sábado, dezembro 16, 2023

Os tempos em que meio mundo se reunia via Zoom ou via Teams

 

Ao ler o comentário da Janita, que muito agradeço, não apenas me comovi como fiquei com alguma vontade de recordar os tempos em que tinha a cabeça sempre tão ocupada que conseguia encaixar as preocupações num canto da cabeça que era compaginável com o que se passava nos outros cantos. Nesses tempos, passei por situações deveras complexas e, embora por vezes a grande custo, sempre consegui continuar a trabalhar, gerindo as emoções com pinças mas também com alguma ponderação e a racionalidade possível.

Com a situação que estou a viver agora, uma situação deveras complexa, sinto que estou, na realidade, a ir-me abaixo. O meu filho no outro dia também me disse isso: que estou a precisar de voltar a trabalhar para não ficar entregue, a tempo inteiro, às preocupações. Não sei. É uma situação que me custa tanto, que me abala tão profundamente nos alicerces, que não sei se o trabalho seria suficiente para não ficar entregue a ela a tempo inteiro. Também é certo que o que se passa agora é o corolário do que vem acontecendo desde há algum tempo e que, pela continuidade em crescendo, sem um dia de tranquilidade, provavelmente me esgotou, me deixou fragilizada. Não sei.

Mas a Janita puxou-me pelo braço e a Ana tentou confortar-me, o que também muito agradeço, e alguns leitores têm-me enviado mails simpáticos (aos quais não tenho respondido, pelo que peço desculpa) e, por isso, hoje decidi que ia aqui falar não do que me traz tão preocupada e triste mas dos tempos em que trabalhava de sol a sol sem tempo para coisa nenhuma e com energia e alegria para ultrapassar todos os contratempos e desgostos.

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Em Março de 2020 todas as empresas que puderam mandar os seus trabalhadores para casa o fizeram. Claro que isto se aplicou sobretudo ao sector de serviços pois quem estava nas fábricas, nos hospitais, nos sectores de água, electricidade, comunicações, manutenção, etc., esses tiveram que se manter em funções, alguns deles com mais trabalho que nunca.

As escolas também recuaram para as trincheiras e os artistas foram apeados. 

Tempos difíceis.

Na altura trabalhava em mais que uma empresa e durante não sei quanto tempo trabalhei horas a fio, debaixo de stress, horas e dias consecutivamente. Estava em casa, no campo, em teletrabalho e não tinha um minuto de descanso.

Pela natureza das minhas funções, tinha que fazer muitas reuniões e via-me forçada a ir de umas para as outras sem intervalo, sem tempo para mudar o chip, frequentemente sem tempo para me preparar para elas. Muitos dos participantes estavam também em casa. Mas havia os que estavam em trânsito e faziam a reunião no carro, outros estavam em instalações operacionais e, para fugirem ao barulho ambiente, enfiavam-se em buracos em que quase não havia rede.

Nessas reuniões, em especial nos primeiros tempos, quando as reuniões por Teams ou por Zoom ainda eram uma novidade, acontecia de tudo. 

Uma das directoras estava em casa com o marido e três filhos. O mais novo tinha quatro ou cinco anos e sistematicamente ia agarrar-se à mãe a dizer que tinha fome. A mãe a querer impor a sua vontade perante os colegas ou a negociar e o filho a mendigar uma côdea de pão. Antes de a coisa se consumar, nós víamo-la a enxotar a criança um bocado à sorrelfa, tapando a câmara do computador. Por fim, já éramos todos a solidarizar-nos com o miúdo e a pedir à nossa colega que fosse arranjar qualquer coisa para o filho comer. Outras vezes ouvíamos o cão a ladrar no jardim. Ou à porta de casa que ficava no alinhamento do sítio onde ela estava. Sei que o pastor-alemão ladrava de uma maneira que impedia a reunião. E, então, nessas ocasiões, geralmente víamos o marido passar por trás dela, vindo não se sabe de onde, e escapar-se com cuidado pela porta, certamente para o cão não entrar. E a reunião prosseguia como se nada se passasse.

Outro, com quatro filhos, corria a casa tentando não os apanhar nas aulas deles e, ao mesmo tempo, instalar-se num sítio em que tivesse boa rede. Punha-se sobretudo no piso de cima, num recanto ao topo das escadas. Contudo, era inevitável que, volta e meia, aparecesse algum dos filhos a subir ou a descer as escadas a correr. De vez em quando perseguiam-se uns aos outros, por vezes em tronco nu. O pai tapava a imagem e desligava o microfone e ia tentar impor limites aos filhos. Mas, por vezes, enervado como ficava, esquecia-se e nós ouvíamo-lo a ameaçar correr com todos à bofetada e os putos a protestarem, a queixarem-se uns dos outros.

Uma das cenas mais engraçadas passava-se de vez em quando com um colega que colocava um fundo falso, uns prédios ou umas estantes, já não me lembro. E, de vez em quando, aparecia a mulher, atrás, meia desfocada, num canto, a espreitar para o ecrã, certamente para ver os interlocutores do marido. E nós víamo-lo, com a mão, em baixo, a sacudi-la, a mandá-la afastar-se. E ela desviava-se um bocado mas depois víamos a cabeça dela esticada e ela, de óculos, a olhar atentamente para nós. Depois ele cortava a câmara e o microfone e, certamente furioso com ela, devia ir despachá-la para outra divisão.

E, ao princípio, um colega já de uma certa idade, pouco dado às tecnologias, via-se aflito para entrar nas reuniões. Então, ia chamar a mulher, por sinal uma conceituada neurologista, identicamente pessoa também já de alguma idade, para o ajudar. Estavam os dois numa pilha de nervos, sem atinarem, ambos com os óculos na ponta do nariz, ela com uma mantinha sobre os ombros. Só que nós os víamos e ouvíamos: carrega aqui, experimenta ali, não é aí, é aqui, não isso também não, porcaria, todos à espera e nós aqui, grande porcaria esta. Acabávamos sempre a ligar-lhe para o telemóvel para tentarmos guiá-lo(s) e dizer-lhe(s) que ele(s) é que não nos via(m) e ouvia(m) mas que nós estávamos a seguir aquela saga em directo. Mesmo o atenderem o telemóvel era um filme pois nunca o tinha ao pé dele, ouviam tocar e não sabiam onde... e nós, por vezes uns dez, a postos, à espera que ele atinasse e conseguisse participar na reunião.

E muito mais poderia contar pois foram tempos épicos em que muita coisa divertida acontecia. Divertida e não divertida... Por exemplo, acompanhávamos a preocupação de um colega que estava sem saber o que se passava com o pai, o senhor com uma dor nas costas, sem se conseguir mexer, um jeito, qualquer coisa, ciática, coisa assim, a mãe sem força para o ajudar, e esse nosso colega por vezes chegava tarde às reuniões pois as coisas em casa dos pais estavam cada vez mais complicadas. Até que estranhou a prostração do pai, já a achar que o senhor podia ter tido um avc, chamou a ambulância e, creio que no dia seguinte, o senhor morreu. Um dos primeiros casos covid. 

Enfim.

Nunca gravei nenhuma reunião mas, mesmo que tivesse gravado, obviamente não poderia partilhá-la. Mas vou partilhar um vídeo que mostra uma reunião também fantástica: desentendidos, mal enquadrados, desorientados.

Reunião caótica do conselho paroquial torna-se viral: 'Você não tem autoridade aqui, Jackie Weaver'


Um bom sábado

Saúde. Coragem. Paz.

3 comentários:

ccastanho disse...

UJM
Já fez presépio?
Há sempre uma sugestão.
https://ponteeuropa.blogspot.com/2023/12/humor.html

JANITA disse...


Isso é que é falar! 👍

🌼

Filo Stone disse...

Olá UJM
Realmente, que tempos épicos esses da pandemia! O meu marido e eu fomos confinar-nos para fora de Lisboa; os nossos netos, três do meu filho mais velho, cada um no seu zoom, os pais em teletrabalho, certamente a edição revista e piorada desses casos que relata. E nós à distância, com medo que o bicho covid atacasse, sabe-se lá vindo de onde. Até que resolvemos começar a ser racionais e trouxemos para junto de nós a mais nova, de quatro anos à época, para desanuviar o ambiente em casa deles.Trazia um acentuado sotaque brasileiro de tantas horas votada ao Lucas Neto, sem que alguém lhe prestasse atenção.
Mas, é assim, tudo passa na vida.

Neste últimos tempos temos acompanhado esses seus momentos de angústia e preocupação. Imagino como se sente impotente por não conseguir inverter a situação, habituada como está a trabalhar na maior pressão, com tantos a ter dependido da sua ponderação e autocontrole, resolvendo situações que devem ter sido muito difíceis,
Como os amigos que o são para os bons e para os maus momentos (e de certa forma, somos amigos!) estivemos aqui diariamente a lê-la, inspirados na sua força e motivação, estaremos agora disponíveis para a ouvir desabafar sobre a situação que tanto a preocupa.
Não irei dar-lhe conselhos, tanto mais que, infelizmente, não vi os meus pais envelhecer. Cancros muito agressivos impediram-nos, sobretudo a minha mãe, de atingir idade avançada, pelo que não tenho prática de lidar com familiares muito idosos. Mas, uma coisa é certa: tudo na vida é passageiro. Espero que os profissionais que tomaram conta do caso de sua mãe consigam encontrar o caminho certo e que a UJM volte a viver sem essas nuvens negras no horizonte. Até lá, pode contar com o apoio dos seu leitores. Peço desculpa a quem a lê pelo uso do plural, mas penso que posso falar por mim e por muitos mais dos que seguem o seu blog.
Um abraço da Filó