espreitar por baixo. Um desatino. Tudo baço, tudo oscilante. Bolas. Coisa mais péssima. 

Será que vou habituar-me a isto? Algum dia...?

Alguém consegue conviver com uma gaita destas dos óculos progressivos? 

Duvido. Duvi-dê-o-dó.


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Acho que vou publicar isto sem tentar ler o que escrevi. Acho que não consigo.
Deve estar uma coisa jeitosa. A menos que tire os óculos. Acho que vou fazer isso. Raios partam a porcaria dos óculos.

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As fotografias são de Juana Gómez

A música é de Edvard Grieg - Lonely Wanderer

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