quarta-feira, setembro 09, 2020

Dia com pássaros dentro e post com Bioy também inside




De tarde, acabei de trabalhar e, coisa inédita, estava sozinha em casa. Fui lá para fora e instalei-me numa espreguiçadeira a ler. Os pássaros, que aqui são grandes, bateram as asas com força e voaram para mais alto. Apenas se ouvia o seu canto. Aquele calor brando de Setembro, a amansar a alma. Estou quase a acabar o Com Borges. É um livro pequeno, bom de ler, ler-se-ia num instante. E, no entanto, faço-o render. Leio devagar, releio, paro, distraio-me, olho as flores, tento descobrir onde se escondem os pássaros, retomo. Depois levantei-me, fui buscar a máquina, pus-me a fotografar. A seguir, voltei ao livro. Logo, logo senti que o sono estava a chegar; fechei os olhos, conscientemente, para melhor o sentir a pousar sobre mim. Ao todo creio que terão sido uns vinte minutos, talvez um pouco mais. Uma chamada quebrou o sono, o sonho. Estar aqui é ainda um sonho. Rodeada de verde pontuado pela cor das buganvílias, ouvindo os pássaros a cantar a múltiplas vozes, na maior paz, parece-me que isto que me aconteceu ainda não é completamente real. 

A seguir chegou o meu marido. Fomos fazer uma caminhada na praia. Estamos a aproveitar os dias enquanto o sol dourado e morno ainda acontece depois do trabalho. Dentro em pouco noitará ainda estamos a trabalhar e desaparecerá esta benesse que o bom tempo e a hora de verão nos oferecem. Enquanto caminhávamos rente ao mar, ao belo mar das douradas tardes de setembro, fui observando esta tendência crescente para a estupidificação. Toda a gente faz selfies. Mas o culto do eu para exibir ao mundo já não se fica pelas ridículas e omnipresentes selfies: agora já se fotografam e filmam uns aos outros, no que parece ser uma triste emulação do que vêem às celebridades (e ponham aspas que não acabam em volta das "celebridades"). Uma mulher fotografava outra que não se inibia, fazendo publicamente toda a espécie de poses, caricatas poses. Mais à frente, o que me pareceu ser a mãe, filmava a que seria a filha que alçava o rabo a la Georgina, que levantava os braços, que se expunha, gratuitamente, em toda a sua frivolidade. A seguir era um casal. Diria que ambos devem praticar aquelas coisas do body building. Torneados, trabalhados. Ela filmava-o. Ele dobrava a perna, arqueava o corpo, fazia sobressair os bíceps. Fazia poses. No fundo, fazia figuras. Depois, ia ver o fruto da filmagem e, apontando outro ângulo ou enquadramento, voltava a pôr-se a jeito para ela o filmar. E isto é recorrente. Dá ideia que, de um lado está uma imensa mole humana que se vai estupidificando, alheando dos outros para se focar na sua auto-promoção, construindo uma ficção na qual são a personagem principal (e única), stories nas quais inventam personagens eternamente felizes e empinadas, engalanadas, filtradas. E, do outro, pessoas como eu, pessoas como os demais bloggers que acompanho, pessoas como os leitores que me lêem e demais gente polida e devidamente encadernada, que pensam que têm algo a dizer ao mundo e que, na sua ingenuidade e tolice, não percebem que falam para um grupo cada vez mais pequeno de gente que pode representar-se a si própria mas representar o mundo, isso é que era bom.

Quando regressámos já escurecia mas, ainda assim, fui lá para o fundo, onde a terra é macia e escura e enchi um vaso grande para transplantar o feto que a minha mãe me deu no outro dia. Ficou tão pesado que tive que pedir ajuda. Coloquei-o numa floreira grande que estava vazia e que está num sítio que, penso eu, está maioritariamente à sombra. Enquanto isso o meu marido esteve a regar a horta. Como a prioridade têm sido as arrumações interiores, não a temos tratado e já começa a desaparecer no meio da erva. Tenho que ver se me organizo de modo a ter tempo para ela. O meu marido perguntou: A horta é só isto aqui, não é? Os tomateiros? Ou é mais alguma coisa? Olhei e nem percebi, já está tudo a ficar meio bagunçado. Parece que tem mais qualquer coisa mas não reconheço. Ele disse: 'Olha, morangos'. Nunca tinha reparado. Uma haste com uns moranguinhos que pareciam rubis. Pequeninos, carnudinhos, rubros. Apanhei a pequena haste. Quando cheguei a casa, não resisti. Afinal não são morangos: são framboesas. 

E tenho uma novidade: comprei uns auscultadores para poder fazer as minhas reuniões em maior privacidade. Geralmente isso não é tema mas naqueles dias em que há criançada correndo e rindo à solta pela casa percebo que estaria melhor se conseguisse isolar-me naquela bolha em que costumo ver imersos os que estão sempre com eles postos. São óptimos: permitem uma qualidade de som que me deixa agarrada. Um dos meninos quando me viu com eles postos exclamou: 'Olha, tens uns auscultadores de gaming'. E tenho ideia que o jovem que mos vendeu também me disse isso. No dia, estava entre telefonemas, um dos quais um bocado complicado, e não prestei grande atenção. Continuo sem perceber exactamente de que falam mas sei que o som é maravilhoso. Mesmo agora, enquanto escrevo, gosto de os ter postos para ouvir a música com uma qualidade de que me tinha desabituado. Gostava que todos os que ouvem a música que aqui coloco pudessem experimentar esta fantástica experiência imersiva.

Quanto à casa, estou com uma questão por resolver. Já tenho cortinados no quarto, a tão aguardada renda belga, mas não tenho argolas suficientes. E estas argolas que cá estão são gigantes, não sei onde vou encontrar iguais. Em madeira antiga, igual a estas, já sei que não. Mas mesmo a questão do diâmetro não é fácil. A alternativa será trocar tudo, varão, suportes. Seria uma luta para a qual não sei se, neste momento, tenho energia para travar.

Mas, sobretudo, estou a querer começar a acalmar. Há ainda um conjunto de sacos por arrumar, há a outra casa para acabar de embalar, há o trabalho a começar a aquecer. E há outros assuntos por resolver. Mas há este forte desejo de acalmar, de ter a paz a envolver cada momento, de ter o vagar para sentir as árvores, o canto dos pássaros, a boa música, as palavras que nos abraçam e marcam.

Gosto de ouvir pessoas inteligentes a falar. O covid e as circunstâncias afastaram-me fisicamente de pessoas a quem eu gostava de ouvir. É bom conversar com pessoas inteligentes, com quem aprendemos. Procuro, pois, com alguma avidez, entrevistas com pessoas assim. Hoje vim parar a uma surpreendente entrevista a Bioy Casares. Com oitenta anos, ele parece já um velhinho. A minha mãe tem oitenta e sete e parece uma teenager ao pé dele aqui. Casares, neste vídeo, dir-se-ia ter mais de noventa, dir-se-ia que já sentia que a porta para a passagem para o outro lado já ali estava aberta, à sua espera. Faz-me uma certa impressão perceber que alguém que se sente de bem com a vida percebe que já o chamam do outro lado. O jovem que o entrevistava, impreparado, agarrando-se aos papéis, fazia, no entanto, perguntas com algum interesse e Casares, delicado, agarrava-se a esse pretexto para dar respostas sinceras, de um desprendimento comovente. Há seres cuja superioridade é sempre evidente e, ainda mais, quando, mesmo perante a evidência dessa superioridade, escondem que estão cientes dela, humildemente colocando-se no mesmo plano daqueles a quem facilmente poderiam aproveitar para menosprezar. É reconfortante saber que pertenço a uma espécie habitada por seres assim.


Pinturas de Mequitta Ahuja ao som de Patrick Watson

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Dias felizes.

1 comentário:

Estevão disse...

Bué de argolas granjolas
https://www.custojusto.pt/porto/texteis-lar-utilidades/argolas-madeira-cortinado-cortina-22464171