Dias complexos cheios de assuntos complexos, estes meus.
Claro está que isto é tudo relativo. A minha complexidade vale menos que uma casca de caracol para si, meu Caro Leitor, e vale seguramente também menos que zero para quem esteja doente, desempregado ou se sinta irremediavelmente abandonado. Mas, dentro desta relatividade, a complexidade que teima em querer tomar conta dos meus dias é complexa demais para o meu gosto.No entanto, quando me vejo imersa à força num caldo de complexidade, o meu ser profundo chega a um ponto em que, sem stress e grandes anúncios, diz devagarinho e acho que só eu é que o ouço: que se lixe a complexidade. E, lixando-me eu para a complexidade, arranjo maneira de, por um bocado, geralmente à hora de almoço, saltar fora.
Sabendo disto, e por outras ponderosas razões, só aceito almoços de trabalho se não tiver como me escapar. Caso contrário, é um bocadinho de tempo meu, só meu, e azarinho para o resto.
Pronto. Quero eu com isto dizer que, à horinha em que já estava pelos cabelos e com vontade de mandar bugiar quem se aproximasse com mais gaitas (e digo gaitas para não dizer tretas ou, mesmo, merdas), peguei na carteira e nas chaves do carro e ala moça que se faz tarde.
A hora de almoço foi curta e, para ajudar à festa, foi um filme para conseguir descobrir lugar para deixar o carro. Portanto, o almoço foi naquela base, não mau de todo mas rápido; e ainda a última garfada ia a caminho do esófago, já eu ia a caminho de uma livraria.
Minutos sagrados que me salvaram o dia. No entanto, a realidade teima em querer estragar-me a flanação:eu a entrar e mais um telefonema e mais conversa e mais conversa e logo uma em que não pude furtar-me a dar uma desanda em quem me ligou. Mas mal a desanda estava despachada, já eu circulava entre as novidades e já eu salivava perante os pitéus que ali se me ofereciam. Em momentos assim desaparecem complexidades, maçadorias, ralações. Tudo. Disso não resta nada. Se alguém me abordasse naquele momento e me perguntasse se eu tinha coisas que me preocupassem, espontaneamente diria que não. Durante aqueles breves minutos sou livre, despreocupada e feliz.
Trouxe:
Trouxe:
Nova Antologia Pessoal de Jorge Luis Borges, edição Quetzal
Entrevistas da Paris Review, 3, edição Tinta da China
Que alegria. É como ir a um mercado e descobrir um peixe fresco, fantástico, raro, e umas hortaliças tenras e perfumadas como poucas vezes aparecem e umas frutas maduras, sumarentas, gostosas, a saberem mesmo a fruta, e vir para casa toda feliz da vida, sentindo que o dinheiro gasto foi uma pechincha face à qualidade das iguarias descobertas.
Mas logo tive que ir à pressa para o carro e, mal comecei a conduzir, já estava a fazer outro telefonema e logo, de novo, enfiada até à ponta dos cabelos na complexidade. E depois mais uma tarde daquelas.
Há bocado, já na minha rica casinha, estava a despir-me no quarto e a falar com o meu marido, toca o telemóvel. Pensei que era a minha filha que não me tinha atendido quando eu lhe tinha ligado, ao ir no carro. Quando cheguei ao pé do telemóvel, calou-se. Afinal não era ele. Era aquele com quem tinha falado no carro depois de almoço, que anda enterrado em complexidades ainda piores do que as minhas e com quem estarei numa reunião em que amanhã vamos estar e que, pelo tema e pelos intervenientes, se adivinha extraordinária (para não dizer tendencialmente tenebrosa).
Depois, então, ligou a minha filha. Depois o meu filho. E aí a mãe-galinha que eu, acima de tudo, sou, ficou mais tranquila sabendo-os bons, os meninos também bons, tudo bom (desde ontem...), e já me parecia que, estando o dia a acabar em paz, nem uma só guerra tivesse havido durante o dia.
Há bocado, já na minha rica casinha, estava a despir-me no quarto e a falar com o meu marido, toca o telemóvel. Pensei que era a minha filha que não me tinha atendido quando eu lhe tinha ligado, ao ir no carro. Quando cheguei ao pé do telemóvel, calou-se. Afinal não era ele. Era aquele com quem tinha falado no carro depois de almoço, que anda enterrado em complexidades ainda piores do que as minhas e com quem estarei numa reunião em que amanhã vamos estar e que, pelo tema e pelos intervenientes, se adivinha extraordinária (para não dizer tendencialmente tenebrosa).
Depois, então, ligou a minha filha. Depois o meu filho. E aí a mãe-galinha que eu, acima de tudo, sou, ficou mais tranquila sabendo-os bons, os meninos também bons, tudo bom (desde ontem...), e já me parecia que, estando o dia a acabar em paz, nem uma só guerra tivesse havido durante o dia.
Ser primária tem coisas boas. Aliás, acho que só tem coisas boas.
Entretanto, já jantei e já escolhi a roupa para amanhã, que me levanto cedo, não tenho tempo para grandes experimentações e, nisto, não pode haver lugar a riscos.
Com isto tudo, só há bocado é que consegui sentar-me no sofá e, obviamente, passados uns minutos, estava a adormecer. Talvez cinco minutos mas o suficiente para agora me sentir acordada.
Tenho aqui os dois livros que serão certamente altamente estimulantes. Mas, se agora me ponho a lê-los, sou capaz de adormecer de novo.
Portanto, tenho aqui o Borges ao meu lado e só não me sinto envergonhada por não estar a dedicar-lhe a merecida atenção porque sei que ele, por três razões que me abstenho de explicitar, não me vê. Quanto aos escritores entrevistados, limito-me a passar-lhes a mão pelo lombo. Melhor, pela lombada. Melhor, pela capa. Tem uma textura que me agrada. Tomara que chegue o fim de semana para me atirar a eles.
Tirando isto, o que tenho a dizer é que, enquanto jantava, vi um pouco de uma reportagem sobre os tarefeiros na Saúde e o que tenho a dizer é que nunca percebi estas opções e que, em geral e em abstracto, é tema que me enoja. O mundo derrapou para uma encosta de acentuado declive onde as decisões assentam numa absoluta subversão de valores que nunca podem levar senão ao buraco. Não é só na Saúde: é em todo o lado, não apenas do Estado como em muitas empresas. Recorre-se a empresas de negreiros que exploram mão de obra barata e a vendem como 'serviços'. Não quero falar mais disto aqui porque senão não me calo e o post já vai longo demais.
Também vi um bocado de uma reportagem que me deu alguma satisfação: tinha a ver com o BES e com a possibilidade (presumo que remota) de anular a resolução do BES. Era bonito. Juro que gostava. Sempre achei que a resolução do BES foi uma aberração, uma leviandade, um nonsense pegado, um monumental erro. E gostava, mas gostava mesmo, se as sardinhas voltassem ao prato. Julgo que tal seria já materialmente impossível mas juro que gostava que fosse não apenas possível como mandatório.
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Parece que esta sexta-feira, finalmente, vai haver chuva que se veja. Tomara, que já não se aguenta este tempo mais estranho.
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As fotografias são da autoria de Alex Robciuc
Tom Waits interpreta Strange Weather
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E agora vou ver se acordo a sério para ver se me inspiro para continuar com a historinha que comecei ontem.
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