O PSD até que não começou mal. Olha-se para trás, para aqueles tempos de saudável tumulto e ilimitada esperança, e vê-se um grupo de gente com cabeça e savoir faire. Falavam bem, impunham um certo respeito. Bons tribunos, gente boa de palavra, prosa alinhada, ideias escorreitas. Podia ou não concordar-se mas havia ali uma notória vontade de servir o País e sentia-se que havia elevação. Não eram uns quaisquer: era gente que se sentia ser, maioritariamente, gente de bem.
Mais tarde, alguns, ao envelhecerem, vieram a anquilosar-se e percebemos que, desses tempos, pouco sobrou e que, na verdade, apenas um deles era o esteio do grupo. Dele vinha a nobreza de ideais, o risco desenhado a direito, o corte certeiro, o olhar de águia. Mesmo na forma como conduzia a vida pessoal, percebia-se o desprendimento de quem respeitava as paixões, as alheias e as próprias. Ele foi e é ainda a única e verdadeira referência. Sá Carneiro.
Depois da sua morte, o PSD não mais foi o mesmo. Desencontrou-se. Passou a ter como cola que unia os diversos interesses apenas a apetência pelo poder -- o central, o local, e as administrações nas empresas e institutos -- e, com isso, perdeu a capacidade e o gosto pelo golpe de asa, tornou-se ladino, rasteiro.
Diversas lideranças foram ensaiando estilos mas nenhuma se afirmou nas entranhas do partido. Marcante foi o período Cavaco. Foi a altura em que o PSD virou um saco de gatos que, de vez, aos princípios e aos costumes disseram nada e que, desprovidos de nobres ideais, videirinhamente esfregaram as mãos em torno de subsídios, apoios, formações, obras e mais obras -- para poderem participar na nobre causa de gerir o bodo aos pobres, ou seja, para poderem pôr a mão na massa.
E foram-se sucedendo outros líderes. Nenhum a aquecer o lugar, nenhum a conseguir entrar no coração dos correlegionários, nenhum a estabelecer nova matriz cultural, nenhum a criar escola. Nem Marcelo conseguiu impôr-se tal o emaranhado que encontrou, com armadilhas e alçapões por todo o lado.
Mais recentemente foi Passos Coelho. Uma humilhação para os militantes. Um cadáver político que tarda em poder ser enterrado na cave mais escusa da memória do partido.
Mas não é o único. Lembremo-nos também de Durão Barroso. Outro mau passo. Na verdade, no cômputo geral, da história do PPD/PSD são mais os líderes que os militantes querem esquecer (ou que, mal saíram, logo foram esquecidos) do que os que deixaram saudades.
Neste partido exausto, desenraizado, com as prebendas e as nomeações a rarearem, os militantes de coeur que ainda sobrevivem são já apenas os expatriados intelectuais que sobraram de outras eras e mais uns quantos lunáticos que teimam em imaginar que, nas veias laranjas, ainda corre algum sangue do momento inicial.
Se alguém quiser sequenciar o ADN deste partido não conseguirá fazê-lo: entre o Social e o Popular, as cadeias celulares dividir-se-ão e aquilo do Democrático não passa de uma velha abstração de quem ninguém saberá bem dizer o que significa.
Para conseguir fazer alguma coisa por este partido, tinha que aparecer alguém que viesse para sobressaltar as hostes, que as inquietasse, que fizesse a necessária incisão para daí fazer nascer um novo rumo.
Não será Rui Rio, o soturno homem do norte, nem Santana Lopes, o estroina da capital, que conseguirão fazer renascer o partido de forma a torná-lo, de novo, necessário ao País. Ambos têm os pés enterrados no passado e ambos pensam mais em si próprios do que no País. Querem afirmar-se, citando-se a si próprios, debicando nos outros, o olhar preso ao reflexo que o espelho lhes devolve e as mãos presas à vacuidade que os rodeia -- e isso é nada. Nada.
Ou aparece alguém que consiga perceber que aquilo de que o País precisa é de uma visão moderna de um mundo que é novo e que se afirme com alguma ideia mobilizadora que, de alguma forma, o distinga do ideal humanista, social democrático e socialista (que já tem os partidos da so called geringonça a corporizá-lo), ou será mais uma oportunidade perdida -- e o PSD continuará na rota descendente que o conduzirá inexoravelmente à absoluta irrelevância, um partido de sombras inúteis com um saudoso fundador para sempre emoldurado nas paredes de uma memória cada vez mais longínqua.
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