Tal como os do post abaixo também estes poema são de Maria Teresa Horta em Estranhezas (de onde igualmente voltei a extrair o título deste post).
Também as fotografias foram feitas aqui em casa durante a tarde deste sábado vagaroso, sereno, parado no tempo. Tão sereno, tão parado no tempo, que consegui descobrir e fotografar um passarinho numa árvore. Se fosse uma gata teria subido pelo tronco, ter-me-ia esgueirado pelos ramos, em silêncio, para o ver de perto, para o cativar. Talvez ele cantasse para mim e talvez eu, feita gata anarca-burguesa, quase morresse de emoção.
E é também Mari Samuelsen que interpreta Una Mattina
Que se iluminem os pulsos estreitos e muito pálidos
daquelas que voam
Como eu queria
sem ter fim
entregar-me à densa Lua
submersa e encoberta
envolta pelo seu manto
perdida de mim
turvada
onde a chuva desamada
se transforma
no meu pranto
docemente
envenenada
pelo jasmim e o espanto
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Os poemas Iluminação e O manto da lua que acima transcrevi e Flor receosa de onde extraí o título deste post pertencem a Estranhezas de Maria Teresa Horta, livro que lhe valeu o Prémio Casino da Póvoa atribuído na 22.ª edição do festival Correntes d’Escritas.
O jasmim foi fotografado hoje, aqui em casa. Está perfumado de dar gosto. Hoje encostei-me ao muro, entre dois tufos, e ali fiquei em estado de inebriamento, deixando que o tempo pousasse suavemente em mim, presa deste tempo sem fronteiras, rendida ao prazer de estar e ser.
Nunca fui de turismo de massas. Em excursões só participei até ao liceu. A última deve ter sido a de finalistas. Nunca me imaginei a passear em excursão. O meu marido muito menos. Passeios em grupo fazíamos mas era coisa para no máximo uns quatro ou cinco casais e respectivos filhos. Mas, mesmo isso, era algo cansativo pois coordenarmo-nos todos em horários e preferências requeria uma certa ginástica.
Também nunca fui àqueles destinos turísticos a que toda a gente ia. Era como ler um livro ou ver um filme de que toda a gente falava: perdia logo a vontade. Punta Cana. Porto de Galinhas. Esses lugares de que tanto ouvia falar. Zero interesse.
Viajar para mim, para ser bom, era irmos só nós, em total liberdade. Quando digo 'nós' refiro-me a nós dois e os miúdos ou apenas os dois.
Mas mudei.
Agora, se penso em passear, já não tenho aqueles sonhos de viagens para mais longe. Agora o que desejaria poder fazer era ir de carro por aí. Gosto muito, cada vez mais, do meu país.
Não sei como pode haver quem não o ame de paixão. Penso que só gente cuja alma se deformou ou vendeu poderá não sentir profundo e reconhecido amor por este país tão lindo.
Um país é a terra e as paisagens, é a língua, são os hábitos, são as pessoas. E, neste nosso país, eu gosto de tudo. Andar a calcorrear serras e vilas e aldeias, percorrer a beira dos rios ou degustar a beira do mar, provar os belos petiscos, observar as gentes, prestar atenção ao modo como falam -- para mim é tudo um prazer.
Talvez pudesse ir também até mais longe, andando por outros países adentro. Mas, sinceramente, parece que deixei de sentir a mesma atracção do que quando julgava que ia encontrar noutros lugares algumas pitadas de fascínio não existentes por cá. Não sei explicar. Parece que me vou modificando sem que perceba até quando continuarei a modificar-me.
Ponho-me a pensar: o que quero fazer quando houver total liberdade de movimentos?
Não vou falar do óbvio: estar com os meus, com aqueles que o meu coração amo. Esses são a minha primeira e segunda e terceira e quarta e quinta prioridade. E parei na quinta para não maçar quem me lê. Mas, satisfeitas essas primeiras necessidades, de os abraçar e beijar e dar de comer e estar com eles, tendo eu tempo para ir em liberdade, talvez gostasse de fazer passeios temáticos.
Conhecer bibliotecas. Conhecer edifícios de arquitectura espectacular. Conhecer jardins. Conhecer parques. Conhecer cidades na foz dos rios. Conhecer restaurantes principescamente decorados (e com boa comida). Conhecer esplanadas com uma grande vista de mar. Conhecer lagoas secretas. Conhecer as tocas dos lobos.
Penso nisso mas penso de forma indefinida, como se fossem hipóteses longínquas, viagens imaginárias.
Passeios que me obrigassem a pesquisar, a planear. O oposto do que sempre fiz. Nunca planeámos quaisquer passeios. Íamos. E lá, todos os dias, pensávamos no que íamos ver ou a fazer a seguir. Agora não. Agora pensaria assim: vamos conhecer jardins extraordinários. Mas pensaria antes de ir. Teria que tentar descobri-los, pesquisar. Fazer um roteiro, escolher percursos, as estradas mais bonitas. Escolher hotéis bonitos.
[Já sei que hotéis seria o meu marido a descobrir os melhores. Não sei como faz mas é sempre ele que desencanta hotéis incomuns e muito bons. Hotéis de charme. Hotéis invulgares e muito acolhedores, em locais onde sabe bem estar. Sempre ele, não percebo como porque aparentemente não tem paciência para grandes pesquisas.]
Mas quando poderei passear assim?
Dantes tinha também a ideia de comprar coisas nos sítios por onde passava. Agora penso que já não. Fotografar, isso sim. Mas comprar acho que não.
Não sei como vai ficar o mundo. Tantas terras que viviam do turismo. Como viverão sem as gentes que vinham de fora e que deixavam o seu dinheiro no comércio e alojamento locais?
Tantas incertezas.
Também não sei como vou ficar eu. Pode acontecer que seja tudo passageiro, pancada psicológica que se varrerá mal tenha ordem de soltura. Mas não creio.
Tenho para mim que estou cada vez mais eremita.
Talvez acabe por me desinteressar de ir conhecer outros lugares, cada vez mais circunscrita ao meu pequeno espaço, ao meu jardim, às minhas árvores, aos pássaros desconhecidos que se escondem nas árvores ou cantam no beiral para que o meu despertar tenha a companhia da sua música, talvez acabe por me circunscrever às minhas casas.
Às vezes penso que gostaria de ainda vir a ter também uma casa pequena, de pedra, numa aldeia na montanha. Não sei bem como poderia ajeitar a minha vida para ter tempo para poder ir, às vezes, para essa casinha, para esse refúgio que teria uma estreita escada interior que iria dar a um quarto com uma janela com vista para as serranias em volta. Por vezes penso nisso. Dantes pensava numa casa em cima da praia. Agora penso numa casinha de pedra na aldeia, talvez nas Beiras. Um quintalinho nas traseiras, uma pequena horta. Penso que aí seria inevitável ter um gato. Não sei que ideia é esta minha. Penso que sou uma pessoa de casas. Mas, na verdade, sei lá de que é que sou.
Ao certo o que sei é que estou aqui na sala, a ouvir música e a escrever estas coisas. A viajar. É isso: a viajar até vocês. Vocês são o destino das minhas viagens.
Por motivos que não vêm ao caso, tivemos que ir à cidade. Muita gente. Muita gente sem máscara e outros com meia máscara. Fez-nos muita impressão. Desviávamo-nos, incomodados. Mas aquela gente não sabia que ainda estamos em regime de confinamento? Esqueceram-se que ainda há covid? É certo que estávamos na rua mas, bolas, cruzando-nos uns com os outros em quase permanência, gente a passar por nós a menos de um metro... Andámos aos ss na rua, a fugir de um, a fugir de outro, tentando ser discretos, sem perceber a que mundo tínhamos ido parar. E tantas lojas abertas. Não conseguimos perceber.
Depois, já que estávamos ali e precisava de sacos para o aspirador, resolvemos ir, num instante, comprá-los. Ao entrar na loja, uma mulher mais velha que eu vinha na minha direcção também para entrar. Mas vinha sem máscara. Desviei-me para que não ficasse a respirar-me para cima, a menos de meio metro. Quando vi que ia mesmo entrar, disse-lhe: 'Desculpe mas não pode entrar sem máscara'. Ela disse, sem espanto: 'Sim, tem razão'. Abriu a bolsa e retirou uma máscara. Mas ali andava sem máscara, na maior descontração.
Ao presenciar toda aquela movimentação, fiquei a pensar que, afinal, se calhar, ao contrário do que por vezes penso, quando a pandemia for debelada tudo voltará ao que era. Para nosso grande espanto, não fora algumas pessoas de máscara, dir-se-ia que estávamos nos tempos de antes do corona. Na loja, várias pessoas comprando e escolhendo coisas com vagar, umas tirando dúvidas junto dos funcionários, outras revirando objectos. Preocupação por estarem num espaço fechado, zero.
Aqui onde vivemos, não muito longe da cidade mas cumprindo os deveres de confinamento, estamos distantes dos velhos hábitos que, pelos vistos, se vão reatando.
Pelo telefone, o meu filho desvalorizou: que quase um ano de vida alterada acaba cansando a disposição das pessoas, que isto é natural. Os mais novos sentem-se praticamente a salvo e, a menos que por dever cívico queiram proteger os outros, virão para a rua gozar a vida. Diz ele. Talvez. Acredito que sim.
Era quase noite. Provavelmente os que vi, entre o sítio em que estacionámos, o largo onde havia assuntos a tratar, a rua, o percurso para a loja e o caminho de volta ao carro, terão sido umas cem pessoas na rua, talvez mais, não sei calcular. Dessas, talvez metade das pessoas andasse sem qualquer preocupação de afastamento. Talvez uns trinta ou quarenta por cento estivessem sem máscara. Vários dos que estavam de máscara estavam de nariz de fora. Talvez seja uma amostra pouco significativa, talvez não possa tirar conclusões precipitadas. Não sei. Mas fez-me muita impressão. Achei um excesso de à vontade.
Pelo caminho, na rádio ouvimos a notícia de que um farsante do PSD, avençado do Observador, resolveu forjar um plano, usando um template do Governo, com logótipo e tudo. Depois veio com desculpas esfarrapadas que nem ao menino jesus convencem. Fizeram bem os que, lestamente, enviaram o caso para o Ministério Público. Não há pachorra para os chico-espertos para quem só a desestabilização importa. Numa altura em que as hostes laranjas se agitam -- volta o Passos, não volta o Passos --, aparecem as fake news que agitam as redes sociais e lançam a confusão.
Se não tivesse sido tão prontamente denunciado haveria de andar já meio mundo nas televisões a discutir mais uma treta, uma de entre tantas.
É como o Paulo Portas. Ao princípio até gostei de vê-lo aos domingos na TVI: um comentário abrangente, aparentemente documentado. Mas rapidamente derrapou para a manipulação, para a meia verdade, para a insinuação, para a maledicência. Fala do que os opositores de Costa intrujam e intrigam como se fossem as posições do Costa. Pouco sério, isso. Ou apregoa como medida certa e de sua lavra coisas que Costa já decidiu faz tempo. O meu marido já desistiu e eu no domingo passado desisti a meio. Gosto de gente que pratica a honestidade intelectual, gente de bem, gente que, mesmo em quadrantes políticos contrários, usa de armas limpas, argumentação franca. Mas pode alguém ser quem não é? Não, né...? Paulo Portas é quem é e, pelos vistos, não mudou nada. Portanto, azarinho: para mim o comentário político do PP nas noites de domingo da TVI já era. Aos domingos à noite fugia do cagalhotas e ia ouvir o Portas. A partir de agora, viste-o. Estão bem um para o outro, um na SIC, outro na TVI. Aos poucos, vou-me desligando de tudo o que seja treta, falsidade, intrujice.
Há bocado, ao tentarmos ver alguma coisa, deu-nos uma aversão total a esta comunicação social que explora a má língua, a acusação, a leviandade, a estupidez. O meu marido disse: vamos desligar a televisão. Mas não fui tão radical mas fui ver outra porcaria, o MasterChef Brasil. Aquilo não é culinária, são casos sociais
Enfim.
Pelo meio, por acaso, até gostei da comunicação de Marcelo. Falou bem. É isso: já chega de futilidade, de parvoíce, de irresponsabilidade. Ao falar com a minha mãe, ela disse o mesmo ao comentar a comunicação dele às 20: o homem está como eu, farto de gente estúpida, gostei de ouvi-lo, tem todo o meu apoio. E eu disse: E o meu.
Tirando isso. Dia preenchido como sempre. Mas já estou com a cabeça no que quero fazer no sábado: tentar tirar o vaso dali. O meu marido continua a insistir que é impossível a menos que se tire a terra e, na prática, se mate a planta que está a querer renascer. E isso, obviamente, não. Agora há uma coisa: quando a gente quer uma coisa, consegue. Portanto, não acredito que aquele vaso descomunal vá ficar ali até ao fim dos meus dias. Temos que conseguir. Se não fossem as escadas, a coisa seria de caras. O pior é fazê-lo descer as escadas.
Penso nisso e em varrer o jardim. Nem sei como vou estar concentrada nas reuniões quando me apetece é ir varrer o jardim. Com um ancinho, com um balde para recolher as camélias murchas, a caruma, as folhas secas. O meu marido quer ir podar algumas buganvílias. E temos que ir os dois tentar domar as roseiras bravas, trepadeiras, que circundam uma das árvores grandes.
Não serão grandes objectivos, eu sei, mas agora é o que há. Parece que já nem sei ter grandes ideias nem grandes desejos...
A minha mãe, ao telefone, dizia que pelos anos não quer nada, que tem os armários e as gavetas cheias de coisas de que não precisa, que já nem tem onde guardar mais nada. Eu disse que estou na mesma, que há um ano que não compro praticamente nada a não ser comida e que não sinto falta de nada. Mas, se sinto um certo orgulho por me ter tornado assim, a verdade é que penso que, se muito mais pessoas estão como eu, isto é o desastre total para a economia. E é que eu acho que isto não é apenas enquanto durar a pandemia, acho que isto é assim forever. Mas, lá está, na volta é comigo e pouco mais porque, se calhar, mal nos desconfinemos, meio mundo irá a correr gastar dinheiro em traparia. Não sei. Aliás, não sei mais nada de nada.
Por isso, calo-me. Espero que gostem das fotografias de Philotheus Nisch e da companhia de Natalia Lafourcade e Omara Portuondo a interpretarem Tú me acostumbraste. E espero que gostem também de ver os vídeos que hoje vi e de que gostei.
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Dame Judi Dench e Benedict Cumberbatch Unite Us
Já agora, deixem que partilhe o vídeo de alguém que fala das várias gerações, desde as memórias da bisavó da mãe até aos seus sete netos. E eu que tenho tantas saudades dos meus -- pimentinhas mais lindos, que agora só os vejo por fotografias ou filmes ou conversas à distância.
Chico Buarque fala sobre sua relação com seus netos
Uma vez estava ao telefone do lado contrário da sala àquele em que tinha deixado a carteira -- e vou já avisando que, quando me refiro a carteira, quero dizer aquele recipiente a que outras pessoas chamam mala.
Então, precisando de um documento, fiz sinal ao colega que estava lá perto e pedi-lhe que me desse a bolsinha de documentos que estava dentro da dita carteira. Fez-me sinal que não. Não percebi. Pedi um minuto ao meu interlocutor telefónico e insisti com o meu colega, pensando que ele não tinha percebido: 'Desculpe. Faz-me um favor? Pode abrir a carteira e tirar de lá a bolsinha dos documentos?'. E ele: 'Não, desculpe mas não vou fazer isso'. E eu, sem perceber: 'O quê? Não pode fazer-me esse favor?'. E ele: 'Não. Desculpe. Não vou fazer isso. Tenho medo.'. E eu, sem perceber: 'Medo? Medo de quê?'. E ele: 'Tenho medo de enfiar a mão na carteira das senhoras'.
Os outros deram-lhe razão. Todos disseram que também tinham medo.
Tive que interromper mesmo a chamada e dizer que voltaria depois, com o documento.
Não queria acreditar. Estavam no gozo, claro. Dizia um: 'Não se pode arriscar. Quando se mete a mão na carteira de uma senhora, nunca se sabe o que se vai encontrar'. Todos concordaram. Um risco, diziam.
E eu, de repente, caí em mim e dei graças a todos os santinhos por ele não ter acedido ao meu pedido. Bolas... que sorte.
A quantidade de coisas que sempre tive nas carteiras é indescritível. Carradas de coisas. Resmas. Paletes.
A coisa começa sempre bem, só o indispensável, tudo muito racional. Mas depois é a embalagem dos lencinhos, depois o baton. Depois outro baton. Depois um gloss. Depois outro, noutro tom. Depois o perfume de bolso. O pente, claro. O eyeliner. Pastilhas elásticas. Uns ganchinhos. Travessão para apanhar o cabelo. Bolsa das moedas. Porta-documentos. Uma caneta. Outra caneta. Um lápis. Uma fita métrica velha do ikea. Um bocado de papel. Uma talão de uma loja de que já não se consegue ler uma única letra ou número. E mais tudo o que se lá for juntando.
Antes da menopausa podia também haver uma bolsinha com um penso ou um tampão. E foi nisso que pensei naquele dia ao imaginar o desastre que poderia ter acontecido se ele lá tem enfiado a mão e agarrado um tampão.
De cada vez que mudo de carteira, mudo para lá os essenciais e fica na outra o que carece de escolha para, mais tarde, ver o que deve ser deitado fora e o que deve ser resgatado. Até que me esqueço. Ficam carteiras com toda a espécie de coisas lá dentro. Não sei se lixo, se relíquias.
Contudo, com o corona, tudo mudou: até o conteúdo da minha carteira. Agora a própria carteira é mínima, pequenina, fininha, nada a ver com as que transportavam toneladas. Agora é uma bolsinha espalmadinha com uma correntezinha para usar. Pouco saindo de casa, a minha carteira agora tem apenas o porta-chaves com as minha muitas chaves, a bolsa dos documentos*, uma factura**, uma caneta e uma máscara de reserva. Levezinha de dar gosto.
Explico os asteriscos.
* Sobre a bolsa dos documentos tenho a dizer que, depois de ter experimentado toda a espécie de bolsas -- porta-moedas, porta-documentos, grandes, gigantes, com mil divisórias, pequenas também com divisórias, multifunções -- encontrei a ideal. Antes todas acabavam bojudas, deformadas, mal fechando, pesando quilos. Agora é um descanso. Comprei uma bolsinha mínima, simples, apenas com uma pequena divisória lateral. Salvo erro, custou doze euros. Parece de pele mas não deve ser. Comprei-a numa lojinha chinesa. Os cartões ficam na bolsinha principal, mesmo à medida. Abdiquei de usar parte dos cartões que raramente uso. Na bolsinha lateral tenho uma nota e duas ou três moedas. Levezinha, prática, pouco espaço ocupando e com tudo à vista e à mão de semear.
** A cena da factura tem a ver com isto do confinamento. Pode ser preciso mostrar onde moro. Nunca foi preciso mas também não pesa nem chateia.
Nestes dias de total imersão em teletrabalho, não tenho de que falar. Só saio de casa para fazer uma rápida caminhada à hora de almoço e não tenho paciência para notícias.
Há bocado, num zapping, apareceu-me aquele mangas de alpaca que pode ter algum jeito para contabilidade mas zero para política. Sempre com ar de mestre-escola maldisposto, é criatura que não apenas é de má catadura como de maus fígados. O que ele está a fazer é abrir a porta aos laranjas, empurrando-os para os braços do chega. Pode dizer-se que são laranjas podres, gente vendida que não interessa nem ao menino-jesus, gentalha que se vende por dez réis de mel coado e um lugar numa autarquia, numa junta, numa empresa municipal, no que for. Antevendo que o alpacas não vai longe, devem estar todos a bandear-se para quem se está nas tintas para ideologias e quer é pôr as patas nas máquinas do poder. Por isso, se vejo gente destas ou do género, o que logo faço é fugir a sete pés.
Conclusão: não tenho temas frescos nem nada que interesse para aqui dizer. Não que nos outros dias tenha mas, pelo menos, sempre posso tentar. Assim nem isso.
Então, reduzo-me à minha insignificância e ponho-me a ver vídeos. Podia ver instagrames, feicebuques ou quejandos mas também nem isso. Sou muito rudimentar: só iutubes e blogues, coisas datadas, pouco féchanes.
E, hoje, o que o meu amigo algoritmo teve para me propor foi coisa inusitada. Uma senhora com idade para ser minha mãe -- e que eu não via desde o tempo em que ela já era assim, como é hoje, muito artilhadinha, e que era eu, então, uma jovem -- mostra o que tem na sua carteira. E o mais curioso de tudo é que o tempo passou, eu tornei-me uma anciã qualquer dia centenária e ela... ela, caraças, ela continua igualzinha ao que era nos tempos da Dinastia.
E não estou a ironizar. É ver para crer. Ainda por cima, vejam a graça: anda com um santinho na carteira, o Sto António, imagine-se. Eu que gosto tanto de Stos Antónios.
Joan Collins: In The Bag
E, a seguir, uma outra senhora também entrada na idade mas igualmente com tudo em cima, jovem, linda, elegante, simpática e, ainda por cima, bem open minded
Depois de uma tareia de várias reuniões de seguida e depois de ser amargamente contrariada pelo meu marido que não quer arriscar tirar um big vaso do terraço pois acha que é impossível pô-lo a descer a escada, chego aqui e não consigo pensar senão em duas coisas:
1 - Como vigiar de perto uma criatura que está a revelar-se uma encrenca e que fez arrastar uma reunião por mais do que uma hora, sobrepondo-se às seguintes e estragando todo o programa de festas
2 - Como conseguir tirar dali o vaso. Um desafio e tanto.
Sobre o tópico número um hesito entre o desprezo e a vingança. Mas pior mesmo é o tópico número dois. Já pensei arranjar umas tábuas e pôr o vaso a deslizar devagarinho escada abaixo. O meu marido diz que, grande e pesado como é, o que vou conseguir é que se parta. E recusa-se a tentar.
A questão é que a planta, no verão, secou. Parecia morta. Entretanto, começou a renascer. Umas little folhinhas verdes despontando. Mas primeiro que se cubra de verde vai demorar. Mas o aspecto geral não é maravilhoso, quem olhe com desatenção julgará ser um arbusto quase seco. Já tenho, ali no terraço, outras flores e preferia ter ali vasos de outro género. Já fui à horta, andei pelos cantos a ver se desencantava umas tábuas mas nada. Não sei como resolver isto. É o chamado desafio do caraças.
Acontece que, ainda por cima, esta noite dormi pouco.
Acordei lá para as cinco e tal da manhã com um pesadelo e, de tal forma foi que, mesmo acordada parecia que estava a viver a situação. Por mais que pensasse que era sonho, não realidade, não parava de pensar nisso. E, ainda agora, ao pensar nisto, parece que estou a reviver uma situação efectivamente sucedida.
Foi assim: um amigo meu tinha vindo cá visitar-nos. Como combinado, tinha trazido a mulher mas também dois outros amigos nossos. Tinha-me dito, em segredo, à chegada: desculpe lá mas já não sabia o que fazer com estes dois. Um é um grande amigo que ficou viúvo há um ano, uma morte prematura que me abalou muito. O outro é também um amigo que vive sozinho, divorciado. E então o que tinha acontecido é que tudo bem, almoço, conversa, tudo na boa, tranquilo. Depois tinha vindo a hora do lanche e tudo tranquilo. Mas, então, o meu amigo divorciado, que é vidrado em livros, tinha resolvido ir ver as estantes. E, com vagar, andava a vê-los um por um. O outro tinha pegado numa cadeira e estava instalado debaixo de uma árvore a beber uísque, olhando o jardim na maior contemplação. A mulher do meu amigo continuava a conversar comigo na maior animação. Tudo isto é real pois qualquer deles é justamente assim.
Só que o meu marido não é dado a horas seguidas em suspenso à espera que a conversa de um acabe, que os copos de outro também. Tenho muita ideia de outros tempos em que um dos que lá costumava ir a casa com a mulher e que bebia uns atrás de outros, depois ia apanhar fresco para a janela, depois dava-lhe para a risota, depois para o sentimento e contava coisas que o tinham magoado e chorava, chorava, depois ia para a janela fumar, depois regressava à conversa. A mulher, às tantas, encostava-se para trás e deixava-se dormir. O meu marido, podre de impaciência, deitava-se no sofá, como se estivesse sozinho, e punha-se a ver televisão. E eu ficava, sozinha, a fazer sala. Saíam de lá de madrugada. O meu marido, que entretanto, já tinha adormecido, acordava furioso comigo pois achava que se eu não desse troco aquilo não durava até àquelas horas. Mas ia fazer o quê? Punha-me também a ver televisão, feita malcriada? Não sou capaz.
E, então, no meu sonho, ele já estava assim, tal e qual, que não se aguentava. E eu furiosa com ele, como medo que os outros percebessem o estado de espírito dele. E ele: 'Mas ele vai vai ver os livros, um por um, até ao último?!' e 'Mas ele vai ficar ali debaixo da árvore até que horas?'. O meu outro amigo dizia-me, em segredo: 'Está a ver porque é que eu já não os aguentava? Percebe porque tive que trazê-los?'.
E o curioso é que isto é mesmo tal e qual.
E o meu marido, furibundo, dizia-me: 'Vou para o carro e fico lá à espera'. E eu furiosa com ele: 'Porta-te como deve ser. Estás em casa, com que pretexto te vais enfiar no carro? Estás parvo!'. E ele a ficar cada vez mais impaciente, pronto a armar barraca.
E aí acordei, atormentada.
Há bocado, ao telefone com a minha filha, ela bocejava cheia de sono, que não tinha dormido bem. E eu também cheia de sono, contei-lhe o sonho. E ela disse: 'Tal e qual. Podia ter mesmo acontecido isso, estou mesmo a ver o pai assim...'.
Quando cheguei à sala contei-lhe o que a filha tinha dito. Reagiu: 'Qualquer coisa vos serve de pretexto para dizerem mal de mim'.
Mas a verdade é que volta e meia parece que vem o incómodo que senti com a reacção dele, capaz de me envergonhar à frente dos meus amigos. Claro que eu também estava apreensiva a pensar que se calhar tinha que ir descongelar qualquer coisa para lhes dar de jantar pois não lhes via jeito de quererem desandar. Mas pior era ver o meu marido a ponto de se tornar inconveniente. Gosto de ser hospitaleira.
Uma das vezes em que foram uns poucos casais almoçar in heaven quase aconteceu uma coisa assim: foram para o almoço e saíram nem sei já a que lindas horas da noite. Lembro-me em especial de um episódio disparatado. Um deles já estava mais do que bebido e, então, começou a contar ao meu marido que se divertiam todos muito com as zangas homéricas que eu tinha com um outro que não estava ali. Contou peripécias, imitava-me a mim e imitava o outro, ria, ria. E, às tantas, rindo a bom rir, disse: 'Um tal ódio de parte a parte que estou sempre à espera de os ver aos beijos na boca'. O meu marido deve ter engolido em seco. Zanguei-me: 'Olhe lá! Que conversa mais parva é essa?' E ele a rir a bom rir, a mulher a dar-lhe palmadas no braço, que tivesse tento. Nesse dia contou também como, pouco tempo antes, tinha acabado preso numa esquadra de uma vila alentejana e lá tinha passado a noite até que um amigo lá foi tirá-lo, trazendo-o para Lisboa pois, obviamente, a carta tinha sido apreendida. Contou as peripécias com todos os pormenores e nem queríamos acreditar. O que nos rimos com isso, incrédulos. A mulher dizia: 'Só vergonhas. Já o avisei: mais outra e ninguém o vai buscar. Nem sequer visitar'. Ele ria.
Mas o meu marido, nessas circunstâncias, já não se aguenta sentado, começa a andar fora e dentro, impaciente, com vontade de ver a malta toda pelas costas.
O pior de tudo foi quando irmãos e primos e respectivos filhos, uma vez, tendo também ido para almoço, acabaram ficando. Não foi a única vez, claro, mas uma vez ficaram o fim de semana todo, eram tantos que tiveram que acampar pelo chão, por onde havia um palmo livre. E nós dois entrávamos de férias na segunda feira. E então alguns deles, sentindo-se à vontade, acabaram ficando a semana toda. Aí até eu já estava doida. Iam à lota de uma cidade não exactamente ao lado e regressavam com caixas de sardinhas e outros peixes, faziam churrascos, íamos ao supermercado e trazíamos sacadas de entrecosto e bifes e desaparecia tudo. Sacos e sacos de carvão e desaparecia tudo. Grades de cerveja e desaparecia todo. E nós dois só pensávamos que tínhamos que ter um plano B para o caso de lá quererem ficar mais uma semana. Mas não. Felizmente na segunda-feira da segunda semana resolveram levantar arraiais e zarparam.
E as impaciências que eu via ao meu marido e as fúrias que tentava controlar mas que receava que, a qualquer instante, explodissem traumatizaram-me tanto que esta noite tive este sonho tão vívido como se estivesse a reviver outra vez aquelas situações.
Mas já chega de sonho, já me basta não ter sido capaz de voltar a adormecer. A ver o dia a ficar dia e eu às voltas na cama. E, mais grave, chateada com o meu marido. O facto de tudo não ter passado de um pesadelo é mero pormenor.
E depois, com reuniões todo o santo dia, não tenho assunto.
Aconteceu o quê? Andam todos a querer que o Costa desconfine para a seguir irem crucificá-lo porque desconfinou? Não há pachorra. Ou a valente da ministra ainda consegue aguentar-se de olhos abertos e ainda consegue paciência para aturar tanta gente besta? Coitada. Admiro-a. Mil estátuas que lhe ergam e mil ordens e medalhas com que a agraciem será pouco.
Por isso, depois de ter escolhido pinturas de Pierre Bonnard para aqui alumiarem estas minhas palavras fajutas ao som do sonzinho bom da Norah Jones, com vossa licença vou agora ver casas bonitas, ouvir gente que não fala de vacinas nem de gente que cai escadas abaixo nem de desgraças nem de tretas ou desgostos.
Por exemplo,
73 Questions with Gisele Bündchen (ft. Tom Brady) | Vogue
Pois. A semana começou com complicações. Metem-se em confusões e depois, ó tio, ó tio, e agora o que é que se faz? E eu com vontade de dizer: o que é se faz, não: o que é que tu fazes. Mas, pronto, temos que ser uns para os outros. E ao longo de todo o santo dia, com reuniões e telefonemas pelo meio, estive a tentar consertar a proeza.
Ao fim da tarde -- ainda umas coisas para despachar mas pensando que, azarinho, por mim o dia estava feito, uma vontade danada de respirar ar fresco e ir esticar as pernas para o jardim -- estou a baixar a tampa do computador e ainda a tentar desculpar-me 'que se lixe, amanhã também é dia', plim, novo mail. E eu, parva, a espreitá-lo pelo canto do olho. Percebi logo que havia mais uma habilidade no pedaço. Descreviam a coisada e, no fim, perguntavam se eu estava ao corrente. Não, não estou. Pensava eu que, com a secura, matava a questão. Mas que nada. Do outro lado: Mas então não seria melhor vermos isto? E eu com vontade de dizer que não, não seria melhor. Talvez ser ainda mais directa: Porque é que tu e os que se meteram nisto não vêem?
Juro. Estava até com vontade de rematar a preceito: hoje já dei para muitos peditórios, enough is enough. Mas, lá está, tenho este meu lado de santa. Fui acudir. Mas, confesso, impaciente, sem pachorra para desculpas e divagações, já a derrapar para o mau feitio. Ouvia-me e pensava: 'bruta como as casas'.
E agora estava desertinha para vir para aqui ver artigos de decoração de La Redoute pois a minha filha falou-me nisso. Desconhecia. Sabia do vestuário vendido por catálogo, uma coisa tipo vendas online avant la lettre. Muita coisa para os meus filhos, quando eram pequenos, a minha mãe lhes comprou da Redoute. Mas, disse-me hoje a minha filha ao telefone, também vendem móveis e alguns bem interessantes.
Pois bem, depois de jantar e depois de ter falado com o resto da família, venho eu a salivar para vir descobrir os ditos móveis quando começam a tintilar os mails. Não me digam que aí vem pepino, temi. Pensei: não vou ver. Mas tenho esta coisa que não sei se é ser responsável se é ser cusca. Uma coisa na base de deixa cá ver o que é que agora querem. E nem mais. Um belo de um macaquinho que me atiraram para o colo. E agora estou aqui a hesitar: vou ver tapetes, colchas, cómodas? Ou vou tentar perceber que cena é esta que aqui tenho na caixa de correio com uma infindável troca de mails, em várias línguas, uma confusão daquelas em que só me apetece ter um clone que pegue nestes ensarilhanços e me deixe a mim em paz, só para tratar de coisas agradáveis.
Agora que escrevo isto até me lembro de quando ia comprar peixe no mercado, peixe fresquinho, e se, por exemplo, queria safio da posta do meio tinha que trazer também posta do rabo e um bocado de cabeça, partes, para quem não saiba, infestadas de espinhas. Assim é o meu trabalho: dá ideia que para tratar de alguns assuntos mais glamourosos tenho que dar conta de toda a espécie de berbicachos.
Enfim.
Com isto fico sem argumento. Falar de quê? Depois de passar o dia a bater bolas de toda a espécie e feitio, não sei que mais posso eu dizer.
Só se for que, quando a meio da tarde estava ao telefone, de pé, vi lá em baixo, na rua, um homem a teleguiar um drone. Não sei o que é que ele estava a filmar.
Também posso dizer que fico muito contente com o resultado da pata que pusemos em cima da curva. Uns numerozinhos mesmo à maneira. Claro que, quando fico contente com tão poucos infectados e tão poucos mortos, tenho sempre vontade de me dar uma belinha porque só mesmo uma destituída é que pode ficar contente por morrerem sessenta e tal pessoas. Não dá para ficar contente quando morre tanta gente por dia com uma porcaria de uma doença destas. Mas, enfim, é a tal relatividade das coisas. Antes sessenta e tal que cento e tal. Agora é aguentarmo-nos assim por mais algum tempo, até a curva estar a guinchar no chão e os mortos covid estarem a tender para zero ou perto disso. E esperar que, por essa altura, a vacinação esteja a ir a bom ritmo e que o tempo esteja melhor para a gente poder laurear (relativamente!) à vontade.
Mas pronto, não me apetece covidear. Era mesmo só mais o que me faltava a uma hora destas. Agora só mesmo músicas, pinturas, decorações, coisas leves, levezinhas. E, se houver pitada de excentricidade, melhor. Talento e bom gosto a par de de alguma irreverência, é isso que procuro. E se houver pitada de insolência ainda melhor.
Na companhia de Devendra Banhart fico bem.
Primeiro vou cuscar a casa dele. Acompanham-me?
Ainda Devendra Banhart mas agora noutra, de novo: Kantori Ongaku
Mais um fim-de-semana do qual nada há a registar. No sábado, chuva de manhã à noite. Ainda assim, quis ir andar pois não consigo ficar fechada em casa todo o dia mas regressei com as calças, as meias e os ténis ensopados. Na parte de cima não houve problema pois tinha uma capa impermeável que cumpriu a sua missão.
Este domingo, caiu um pesado e prolongado aguaceiro de manhã. Temi que estivesse, de novo, o caldo entornado. Mas não. Levantou. Fomos andar mal as nuvens escuras se dissiparam, subsistindo apenas as cinzentas e as brancas. Fizemos uma boa caminhada, a bom passo, o ar frio e húmido mas com vestígios de sol a iluminar o caminho.
Mas é uma pasmaceira que não se aguenta. Uma pasmaceira. Que não se a-gu-en-ta.
Li mas até a ler estou vagarosa. Depois, saí para o jardim para andar a fotografar. Deixei-me estar a ouvir o bater das asas dos pássaros através das folhas, tentando descobri-los. De cada vez que descortino algum e me apronto para registar o milagre, logo o milagre se dissipa. Depois andei a ver as flores através da luz, andei a espreitar maneiras novas de as ver e, à medida que o tempo passava, as cores iam mudando. E os cheiros também. Por vezes, se o sol descobria com maior fulgor e lhes dava de feição, eu andava em sua volta tentando descobrir qual o ângulo em que o raio de luz mais as embelezava. Como uma abelha ou um pássaro, assim eu, vigiando a beleza das flores ou das folhas que despontam.
Depois reentrei, fui fazer uma infusão. Uma mistura de nove ervas a que misturei casca de lima. Ficou poderosa.
De volta à sala, vi o site do ikea, do leroy, do gato preto. Depois de ter falado com a minha filha, vi também o da zara home. E vi sites de decoração. Tomara pôr-me a caminho e entregar-me ao prazer de medir, pensar, imaginar trocas de sítios, mudança de cobertas ou almofadas.
E fui vendo as fotografias e os vídeos que foram chegando. E falei também com a minha mãe e com o meu filho. E, a meio da tarde, quando estava a dar-me o sono, ligou-me um amigo e estive a conversar com ele; e ainda me ri. Diz que mal isto abra, vai para o aeroporto, apanha o primeiro avião e quando aterrar logo vê onde é que foi parar. Diz que tanto se lhe dá desde que possa raspar-se de casa.
Que mais posso contar? Acho que nada.
Só se for que voltei a fazer bacalhau com todos para além da dose, a contar que há-de sobrar para fazer dali uma outra refeição, provavelmente à Gomes de Sá. E, à tarde, fiz um arroz de frango também logo a contar que desse para outra refeição (aliás, quiçá não uma mas mais duas). Fiz assim:
Num tacho, frigi 2 cebolas em bocados grandes, em azeite. Juntei quatro dentes de alho e uma folha de louro. Quando a cebola estava transparente, juntei quatro tomates bem maduros aos bocados e salsa e coentros em quantidade generosa. Juntei então pernas de frango do campo, um pouco de água e um pouco de sal. Quando ferveu, baixei. Ficou a cozinhar até que vi que a carne estava quase macia. Juntei, então, um alho francês aos bocados e feijão verde. Cozinhou um pouco. Juntei, então, água (que estimei que, com a que já estava no tacho, ficasse o dobro da quantidade de arroz). Juntei um pouco de bacon aos bocadinhos e um pouco de chouriço de carne aos bocadinhos. Juntei o arroz (basmati). Quando absorveu todo o líquido, desliguei e ficou tapado, a apurar. Um cheirinho a comida portuguesa.
Quase não vi televisão. De tarde, o meu marido colocou no National Geographic - Wild e estivemos a ver leopardos e outros grandes felinos. Partidarites e comentarites é pitéu requentado que já não manjamos. Agora, fui ver o que estava a dar e pareceu-me que era a mesma coisa. Então, fui andando até que passei pelo canal zen, canal que desconhecia em absoluto, e há pessoas a fazer movimentos lentos. Fez-me lembrar um chinês que vivia perto de nós, na outra casa, e que ia para o jardim ali perto fazer aquele género de movimentos. Uma agora está a andar à roda. Eu fazia isso quando era pequena para depois desatar a rir de tonta e cair desamparada. Continua a andar à roda, ela. Agora está a fazer movimentos que me parecem de ioga. Se fosse a outra hora, ia para o chão e imitava-a. Assim, não me apetece. Não sou disciplinada, não tenho paciência para estar a fazer exercícios. Mas sei que devia fazê-los para não ir perdendo a elasticidade.
Por vezes, naquela outra vida em que éramos felizes e não o sabíamos, a vida pré-covid, naquelas alturas em que andava cheia de programas e canseiras, de um lado para o outro ou com a casa cheia de gente e a sentir que precisava de descansar, pensava que deveria ser bom ir para um retiro, talvez para um mosteiro, e passar o dia sem fazer nada, só a caminhar, a pensar, a observar, a fazer exercícios de respiração e contemplação. Agora que estou em casa nesta estúpida ociosidade penso que o tanas é que ia enfiar-me num buraco sem nada que fazer. Não nasci para monja. Acho que nem sequer para yoguini.
Bem. Estou a ver a rapariga a fazer e fazer e fazer o mesmo movimento, vezes sem conta, sempre com uma espécie sorriso santificado. Acho que não lhe custa nada a fazer aquilo. Uma espécie de flexões no chão.
Interrompi. Fui tentar. Está bem, está. Fiz duas vezes e parei não fosse ficar para aqui estendida e não ter quem me acudisse. Estou a ver que tenho que tentar, senão qualquer dia, estou feita, se quiser apanhar uma coisa do chão tenho que me agachar com uma daquelas velhas todas descadeiradas.
Agora está outra e parece-me que o que faz é bem mais complicado. Sobretudo, o que vejo é que requer paciência, fazer os movimentos com calma. Não é bem o meu género. Mas tudo se aprende. Acho eu...
Entretanto, uma nova semana já aí está. Um tempo de espera, de quase vazio, um hiato. Só espero que mude a hora, que venha o sol, que a vacinação avance a bom ritmo, que possamos voltar a ser donos e senhores dos nossos movimentos -- mas sem que, com a nossa liberdade, ponhamos em risco a nossa saúde ou a de outros. É que pior que a ociosidade e a impaciência será o peso de consciência se, justamente por impaciência, formos infectados e infetarmos outras pessoas.
Por isso, confinada estou e confinada estarei até que a prudência possa, em total consciência, ser aliviada. Pronto. Paciência.
[Mas se isto dura muito tempo -- mais um ano, por exemplo -- não se admirem se resolver saí daqui directamente para o mosteiro das carmelitas descalças, convertida até à medula].
De manhã, a minha mãe dizia que tinha estendido a roupa pois parecia que ia estar de sol. Afinal que tinham vindo umas rajadas de vento e uma tal carga de água que ela até quase teve medo de ir apanhar a roupa, não fosse ir pelos ares juntamente com a roupa.
Pois bem, há bocado, que nem de propósito, ao abrir o youtube, apareceu-me o vídeo abaixo que vi, nuns casos, com um sorriso e, noutros, com a apreensão solidária pelo susto que os que ali estão sofreram.
Nem sei porque o partilho convosco mas é daquelas coisas: não tem que haver explicação lógica para tudo, pois não?
Tenho um amigo cinéfilo. Pelo menos, assim se define. Durante anos consumiu compulsivamente filmes. Agora consome séries. E memoriza argumentos, realizadores, intérpretes. Por vezes pergunta se vi isto ou aquilo e, desmiolada como sou, geralmente não me lembro. Só quando dá detalhes, acabo por reconhecer e, muitas vezes, fico aborrecida comigo pois até tinha gostado... e tinha-se-me varrido.
Uma vez fiz-lhe aquela pergunta que acho absurda e à qual não consigo responder quando ma fazem: qual o seu filme preferido? Pensei que iria dizer que era impossível escolher, que são muitos os muito bons, os preferidos. Mas não. Para meu espanto, convictamente, respondeu: Morte em Veneza.
E, a seguir, em estado de um deslumbramento quase hipnótico, começou a falar da beleza daquele miúdo, na obsessão do homem mais velho pela juventude sedutora do rapaz. Eu disse: Uma beleza tentadora. Ele confirmou: sim, uma beleza tentadora.
Não me esqueço da forma como ele recordou a cena da praia e outras... e de como o seu olhar quase estava alheado da minha presença ao pensar nessas cenas.
Contou-me que não sabe quantas vezes já viu o filme.
Também gostei muito do filme. Não li o livro pelo que não sei avaliar se, em palavras, a rendição do homem é tão absoluta e, por vezes, tão patética ou se beleza tentadora do rapaz é tão cativante -- ou se são as figuras de Dirk Bogarde e Björn Andrésen que tornam a história de Thomas Mann tão erotizada, tão bela, tão intemporal. Claro que Visconti e toda a equipa não terão sido de somenos no sucesso do filme mas, seja como for, o rosto de anjo atrevido e o corpo juvenil e apelativo de Björn Andrésen no papel de Tadzio não serão jamais esquecidos.
No entanto, tendo sido alguém tão marcante não tenho ideia de se ter voltado a falar nele. Ainda será vivo? Será ainda um homem com uma beleza invulgar?
Fui saber. E, como tantas vezes quando um jovem é tão idolatrado pela sua beleza na juventude, parece que lhes fica colada ao corpo uma espécie de maldição. Neste caso até parece que os dramas por que passou não terão tido a ver com a profissão mas com a morte súbita de um filho, bebé. Contudo, a carreira cinematográfica, ao que parece, não evoluiu substancialmente. E a beleza... bem... a beleza obviamente foi perdendo aquele viço que a inocência virginal acentuava. Mas é a vida. Só permanecem para sempre jovens e belos os que cedo se desprendem da vida terrena.
Björn Andrésen tem 66 anos, é actor e músico, tem uma filha e dois netos.
É, Caríssimo, a vida passa, o tempo vai esculpindo os corpos, as meninas ora inocentes tornam-se mulheres vividas. Aquelas que um dia foram chavalas para quem se olhava com espanto podem anos mais tarde ser avós que tudo fazem para acarinhar os netos.
Mariel Hemingway dizia ter 17 anos em Manhattan mas, de facto, tinha 16. A voz era a de inocente adolescente. Toda ela irradiava ingenuidade e graça.
Pelo meio sofreu desgostos, perturbações diversas, distúrbios, carregou o peso de pertencer a uma família onde as pessoas se suicidam. Até a sua bela irmã Margaux se terá suicidado.
Mas agora que Mariel já fez 59 anos parece ter encontrado alguma paz e equilíbrio. Consegue falar dos problemas que viveu e a que assistiu e, no entanto, guarda ainda parte da inocência que parece faz parte da sua maneira de ser. Penso que ainda não tem netos mas talvez um dia os tenha. E aí talvez a sua tranquilidade seja mais plena.
80 anos...?! Acha que os tempos de Manhattan eram os anos pós II da Guerra Mundial ou quê...?
Não sei onde foi que o vi pela primeira vez. Tenho ideia que o Manhattan vi no cinema pequeno por cima do Império. Como se chamava? Satélite? Estúdio? Podia ir procurar mas não interessa. O que interessa é que achei espantoso. Eu era uma jovem que se deslumbrava com o que parecia ser um mundo novo, com grandes imagens, com vozes que destilavam inocências, com histórias que juntavam amor, humor, ironia, melancolia.
Mas acho que antes tinha visto o Annie Hall e esse não me lembro onde foi. São Jorge? Apolo 70? Uma graça. Uma doçura sorridente, uma irreverência moderna, uma graça permanente. Tenho também ideia de ter gostado imenso do Zelig. Será que foi o Zelig que vi no Apolo 70? Ah, ainda hoje o chamo à liça de cada vez que vejo gente que muda de opinião, que se metamorfoseia para ficar igual aos que acham mais poderosos, os que se descaracterizam porque, na verdade, não têm carácter. Mas o Zelig acho que nem era pelo poder, era porque era mesmo assim, um camaleão humano. A graça que ele tinha.
Adorava ver os filmes dele. Ficava a comentá-los, desatava a rir quando me lembrava de algumas cenas, era tema de conversa, repetíamos algumas coisas que ele dizia para se auto parodiar, eterno desajeitado, eterno inseguro.
E, no entanto, como tantas vezes acontece com os homens feios mas inteligentes e com domínio da arte da ironia, sempre com sorte ao amor.
Ou o Alice. O charme discreto da burguesia no feminino, a rebeldia contida e bem perfumada, a insegurança como maneira de ser, a vontade de transgressão não assumida. Pelo menos assim a lembro. Aquela que viria a fazer-lhe a vida negra. Na realidade, não nos filmes. Ou, creio que antes de Alice, o September. As crises, os dramas, os risos, os segredos. Mia, a musa.
Mesmo mais recentemente, já o escândalo tinha rebentado há tempo e os efeitos ainda se faziam sentir, outros filmes, já outras as musas. Por exemplo, gostei do Match Point ou, não há muito, do A Rainy Day in New York. Não quero saber que sejam levezinhos. Gosto de ir ao cinema e ver um flme que me deixe bem disposta. Gosto de sorrir ou rir. Ou de uma emoção mesmo que apenas ao de levezinho. Gosto de cidades bonitas, gosto de cores harmoniosas, gosto de subtilezas elegantes e suaves, sejam elas felizes ou nostálgicas.
Uma vez, a passear em Oviedo, uma estátua de um homem meio desmanchado a andar na rua. Woody Allen. Gostei de ver, parecia que estava a ver alguém conhecido.
Sobre o que se passou, nunca percebi bem. A mente humana tem cavernas e o ciúme o despeito são uma tortura para os próprios e para os que deles são vítimas. Acredito na inocência de Woody Allen mas acredito porque sim. E imagino que deve ter sofrido bastante. Ele e a que era filha adoptiva da que foi sua mulher. Não deve ter sido fácil. Um rasgão difícil de sarar.
Conheço uma pessoa de quem, em tempos, se chegou a dizer que fazia parte de uma certa lista. Falava-se à boca pequena. De concreto, nunca nada. Mas circulava pelas redacções. Por vezes, as televisões mostravam peças em que as câmaras se detinham sobre ele. Homem que sempre tive por íntegro, homem de família. Estava muitas vezes com ele ao fim do dia, dali cada um seguia para sua casa. Contava-me muito da sua vida. Corriam vivos os rumores. Nunca lhe perguntei nada nem ele me disse nada. Até que um dia, um ou dois anos depois, emocionado, quase com lágrimas nos olhos, me disse: 'Não imagina, ninguém imagina. A vergonha que sentia, o medo que tinha que acreditassem no que se dizia, que desconfiassem de mim. Um tipo morre um pouco com uma mancha destas a pairar sobre a nossa reputação.' E a verdade é que, mesmo por entre quem o conhecia tão bem, surgia a dúvida insidiosa, matreira, rasteira, silenciosa.
Não consigo malquerer ou malpensar a propósito de Woody Allen. Tem agora 85 anos e ao seu aspecto desconjuntado junta-se agora o aspecto etéreo que algumas pessoas de idade adquirem. Soon Yi tem 50 anos e, segundo dizem, é feliz ao lado de Woody.
Vi uma entrevista no Youtube que é uma graça, uma daquelas conversas a que se assiste de gosto. Contudo, não consigo aqui colocar o vídeo pois parece que foi interditado não sei bem porquê, direitos de autor de quem o publicou, qualquer coisa assim. Nem consigo que o link vá lá dar mas, just in case, deixo-o na mesma, pode ser que volte a estar disponível